"A Teologia da Libertação nunca teve Marx como pai nem como padrinho. Ela bebeu primeiramente de sua própria fonte, que é a tradição judaico-cristã, que sempre deu centralidade aos pobres, ao tema da libertação do cativeiro egípcio e babilônico e à prática histórica de Jesus, que foi pobre e disse "felizes de vocês pobres e ai de vós ricos". E que não morreu tranqüilamente na cama como um piedoso rabino cercado de discípulos, mas na cruz, fruto de um juízo político-religioso que o condenou com o castigo dado a revoltosos sociais. Mas ela encontrou em Marx as boas razões para entender por que o pobre não é pobre, e sim um explorado e injustiçado. Ele é um empobrecido, feito pobre por fatores de ordem econômica, social e cultural, que hoje ganham corpo especialmente no capitalismo. Isso deu lucidez à Teologia da Libertação, mas também atraiu as acusações das classes sociais conservadoras, que sempre usaram a Igreja para legitimar seu projeto, que implicava a exclusão do povo."
(Leonardo Boff; ex-frade franciscano, teólogo e filósofo)
A Teologia da Libertação e as transformações do mundo
Waldemar Rossi*
Na segunda metade da década de 60 do século passado começa a aparecer uma elaboração teológica embasada na dura vida do povo latino-americano. Fruto de dezenas de anos de vivência, de engajamento social e político e de testemunho cristão no meio do povo, a Ação Católica deu uma enorme contribuição à reflexão teológica a partir da vida, do cotidiano desse mesmo povo.
As motivações surgidas nas constantes reflexões dos vários movimentos de Ação Católica, e as luzes emanadas do Concílio Vaticano II, animaram os vários teólogos - comprometidos com a caminhada do povo simples e lutador - a elaborar uma teologia que iluminasse os cristãos, de forma ordenada e profunda, e os animasse a assumirem os desafios do mundo do trabalho, no campo e nas cidades, do engajamento político e social. No centro dessa elaboração teológica, além dos valores da LIBERTAÇÃO - inspirados na longa experiência do Povo de Deus, do tempo do Antigo Testamento, e nas experiências dos cristãos, renovados pela Boa Nova de Jesus Cristo – estavam, também, os valores e contra-valores dos Conflitos de Classe, presentes no Sistema de Exploração do Trabalho Assalariado, comandado pelos interesses da Produção Industrial. Em suma, nessa Teologia da Libertação estava e está presente um certo conceito da Luta de Classes elaborado por Marx, assim como estão presentes os anseios e as lutas pela libertação, contidos em todos os livros da bíblia, portanto, presente nas experiências do povo Hebreu e também na pregação e na prática de Jesus Cristo. (Mt. 5, 1-12; 9, 14-17; 23 (todo); Mc. 11, 15-19; 12,1-10;12, 38-40; Lc. 1,46-55; 2,33-35; 4, 17-21 e 24, 17-21)).
Os encontros de Medellin e Puebla, iluminados pelas luzes da Teologia da Libertação, impulsionaram as Comunidades de Base, uma nova maneira de ser Igreja, que assimilaram o sentido da libertação evangélica, enraizada nas lutas constantes para vencer a "moderna" opressão imposta pelos poderosos de nossos tempos. Foram anos frutuosos em que, das CBs, nasceram dezenas e dezenas de grupos que assumiram prá valer as lutas por moradia, transporte, saneamento básico, iluminação pública, educação, creche, saúde pública. Os ensinamentos contidos nessa Teologia colaboraram para que várias centenas de trabalhadores, homens e mulheres, operários e lavradores assumissem, com muita garra, a luta pelo desatrelamento sindical das amarras do Ministério do Trabalho, pelo direito da livre organização sindical e a luta pela liberdade de organização partidária.
A Teologia da Libertação foi fundamental para a firme postura da Igreja (tanto católica quanto das igrejas do CONIC), de enfrentamento com a ditadura militar, denunciando seus crimes, exigindo seu fim e a volta da democracia. A opção preferencial pelos pobres, assumida pela Igreja, está alicerçada nos profundos conceitos de justiça nela contidos.
