terça-feira, 12 de junho de 2012

Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas

Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas
*Por Gilberto Maringoni

Uma Comissão da Verdade de verdade poderia começar seus trabalhos propondo ao Congresso Nacional uma lei simples: proibir em todo o território nacional que log...radouros públicos sejam batizados com nomes de pessoas que enxovalharam a democracia e os bons costumes. E alterar as denominações existentes.

Em São Paulo, a situação é vergonhosa. A principal rodovia do estado chama-se Castello Branco. De tão naturalizada está a questão, que poucos param para pensar no seguinte: aquele foi o chefe da conspiração que acabou com a democracia no Brasil, em 1964. A homenagem foi feita por Roberto de Abreu Sodré, governador biônico, que inaugurou a via em 1967. Estávamos em plena ditadura e seria natural que um serviçal do regime quisesse adular seus superiores.

A via não representa uma exceção. A cidade comporta ainda o elevado (?) Costa e Silva, em homenagem ao segundo governante da ditadura. O idealizador foi outro funcionário do regime, Paulo Salim Maluf, nos idos de 1969. O mesmo Maluf mimoseou, em 1982, quando governador, o famigerado Caveirinha, alcunha que imortalizou o general Milton Tavares de Souza, falecido no ano anterior. Caveirinha foi chefe do Centro de Informação do Exército (CIE) e suas grandes obras foram a implantação dos DOI-CODI e da Operação Bandeirantes (Oban), órgãos responsáveis pelo assassinato de inúmeros oponentes do regime. Foi também um dos planejadores da repressão à guerrilha do Araguaia (1972-76).

Ernesto Geisel, ditador entre 1974 e 1979, é o nome de um conjunto habitacional em Bauru. Emilio Garrastazu Médici, o comandante da fase mais repressiva da ditadura, nomeia dezenas de ruas, escolas e praças pelo Brasil. Presidente Figueiredo é uma cidade no Amazonas. Diadema abriga uma Escola Estadual Filinto Muller, temido chefe da Polícia Política do Rio de Janeiro entre 1933 e 1942. Imortalizou-se por ter comandado a operação que resultou na deportação de Olga Benario à Alemanha, em 1936.

Mas nada supera a inacreditável rua Dr. Sergio Fleury, na Vila Leopoldina, na capital.

Os nomes dos funcionários mais ou menos graduados da ditadura podem ser localizados com uma rápida olhada no Google. Castello, Costa e Silva, Médici e Figueiredo emprestam seus nomes a centenas de ruas, avenidas, estradas, escolas e edifícios públicos espalhados pelo Brasil.

Propostas de mudança Em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra (PSDB) enviou mensagem à Câmara dos Vereadores de São Paulo, propondo alteração do nome do viaduto que enaltece Caveirinha. Aprovado em primeira instância, o projeto aguarda até hoje sanção de Gilberto Kassab.

O vereador Pedro Ruas e a vereadora Fernanda Melchiona, do PSOL de Porto Alegre, apresentaram em dezembro último um projeto de lei visando mudar o nome da Avenida Presidente Castello Branco para Avenida da Legalidade. A intenção é não apenas banir a memória do líder golpista, mas homenagear o movimento liderado por Leonel Brizola, em 1961, que deteve as articulações visando impedir a posse do presidente João Goulart, após a renúncia de Janio Quadros.

Manter tais denominações significa conservar viva a memória de gente que deve ser colocada em seu justo lugar na História: o daqueles que perpetraram crimes contra a democracia e a cidadania, prejudicaram o país e contribuíram para o atraso em vários campos de atividade.

Na Itália não existe rua, monumento ou edifício público com o nome de Benito Mussolini ou de outro funcionário graduado do regime fascista. A decisão faz parte de uma luta ideológica que visa extirpar as marcas da intolerância, da brutalidade e da xenofobia que marcaram a vida do país entre 1924 e 1944.

Tampouco há na Alemanha uma avenida Adolf Hitler, um aeroporto Herman Göering (que foi ás da aviação na I Guerra Mundial), um viaduto Joseph Goebbels ou coisas que o valham. Aliás, evitou-se durante décadas batizar crianças com o nome Adolf, por motivos mais ou menos óbvios.