O próprio Jesus nos advertia quanto às perseguições que sofreríamos por assumir a causa da sua Boa Nova. Assim foi com esse extraordinário movimento. A perseguição veio de fora e de dentro da própria Igreja, de setores que controlam o Vaticano, inconformados com os avanços dos cristãos rumo às idéias do socialismo. Muito se fez para confundir a opinião pública mundial, colocando no mesmo barco os ideais e a consagrada e universal luta de classes com as várias propostas de luta armada. Por mais que se procurasse mostrar que as experiências não são iguais, esses mesmos setores não abriram mão de tentar impor pesadas e injustas censuras à Teologia da Libertação. Muito se dizia à época que setores do Vaticano eram muito simpáticos ao modelo norte-americano, daí a razão desse infeliz combate. Tivemos até mesmo uma certa dose de inquisição imposta aos teólogos dessa corrente teológica.
Os tempos passaram, houve um pequeno retrocesso, momentos de dúvidas, hesitações, porém, as raízes profundas " como uma árvore plantada junto ao rio" resistiram, vencendo a tempestade. A caminhada nunca parou e, adaptada aos novos tempos, continua firme, rumo aos horizontes libertários.
A CNBB, é o sinal dessa presença obstinada, teimosa e perseverante na luta pela justiça social. Iniciativas como as Campanhas da Fraternidade, as Semanas Sociais Brasileiras, os documentos sobre as eleições, pela erradicação da miséria e da fome, os documentos e os plebiscitos sobre a Dívida Externa e sobre a ALCA são o resultado dessa permanente luta pela libertação do nosso povo e de todos os " povos oprimidos pelo capital opressor".
Em nosso entendimento, quanto mais avança a exploração do capital, mais se afirma a importância e a necessidade desse grande movimento teológico. Nunca, na História da Humanidade, a escravização e a exclusão econômica e social foram concomitantemente tão cruéis quanto em nossos tempos. A teologia da Libertação torna-se o grande instrumento de conscientização e de mobilização do povo marginalizado capaz de fazer frente à ideologia do capital, pois, " UM OUTRO MUNDO É POSSÍVEL". Podemos construir um mundo diferente, alicerçado na justiça, no direito e na fraternidade. O momento histórico nos convida a fazê-lo.
*Waldemar Rossi é sindicalista da Oposição Metalúrgica de São Paulo, aposentado; Membro da coordenação da Pastoral Operária de São Paulo
Socialismo e moderna cosmologia*
Leonardo Boff
Para esse debate sobre o socialismo me tomo a liberdade de trazer uma reflexão, nascida dos meus estudos e preocupações dos últimos anos. Tenho feito um esforço considerável de tentar levar avante o discurso da Teologia da Libertação abrindo-a para outros campos da luta popular e da reflexão.
1. O grito dos pobres e o grito da Terra
Hoje não basta só ouvir o 'grito dos pobres'. Na escuta desse grito nasceu nos anos sessenta, a Teologia da Libertação nos vários países da América Latina e em outros contextos mundiais de pobreza e injustiça. Não só os pobres gritam. A Terra também grita. As águas gritam. Os ecossistemas gritam. Porque são igualmente vítimas da mesma lógica do sistema do capital que explora as classes, os países, as nações e termina por devastar sistematicamente a inteira Natureza.
Estou profundamente convencido de que Teologia da Libertação só pode ser integral se incorporar dentro do seu discurso e de sua prática o resgate da Terra, que finalmente é o resgate da vida. Porque a Terra não é um planeta inerte. Não é um bau de recursos incalculáveis, mas finitos, como toda a modernidade tecnico-científica a reduziu. A Terra é um organismo vivo, é a Pacha Mama de nossos indígenas, a Gaia dos cosmólogos contemporâneos. Numa perspectiva evolucionária nós seres humanos, nascidos do humus, somos a própria Terra que chegou a sentir, a pensar, a amar, a venerar e hoje a se alarmar. Terra e ser humano somos uma única realidade complexa, como bem o viram os austronautas lá da lua ou das suas naves espaciais.
A partir desta visão pude aprofundar algumas perspectivas, que gostaria aqui de, suscintamente, apresentar, como uma entre outras fontes de argumentação em favor do projeto socialista. O socialismo, tomado em sua intuição básica, ao dar centralidade ao social e ao todo, representa a salvação da vida, do Planeta e do projeto planetário da espécie humana.
2. A lei fundamental do processo cosmogênico: a cooperação
Talvez o meu discurso soe inusitado e não convencional, mas estimo que pode significar uma entre outras maneiras atuais de refundar e dar as boas razões para uma opção socialista.
A primeira delas é a visão que vem da moderna cosmologia ou melhor das assim chamadas Ciências da Terra. Segundo esta visão, estamos todos dentro de um único processo cosmogênico, iniciado há l5 bilhões de anos e ainda em curso. A lei suprema que preside a evolução aberta é: tudo tem a ver com tudo em todos os pontos e em todos os momentos; tudo está inter-retro-relacionado e nada existe fora desta panrelacionalidade. Portanto, nada existe juxtaposto ou desarticulado. Senão que as coisas todas são de tal forma interconectadas que formam um incomensurável sistema.
Assim a vida é parte do processo da evolução da matéria (que nunca é inerte mas um centro de grande energia e interatividade) e a vida humana é parte da evolução da vida. As sociedades são momentos deste processo global e devem ser entendidas como expressão da lógica das relações universais. Temos, pois, a ver com uma visão realmente holística e sistêmica.
Ela se encontra bem formulada na física quântica de Niels Bohr e Werner Heisenberg, formuladores primeiros do novo paradigma de compreensão da realidade panrelacional. Para eles a centralidade se encontra precisamente na constatação de que a lei suprema do Universo e que permitiu que todos os seres chegassem até aqui é cooperação, a solidaridade cósmica e a sinergia. Todos somos inter-dependentes. Cada um vive pelo outro com o outro para o outro, e todos formam a imensa rede de solidariedade cósmica. Essa realidade é tão forte que o Universo não conhece nenhum ser excluído , não conhece lixo, tudo recicla, tudo transforma e tudo incorpora. Mesmo a visão de Darwin sobre a origem das espécies pela seleção natural e da vitória do mais forte se inscreve dentro da lei universal da solidariedade. Alguém é mais forte porque tem mais capacidade de relações e assim de contar com a cooperação dos outros. Não basta ser simplesmente forte,como os dinossauros. Depois de uma catástrofe ecológica sem precedentes que dizimou mais da metade do capital biótico do Planeta, eles não conseguiram se relacionar com a nova situação e foram condenados a desaparecer.
Não é difícil de se perceber que o Capitalismo vai contra a lei básica do universo, porque ele não é cooperativo, ele é só competitivo. Ele é representa a "barbárie", a destruição dos laços da convivialidade, das interdependências e das inclusões. Ele é individualista, ele é excludente. Ele reafirma e magnífica o individuo, do eu à custa dos laços do nós e da socialidade humana.
O socialismo, ao invés, se inscreve na lógica global das coisas, é sua expressão histórico-social. O que a natureza prescreve em seu dinamismo interno, ele transforma num projeto político, numa visão consciente do mundo e numa ética de solidariedade, cooperação e inclusão.
3. O ser humano como um ser falante e societário
Segundo argumento se deriva da antropogênese, vale dizer, do processo dentro do qual surgiu o ser humano, como um ser diferente de seus semelhantes símios superiores como os chimpanzés, gorilas e orangotangos. Na verdade, a carga genética dos seres humanos e dos chimpanzés é quase idêntica; há uma diferença apenas de 2%. Mas nesses 2% reside toda a diferença.