Argentina, Chile e Uruguai também não fazem rapapés à memória de responsáveis pelos anos de terror institucionalizado. A cidade de Puerto Stroessner, no Paraguai, teve seu nome mudado para Ciudad Del Este, assim que o ditador foi deposto, em 1989.

No Brasil, como os zumbis da ditadura não apenas assombram, mas aparentemente intimidam o poder democrático, as mudanças não acontecem. Estão aí, fagueiros e lampeiros na vida nacional, figuras como José Sarney, Marco Maciel, Paulo Maluf e outras, crias da ditadura e cheios de autoridade na vida pública. E os pijamas do Clube Militar volta e meia fazem ordem unida para enaltecer os anos de chumbo.

Banir os nomes de gente dessa laia dos logradouros públicos é um bom passo para se consolidar a democracia.

*Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

A terceira crise do capitalismo

A terceira crise do capitalismo

Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais


A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.

O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa "saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.

Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a "saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.

E agora, José?

Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.

Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.

Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.

O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.

A "saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.

Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).

Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.

O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.

É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.

Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, "a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.


*Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

domingo, 26 de dezembro de 2010

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão
Jung Mo Sung *

As propagandas de alguns dos maiores bancos privados do Brasil para esta época de Natal nos ensinam que devemos lutar contra o consumismo desenfreado, usar dinheiro com consciência, saber que o dinheiro é um instrumento, buscar a verdadeira felicidade, etc. É o espírito de Natal invadindo espaços que normalmente são dominados por ganância de mais dinheiro, ostentação e eficiência econômica acima de tudo.

Essas propagandas me fazem pensar: será que na época de Natal ocorre uma "conversão radical" entre os grandes capitalistas e executivos e eles percebem que a vida é mais do que a busca ilimitada de riqueza e a sua ostentação? Uma conversão que, mesmo sendo por muito pouco tempo, mostraria o "poder" do espírito do Natal? Gostaria de acreditar, mas a vida real me lembra que não devemos confundir retóricas de propaganda com as reais intenções dos capitalistas e a lógica econômica capitalista.

É claro que deve haver algum grande empresário ou executivo desejando que a vida realmente seja assim, com o uso consciente do dinheiro, consumo sustentável, justiça social acima da acumulação da riqueza nas mãos de poucos, etc. Mas, ele também vai tomar consciência de que uma coisa é propaganda do final de ano e a outra é a "vida dura e crua" dos negócios.

A apropriação ou o seqüestro do "espírito de Natal" pelas propagandas das grandes empresas nos lembram que não basta líderes de igrejas ou teólogos/as propagarem discursos enaltecendo o espírito do Natal, pregando que todos nós deveríamos viver de acordo com os valores natalino. Esses discursos, por mais bonitos e tocantes que possam ser, não fazem mais diferença no e para o mundo. Tudo ficou pasteurizado! E quando o anúncio da Boa Nova não faz mais diferença, não provoca mudança e não produz uma novidade, não é mais Evangelho.

Este é um dos grandes desafios do cristianismo em uma sociedade injusta que se legitima e funciona em nome dos valores ocidentais e cristãos. Esta identificação é tão profunda que a Igreja Católica, ou pelo menos a sua hierarquia que pensa que fala em nome de toda a Igreja Católica, luta para que os prédios das instituições públicas, as que representam o Estado e a sociedade, mantenham dentro delas o crucifixo. Isto para lembrar a todos/as que vivemos em uma sociedade "fundada" no cristianismo.

Os presépios luxuosos espalhados pelos pontos centrais das cidades e em espaços comerciais de grande circulação também são expressões dessa perda da diferença. Mais do que a perda da diferença entre o anúncio da boa-nova aos pobres e o anúncio dos grandes feitos poderosos do Império, ocorreu entre nós uma profunda inversão. Esses presépios luxuosos, que vemos mesmo dentro das igrejas, pretendem representar um fato dramático, oposto: o nascimento de um menino pobre, de uma família pobre, em um estábulo no meio dos animais.