Em que consiste esta diferença? No fato singular da socialidade, no fato de os seres humanos serem seres de cooperação e de convivialidade. Os chimpanzés possuem também vida societária. Mas diferentemente dos seres humanos, ela se orienta pela lógica da dominação, da hierarquização e do assujeitamento do outro. Por isso as relações se apresentam extremamente dominadoras.
Ao surgir o ser humano a partir de um primata comum, base para os símios superiores e os humanos, rompe-se essa lógica. Não sabemos exatamente a data, mas seguramente por volta de três milhões de anos atrás. As pesquisas recentes, de 1977, levam às ossadas de uma mulher, Lucy, na Africa Oriental, na região de Afar na Etiópia.
A lógica muda absolutamente. Ao invés da competitividade feroz e da vontade de subjugação entra a funcionar a cooperação. Então ao nível humano, aqueles menos de 2%, dos ácidos nucléicos e das bases fosfatadas, que fundam o humano enquanto humano, se encontram nas relações de cooperação. Esses nossos ancestrais humanóides saiam para caçar, traziam os alimentos, e os repartiam socialmente entre eles. Não é como os primatas superiores que cada um come para si. Traziam e distribuíam solidariamente entre eles. Desses laços de solidariedade e como mamíferos superiores desenvolveram mais as relações mãe e filho, surgiu. O calor da proximidade fez surgir o enternecimento e a relação do cuidado para com um do outro.
Tal diferença se mostra na mão. A mão do chimpanzé e do ser humano são diferentes. A mão do ser humano se estende, se adapta ao corpo e é apta para a carícia, ao passo que aquela dos símios superiores não se estende é é antes adaptada para pegar e segurar.
Foi essa base de solidariedade e partilha que serviu de ambiente para o surgimento da linguagem. Ela supõe um animal amoroso e terno. Na linguagem reside o diferencial humano. E a linguagem, singular no ser humano, é fundamentalmente um fenômeno social. Nessa relação social um não precisa justificar sua presença diante do outro porque sabe que é acolhido, nunca é simplesmente tratado como um inimigo, antes como companheiro, como semelhante, como irmão, como sócio na aventura da existência.
Essa interpretação da antropogênese é recorrente em grandes nomes das ciências da vida como os conhecidos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela ou Frijhof Capra, Christian de Duve e outros.
Como se depreende, o socialismo emerge do próprio processo da antropogênese. Ele expressa uma lógica de milhões de anos de convivialidade e de laços de cooperação, apesar de todos os retrocessos e estrangulamentos que a história registra. Mas o que levou a história avante e chegou até nós é a capacidade do ser humano de fazer e refazer os laços de convivência, de nunca colocar a guerra e a exclusão do outro como projeto civilizatório mas como desvio dele a ser evitado, limitado, superado ou integrado numa síntese superior humanizadora.
O capitalismo representa a sobrevivência da política do chimpanzé, no dizer de Humberto Maturana (veja seu mais recente livro, Formação humana e capacitação, Vozes, Petrópolis 2000), vale dizer, daquele carga genética que temos em comum com os chimpanzés e que nos faz também, em parte chimpanzés, parte que ainda não inaugurou o reino do humano com sua força socializadora e cooperativa.
Essa política chimpanzé, atualizada pelo capitalismo é caracterizada, segundo esse biólogo chileno, pela apropriação, pela concorrência, pela desconfiança, pelo controle, pelo assujeitamento, pela dominação, finalmente pela lógica da guerra. Ela não ingressou na dimensão humana do humano, que é a dimensão da colaboração, da convivialidade, do cuidado, melhor expressa no projeto socialista desde os primóridos de sua formulação entre os utopistas cristãos.
Eis uma boa razão para queremos ser socialistas, por que queremos ser humanos, seres de linguagem comunicataiva, seres de relação e de solidariedade irrestrita.
Neste sentido, estamos ainda na ante-sala de nossa verdadeira humanidade. Penando e sobrevivendo nos quadros do modo de produção capitalista, mundiamente integrado e invadidos pela cultura do capital, não logramos ainda inaugurar o novo milênio, com um nova relação de inclusão de toda a humandiade. Dois terços dos humanos vivem em níveis de crueldade e sem piedade, vítimas da voracidade acumulador da lógica do capital. Só o socialismo, como expressão de cooperação igualitária e de convivência pacífica com os diferentes poderá criar o espaço para aflorarmos como humanos verdadeiramente humanos.
4. Se não socializarmos não sobreviveremos
O terceiro argumento em favor de uma opção sócio-política socialista nos vem da reflexão ecológica. Ela hoje ganhou dimensões globais. Todos os relatórios sérios sobre o estado da Terra nos alarmam: a seguir a lógica depredadora e consumista do sistema do captial vamos ao encontro do pior, vamos ao encontro da não sustentabilidade de nosso projeto civilitório e de um estresse fantástico da biosfera, com a provável dizimação de incontáveis espécies e seus representantes. Não é impossível que a própria espécie homo sapiens e demens seja poderosamente ameaçada.
O que se constata de forma irrefutável que os recursos do sistema-Terra são limitados e em alguns casos extremamente escassos. Nem falo do petróleo, sangue da máquina produtivista mundial, mas de algo mais fundamental para todo o sistema da vida e da comunidade-de-vida: a água potável.
De toda a água do planeta (2/3 são compostos por água) apenas 3% é constituido por água doce. Destes 3% menos de 1% é acessível ao uso humano, pois o restante está em gelerias ou em regiões profundas da Terra. Devido ao consumo irresponsável de água doce no processo produtivo, na agroindústria e e com maciça utilização de tóxicos e pesticinas, a água não tem tempo de refazer seus nutrientes e se torna saloba.
A ONU em sucessivas reuniões mundiais de estudo e de busca de soluções globais alertou para o risco que enfrentamos imediatamente. Segundo os mais recentes relatórios (o último de Haia de março-abril de 2000) nos próximos anos haverá guerras de grande devastação em vários regiões do mundo para garantir acesso a fonte de água potável. Mais que o petróleo, o urânio e outros materiais, é a água o bem mais escasso da natureza. Quem controlar as águas controlará os percursos da vida, pois a água está intimamente ligada à vida em toda as suas formas.
Bem como a água, outros recursos energéticos são fundamentais para garantir um futuro de vida para todos os humanos e outros seres da comunidade de vida. Todos os bens necessários à vida pertencem ao patrimônio da biosfera e ao patrimônio comum da humanidade.
Se não socilizarmos esses recursos escassos não garantiremos um futuro comum para a vida, para a humanidade e para a Terra. Não se trata mais de socialismo em termos ideológicos e, na sua expressã melhor, em termos políticos e alternativos. Trata-se de socialismo como forma de sobrevivência. Ou socializamos ou vamos ao encontro de um impasse vital.
Temos que planificar o uso racional destes recursos raros em benefício de todos os seres vivos, humanos e não humans.. O planejamento é uma criação do socialismo e não do capitalismo. Capitalismo incorporou o planejamento para racionalizar sua produção e garantir melhor seus lucros, mas não para repartir os bens escassos. Então nós temos que planificar para socializar os recursos escassos da Terra, a começar pelos mais fundamentais, aqueles que garantem o substrato físico-químico de nossa sobrevivência, como água, alimentação básica, moradia, trabalho, lazer e educação (que nos permite a comunicação humana mínima). Desta vez não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixe perecer os outros. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos.
O capitalismo não oferece nenhum sinal de que queira construir uma Arca de Noé para todos. Pelo contrário, ele se encontra dentro de um Titanic que se afunda por razões da destrutividade do próprio capitalismo e seus agentes, insensíveis, cegos e suicidas, continuam fazendo negócios. Poderão levar a Terra e a humanidade a um estresse jamais visto na história conhecida da Terra ou semelhante àquelas grandes dizimações em eras ancestrais que colocaram sob imensos riscos o sistema da vida. Mas nessas eras os seres humanos ainda não haviam imergido no processo de evolução.