Palavras românticas, embrulhadas em palavras espiritualizantes e religiosas, que tocam nossos corações são apropriadas para este tempo de Natal. Por isso elas fazem muito sucesso. Mas, quando até os grandes bancos, que estão na ponta do capitalismo global, as utilizam, é tempo de procurarmos novas palavras e imagens! Se não, a luz que nasce da manjedoura se misturará com as luzes potentes das grandes árvores de Natal ou decorações dos bancos e perderá a sua diferença, o seu brilho especial.

Cristianismo só manterá a sua relevância no mundo de hoje se for capaz de manter a sua diferença! Não uma diferença que o faça se sentir especial, superior aos demais, mas sim uma diferença que sempre nos mostre que as luzes do Império são como holofotes que iluminam os grandes monumentos e os grandes "sucessos" (financeiros, políticos, religiosos...) e tiram do foco, da nossa vista, os sofrimentos das pessoas marginalizadas que estão abandonadas na escuridão.

Quem só olha para o que o holofote foca, ou busca ser iluminado pelo holofote - a grande tentação, da grandeza, do sucesso e da fama -, fica cego para tudo o que está em sua volta. A nossa diferença deve se manifestar como a pálida luz que vem de uma "manjedoura em Belém" e ilumina a vida das pessoas que vivem e lutam contra a luz que gera a escuridão.

* Jung Mo Sung é Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, juntamente com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quem tem medo da democracia?

Quem tem medo da democracia?
Emir Sader*

O momento mais trágico da história brasileira -o do golpe de 1964 e da instauração do pior regime político que o Brasil já teve, a ditadura militar- foi o momento da verdade da democracia. O momento revelou quem estava a favor e quem estava contra a democracia. E quem pregava e apoiava a ditadura. Foi um divisor definitivo de águas. O resto são palavras que o vento leva. A posição diante da ditadura e da democracia, na hora em que não havia outra alternativa, em que a democracia estava em risco grave -como se viu depois- foi decisiva para definir que é democrata e quem é ditatorial no Brasil.

Toda a velha imprensa, que segue ai -FSP, Globo, Estadão, Veja- pregou e apoiou o golpe militar, compactuou com a destruição da democracia no Brasil e enriqueceu com isso. Compactuou inclusive com a destruição da Última Hora, o único jornal que sempre resistiu à ditadura. O mesmo aconteceu com a maior parte da elite política da época - uma parte da qual ainda anda por aí, quase todos dando continuidade ao mesmo papel de inimigos da democracia, mesmo se disfarçados de democratas.

A história contemporânea é continuação daquela circunstância e da ditadura que ela instaurou. Se o amplo apoio ao governo Lula provêm, no essencial, em ter, pela primeira vez, diminuído a desigualdade, a injustiça e a exclusão social no Brasil, isto se deve, em grande parte, à monstruosa desigualdade que o modelo implantado pela ditadura -fundado na liberdade total ao capital e no arrocho dos salários, acompanhado da intervenção em todos os sindicatos- promoveu.

Da mesma forma que a polarização atual da política brasileira se centra de novo em torno da alternativa democracia/ditadura. Como naquela época, ambos os lados dizem falar em nome da democracia. Como naquela época, toda aquela imprensa e parte da elite política tradicional, falam da democracia -que eles mesmos ajudaram a massacrar ao pregar e apoiar a instauração da ditadura no Brasil-, mas representam a antidemocracia, representam os interesses tradicionais das elites, que resistem à imensa democratização por que passa o Brasil.

O golpe de 1964 foi realizado para evitar a continuidade de um processo de ampla democratização por que passava o Brasil. A política econômica do governo Jango, a extensão da sindicalização -aos funcionários públicos, aos trabalhadores rurais-, as lutas populares por mais direitos, o começo de reforma agrária, incorporavam crescentes setores populares a direitos essências. Mas isso não era funcional aos interesses das elites dirigentes, comprometidas com interesses econômicos voltados para o consumo das camadas mais ricas da sociedade -a indústria automobilística era o eixo da economia- e para a exportação, em detrimento do mercado interno de consumo popular.

O golpe e a ditadura militar fizeram um mal profundo para o Brasil, mas favoreceram o capitalismo fundado nas grandes corporações nacionais e internacionais, que lucraram como nunca - entre elas os próprios grupos econômicos da mídia. A gritaria de que a democracia estava em perigo, em 1964, serviu para acobertar a ditadura e o regime mais antipopular que já tivemos.

Agora o quadro se repete, já não mais como tragédia, mas como farsa. Vivemos de novo um processo de ampla e profunda democratização da sociedade brasileira. Dezenas de milhões de brasileiros, que nunca haviam tido acesso aos bens mínimos à sobrevivência, adquirem o direito de tê-los, para viver com um mínimo de dignidade. O mercado interno de consumo popular passou a ser elemento integrante essencial do modelo econômico.

A sociedade brasileira, que era a mais desigual da América Latina -que, por sua vez, é o continente mais desigual do mundo-, pela primeira vez, começou a ser menos desigual, menos injusta. Isso incomoda às elites conservadoras brasileiras. Já não podem dispor do Estado brasileiro -e das empresas estatais- como sempre dispuseram. Os donos de jornais, rádios e TVs, já não têm um presidente da república que almoce e jante com eles, com todas as promiscuidades decorrentes daí.

Sentem que o poder se lhes escapa das mãos. Que um presidente -nordestino e operário de origem- conquistou um prestigio e um apoio popular, apesar deles. Tem medo do povo. Quando se dão conta da democratização que começou a acontecer, logo retomam os seus fantasmas da guerra fria e gritam que a democracia está em perigo, quando o que está em perigo são os seus privilégios.

São os mesmos que confundiam seus privilégios com democracia -porque assimilavam democracia com regime que protegia seus interesses-, que agora tem medo da democracia, porque sentem que perdem privilégios. Privilégios de serem os únicos formadores de opinião publica, de serem os que filtravam quem podia ocupar a presidência republica e os outros cargos públicos importantes. Privilégios de terem acesso exclusivo a viajar, a comprar certos bens, a ir ao teatro. Privilégios de decidir as políticas governamentais, de eleger e destituir presidentes.

O que está em perigo são os privilégios das minorias. O que está em desenvolvimento no Brasil é o mais amplo processo de democratização que o país já conheceu. Um processo que apenas começa, que tem que quebrar o monopólio do dinheiro (poder do capital financeiro), da terra (poder dos latifundiários) e o poder da palavra (poder da mídia monopolista), entre outros, para que nos tornemos realmente um país justo, solidário e soberano.

Quem tem medo da democracia? As elites que sempre detiveram privilégios, que agora começam a perdê-los. O povo, os que têm consciência social, democrática, não tem nada a temer. Tem um mundo -o outro mundo possível- a ganhar.


* Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.

domingo, 22 de agosto de 2010

A CRISE DO CAPITALISMO

Maioria não foi beneficiada por 30 anos de crescimento
Renda média per capita dos EUA, ajustada pela inflação, ficou estagnada em US$ 45 mil, entre 1978 e 2007

O boom verificado nas bolsas e no mercado imobiliário, a orgia de empréstimos e os gastos excessivos do consumidor mascararam por muito tempo o fato de que uma maioria avassaladora de americanos não teve nenhum benefício de 30 anos de crescimento. Em 1978, a renda média per capita para os homens nos EUA era de US$ 45.879.

Em 2007, essa renda, ajustada pela inflação, era de US$ 45.113.

Enquanto 90% dos americanos tiveram aumentos apenas modestos da sua renda desde 1973, ela quase triplicou para as pessoas da classe abastada. Em 1979, um terço dos lucros que o país produziu foi para os 1% mais ricos da sociedade americana. Hoje, essa cifra chega a 60%.

Em 1950, um executivo do alto escalão ganhava em média 30 vezes mais do que um operário. Hoje ele ganha 300 vezes mais. E 1% dos americanos detém 37% da riqueza da nação.

A desigualdade de renda nos EUA é maior hoje do que vinha ocorrendo desde a década de 20, exceto que ninguém notou isso.