5. O socialismo utópico se abraça com o socialismo histórico
Nos primórdios da formulação do projeto socialista houve um debate clássico, protagonizado por Karl Marx, entre o socialismo utópico, projetado pelos pais fundadores do socialismo e o Socialismo Científico, inaugurado por ele, Marx e por Engels. Marx submeteu a uma critica dura o socialismo utópico por causa de sua ineficácia não obstante seu alto poder mobilizador. Em contraposição lutou pelo socialismo chamado por ele, de cientifico, base para um projeto político consistente e transformador da sociedade capitalista.
Nós conhecemos os impasses desta pretensão especialmente na expressão do assim chamado socialismo real do Leste europeu. Mas hoje, com a distância do tempo e com o medir as boas razões de um de outro socialismo sentimos a necessidade e a utilidade de resgatarmos as duas tradições. Importa apresentar o socialismo utópico como a grande utopia da humanidade, quiça, a mais generosa até hoje formulada. Ela é fundamental para inspirar práticas de solidariede, cooperação e sinergia em todos os campos, particularmente, naqueles onde se trata de salvaguardar a vida e o planeta Terra, a única casa comum que temos para morar.
É urgente fundar o pacto social global que insira todas as tribos da Terra, pacto que inclua a Natureza e a Terra como sujeitos de direitos a serem respeitados e cultivamos. Os formuladores do pacto social subjacente às atuais sociedades como Russeau, Locke e mesmo Kant, jamais incluiram em suas reflexões a natureza e a Terra. Davam por descontado que elas tinham uma existência garantida. Elas garantiam a vida em geral e as bases para a vida social. Ora, hoje a situação se encontra mudada. A natureza e a Terra não têm garantido seu futuro. Dependem das práticas humanas ou de destruição ou preservação. Não devemos esquecer que, insanamente, inventamos o princípio de auto-destruição que, por sua vez, provoca a instauração do princícpio de co-responsabilidade.
No novo pacto social global, expressão dessa co-responsabilidade, somos urgidos a incluir a natureza e a Terra com sua subjetividade. Elas compõem o novo cidadão. Plantas, animais, rios, paisagens, montanhas entram a formar nossa sociedade ecologizada. Como dizia Michel Serres, notável pensador francês da nova situação da humanidade: A Declaração dos Direitos Humanos tinha a razão em proclamar que cada pessoa humana tem direitos. Mas tinha um defeito, o de pensar que somente os seres humanos têm direitos. Os demais seres da natureza e da criação têm também direitos de existir, de ser respeitados e de conviverem na comunidade terrenal e cósmica. Todos precisamos uns dos outros e somos inter-retro-dependentes. Mais ainda; devemos nos comportar como os garantes e os guardiães destes direitos ecológicos de toda a criação.
O socialismo utópico sonha com um planeta Terra, integrando todos os seres na imensa comunidade terrenal e biótia. Mas importa passar da utopia para a história. E então resgatar a tradição do socialismo histórico que formula mediações concretas para sua implementação na política, na economia, na educação, nos sistemas de poder, nas comunidades, nas famílias e em todos os relacionamentos com a natureza.
Então o socialismo realizará o sonho de seus fundadores, especialmente de Rosa Luxenburgo e de Antônio Gramsci, de ser a concretização da democracia integral, democracia humana e sócio-cósmica.
Esse socialismo é co-natural ao ser humano, como ser de amorosidade, de cooperação, de sinergia, de solidariedade, porque é nesse tipo de relações que se inscreve a singularidade do ser Humano enquanto humano em comunhão e distinto dos demais seres.
Hoje, face aos desafios que a humanidade enfrenta, desafios de vida e de morte, importa que as duas formas de se pensar e viver o socialismo se abracem e se dêem as mãos. A tarefa é imensa, verdadeiramente messiância, salvar a vida, salvaguardar a Terra e garantir o futuro do projeto humano.
*Palestra proferida no VI Congresso Internacional da Revista America Livre, sobre a atualidade da questão do socialismo, realizado em S. Paulo no dia 4 de dezembro de 2000.
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