O sonho americano tem poucas chances. Nos EUA, o livre mercado impera, e os indivíduos de baixa renda são vistos como os próprios culpados por isso. Aqueles que enriqueceram são aplaudidos e copiados. O único problema é que os americanos não se davam conta de que o sonho americano estava se tornando uma realidade para um número cada vez menor de pessoas.

Estatisticamente, os americanos menos ricos têm 4% de chances de fazer parte da classe média alta - uma taxa menor do que a observada em outras nações industrializadas.

Até agora, os políticos não conseguiram oferecer soluções para uma crise financeira que só piora. Washington ainda espera por empregos que não chegam.

O presidente Barack Obama e seu governo parecem fundamentar suas esperanças na ideia de que os americanos acabarão se tornando autossuficientes sem precisar de ajuda - de preferência fazendo o que sempre fizeram: gastando seu dinheiro. Os gastos do consumidor são responsáveis por dois terços da produção econômica americana.

Mas, apesar de o presidente do Federal Reserve (banco central americano), Ben Bernanke, continuar injetando dinheiro no mercado, e mesmo com o déficit do governo atingindo a soma enorme de US$ 1,4 trilhão, todos esses esforços parecem não estar dando resultado.

"As luzes estão se apagando por toda a América", escreveu na semana passada o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, descrevendo as comunidades que não podiam se permitir manter mais suas ruas.

Sem poupança. O problema é que muitos americanos não podem mais consumir porque não têm nenhuma economia. Em alguns casos, suas casas perderam metade do valor e eles não têm mais condições de conseguir um empréstimo a juro mais baixo. Estão ganhando muito menos do que antes ou estão desempregados. Consequentemente, essa situação reduz ou elimina a sua capacidade de pagar impostos.

Dessa forma, muitos governos estaduais e municipais enfrentam enormes déficits do orçamento. No Havaí, as escolas ficam fechadas algumas sextas-feiras para economizar o dinheiro do Estado.

Um condado da Georgia eliminou todos os serviços públicos de ônibus. Colorado Springs, cidade de 380 mil habitantes, desligou um terço das luzes da iluminação pública para economizar eletricidade.

As luzes estão de fato se apagando em algumas áreas, porque a administração, insistindo na necessidade de reduzir os gastos, não está disposta a dar assistência financeira aos governos municipais. "Agora, os EUA estão palmilhando um caminho sem iluminação, sem pavimentação, que não leva a lugar nenhum", adverte o economista Paul Krugman.

FONTE: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100822/not_imp598476,0.php

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Socialismo com liberdade e democracia

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. Portanto o stalinismo não foi resultado de uma "contra-revolução burocratica", como insistem em dizer os trotskistas. O stalinismo é resultado dos graves erros existentes no leninismo, ou seja, no bolchevismo, que ao reinterpretar a concepção marxista da ditadura do proletariado como ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista, acabou por transforma-la em um regime arbitrário, sem restrições, que logo se transformaria no totalitarismo stalinista.

Essa ditadura se fez presente desde a vitória da revolução e o começo do governo soviético. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo soviético(dirigido pelos bolcheviques).

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado, pois bastava que algum individuo suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, e pertencesse a classe burguesa, para ser executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil(1918-1922), o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra". E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin. Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e seus camaradas. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Ela manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, foi profética ao alertar para as as consequências desse autoritarismo.
"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na ética e na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Futebol é arte e religião

Futebol é arte e religião
Frei Betto *

Sou um analfubola. Ou seja, nada entendo de futebol. Todas as vezes que me perguntam para qual time torço, fico tão constrangido como mineiro que não gosta de queijo.

Torci, na infância, pelo Fluminense, do Rio, e o América, de Belo Horizonte. Influência materna. Mais tarde, fui atleticano por um detalhe geográfico: minha avó morava defronte do estádio, na avenida Olegário Maciel, na capital mineira. E só. Sem contar a emoção de ter estado no Maracanã na noite de 14 de novembro de 1963 para assistir, misturado a 132 mil torcedores, aquele que é, por muitos, considerado o jogo dos jogos, a disputa entre Santos e Milan pelo Mundial Interclubes!

Hoje, me dou ao luxo de assistir, pela TV, às decisões de campeonato. Escolho para quem torcer. E não perco Copa do Mundo. Jogo do Brasil é missa obrigatória.

Eu disse missa? Sim, sem exagero. Porque, no Brasil, futebol é religião. E jogo, liturgia. O torcedor tem fé no seu time. Ainda que o time seja o lanterninha, o torcedor acredita piamente que dias melhores virão. Por isso, honra a camisa, vai ao estádio, mistura-se à multidão, grita, xinga, aplaude, chora de tristeza ou alegria, qual devoto que deposita todas as suas esperanças no santo de sua invocação.

O futebol nasceu na Inglaterra e virou arte no Brasil. Na verdade, virou balé. Aqui, tão importante quanto o gol são os dribles. Eles comprovam que nossos craques têm samba no pé e senso matemático na intuição. Observe a precisão de um passe de bola! No gramado, imenso palco ao ar livre, se desenha uma bela e estranha coreografia. Faça a experiência: desligue o som da TV e contemple os movimentos dos jogadores quando trombam. É uma sinfonia de corpos alados. Fosse eu cineasta, editaria as cenas mais expressivas em câmara lenta e as adequaria a uma trilha sonora, de preferência valsa, ritmando o flutuar dos corpos sobre o verde do gramado.

O Brasil conta com 190 milhões de técnicos de futebol. Todos dão palpite. E ninguém se envergonha de fazê-lo, como se cada um de nós tivesse, nessa matéria, autoridade intrínseca. Pode-se discordar da opinião alheia. Ninguém, no entanto, ousa ridicularizá-la.

Pena que a violência esteja contaminando as torcidas. Outrora, elas anabolizavam, com sua vibração, o desempenho dos jogadores. Agora, disputam no grito a prevalência sobre as torcidas adversárias. E se perdem no jogo, insistem em ganhar no braço. A continuar assim, em breve o campo será ocupado, não pelo time, e sim, como uma grande arena, pelas torcidas. Voltaremos ao tempo dos gladiadores, agora em versão coletiva.

Quando ouço a estridência de vuvuzelas, como um enxame de abelhas a nos picar os tímpanos, penso que os torcedores já não prestam atenção ao jogo. Querem transferir o espetáculo do gramado para as arquibancadas. O ruído da torcida passa a ser mais importante que o desempenho dos jogadores.

Nossa autoestima como nação se apoia, sobretudo, na bola. Não ganhamos nenhum prêmio Nobel; nosso único santo, frei Galvão, ainda é pouco conhecido; e nossa maior invenção - o avião - é questionada pelos usamericanos. Porém, somos o único país do mundo pentacampeão de futebol. Se a história dos países europeus do século XX se delimita por duas guerras mundiais, a nossa é demarcada pelas Copas. E nossos heróis mais populares eram ou são exímios jogadores de futebol. A ponto de o mais completo, Pelé, merecer o titulo de rei.

A Copa é um acontecimento tão importante para o Brasil que, no dia do jogo da nossa seleção, se faz feriado. Se vencemos, a nação entra em euforia. Se perdemos, somos tomados por uma triste estupefação. Como se todos se perguntassem: como é possível o melhor não ter vencido?

Gilberto Freyre bem percebeu que na arte futebolística brasileira mesclam-se Dionísio e Apolo: a emoção e a dança dos dribles são dionisíacos; a força da disputa e a razão das técnicas, apolíneos.

Criança, eu escutava futebol no rádio. Quanta emoção! Completava-se a imaginação com a descrição do narrador. Hoje, não há locutores na transmissão televisiva, apenas comentaristas. São lerdos, narram o óbvio e, palpiteiros, com frequência esquecem o que se passa no campo e ficam a tecer considerações sobre o jogo com seus assistentes.

"Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma", poetou Carlos Drummond de Andrade. Com toda razão.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Maricota e o mundo das letras" (Mercuryo Jovem), entre outros livros.