domingo, 26 de dezembro de 2010

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão

O sequestro das Luzes do Natal e a escuridão
Jung Mo Sung *

As propagandas de alguns dos maiores bancos privados do Brasil para esta época de Natal nos ensinam que devemos lutar contra o consumismo desenfreado, usar dinheiro com consciência, saber que o dinheiro é um instrumento, buscar a verdadeira felicidade, etc. É o espírito de Natal invadindo espaços que normalmente são dominados por ganância de mais dinheiro, ostentação e eficiência econômica acima de tudo.

Essas propagandas me fazem pensar: será que na época de Natal ocorre uma "conversão radical" entre os grandes capitalistas e executivos e eles percebem que a vida é mais do que a busca ilimitada de riqueza e a sua ostentação? Uma conversão que, mesmo sendo por muito pouco tempo, mostraria o "poder" do espírito do Natal? Gostaria de acreditar, mas a vida real me lembra que não devemos confundir retóricas de propaganda com as reais intenções dos capitalistas e a lógica econômica capitalista.

É claro que deve haver algum grande empresário ou executivo desejando que a vida realmente seja assim, com o uso consciente do dinheiro, consumo sustentável, justiça social acima da acumulação da riqueza nas mãos de poucos, etc. Mas, ele também vai tomar consciência de que uma coisa é propaganda do final de ano e a outra é a "vida dura e crua" dos negócios.

A apropriação ou o seqüestro do "espírito de Natal" pelas propagandas das grandes empresas nos lembram que não basta líderes de igrejas ou teólogos/as propagarem discursos enaltecendo o espírito do Natal, pregando que todos nós deveríamos viver de acordo com os valores natalino. Esses discursos, por mais bonitos e tocantes que possam ser, não fazem mais diferença no e para o mundo. Tudo ficou pasteurizado! E quando o anúncio da Boa Nova não faz mais diferença, não provoca mudança e não produz uma novidade, não é mais Evangelho.

Este é um dos grandes desafios do cristianismo em uma sociedade injusta que se legitima e funciona em nome dos valores ocidentais e cristãos. Esta identificação é tão profunda que a Igreja Católica, ou pelo menos a sua hierarquia que pensa que fala em nome de toda a Igreja Católica, luta para que os prédios das instituições públicas, as que representam o Estado e a sociedade, mantenham dentro delas o crucifixo. Isto para lembrar a todos/as que vivemos em uma sociedade "fundada" no cristianismo.

Os presépios luxuosos espalhados pelos pontos centrais das cidades e em espaços comerciais de grande circulação também são expressões dessa perda da diferença. Mais do que a perda da diferença entre o anúncio da boa-nova aos pobres e o anúncio dos grandes feitos poderosos do Império, ocorreu entre nós uma profunda inversão. Esses presépios luxuosos, que vemos mesmo dentro das igrejas, pretendem representar um fato dramático, oposto: o nascimento de um menino pobre, de uma família pobre, em um estábulo no meio dos animais.

Palavras românticas, embrulhadas em palavras espiritualizantes e religiosas, que tocam nossos corações são apropriadas para este tempo de Natal. Por isso elas fazem muito sucesso. Mas, quando até os grandes bancos, que estão na ponta do capitalismo global, as utilizam, é tempo de procurarmos novas palavras e imagens! Se não, a luz que nasce da manjedoura se misturará com as luzes potentes das grandes árvores de Natal ou decorações dos bancos e perderá a sua diferença, o seu brilho especial.

Cristianismo só manterá a sua relevância no mundo de hoje se for capaz de manter a sua diferença! Não uma diferença que o faça se sentir especial, superior aos demais, mas sim uma diferença que sempre nos mostre que as luzes do Império são como holofotes que iluminam os grandes monumentos e os grandes "sucessos" (financeiros, políticos, religiosos...) e tiram do foco, da nossa vista, os sofrimentos das pessoas marginalizadas que estão abandonadas na escuridão.

Quem só olha para o que o holofote foca, ou busca ser iluminado pelo holofote - a grande tentação, da grandeza, do sucesso e da fama -, fica cego para tudo o que está em sua volta. A nossa diferença deve se manifestar como a pálida luz que vem de uma "manjedoura em Belém" e ilumina a vida das pessoas que vivem e lutam contra a luz que gera a escuridão.

* Jung Mo Sung é Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor, juntamente com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres".

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quem tem medo da democracia?

Quem tem medo da democracia?
Emir Sader*

O momento mais trágico da história brasileira -o do golpe de 1964 e da instauração do pior regime político que o Brasil já teve, a ditadura militar- foi o momento da verdade da democracia. O momento revelou quem estava a favor e quem estava contra a democracia. E quem pregava e apoiava a ditadura. Foi um divisor definitivo de águas. O resto são palavras que o vento leva. A posição diante da ditadura e da democracia, na hora em que não havia outra alternativa, em que a democracia estava em risco grave -como se viu depois- foi decisiva para definir que é democrata e quem é ditatorial no Brasil.

Toda a velha imprensa, que segue ai -FSP, Globo, Estadão, Veja- pregou e apoiou o golpe militar, compactuou com a destruição da democracia no Brasil e enriqueceu com isso. Compactuou inclusive com a destruição da Última Hora, o único jornal que sempre resistiu à ditadura. O mesmo aconteceu com a maior parte da elite política da época - uma parte da qual ainda anda por aí, quase todos dando continuidade ao mesmo papel de inimigos da democracia, mesmo se disfarçados de democratas.

A história contemporânea é continuação daquela circunstância e da ditadura que ela instaurou. Se o amplo apoio ao governo Lula provêm, no essencial, em ter, pela primeira vez, diminuído a desigualdade, a injustiça e a exclusão social no Brasil, isto se deve, em grande parte, à monstruosa desigualdade que o modelo implantado pela ditadura -fundado na liberdade total ao capital e no arrocho dos salários, acompanhado da intervenção em todos os sindicatos- promoveu.

Da mesma forma que a polarização atual da política brasileira se centra de novo em torno da alternativa democracia/ditadura. Como naquela época, ambos os lados dizem falar em nome da democracia. Como naquela época, toda aquela imprensa e parte da elite política tradicional, falam da democracia -que eles mesmos ajudaram a massacrar ao pregar e apoiar a instauração da ditadura no Brasil-, mas representam a antidemocracia, representam os interesses tradicionais das elites, que resistem à imensa democratização por que passa o Brasil.

O golpe de 1964 foi realizado para evitar a continuidade de um processo de ampla democratização por que passava o Brasil. A política econômica do governo Jango, a extensão da sindicalização -aos funcionários públicos, aos trabalhadores rurais-, as lutas populares por mais direitos, o começo de reforma agrária, incorporavam crescentes setores populares a direitos essências. Mas isso não era funcional aos interesses das elites dirigentes, comprometidas com interesses econômicos voltados para o consumo das camadas mais ricas da sociedade -a indústria automobilística era o eixo da economia- e para a exportação, em detrimento do mercado interno de consumo popular.

O golpe e a ditadura militar fizeram um mal profundo para o Brasil, mas favoreceram o capitalismo fundado nas grandes corporações nacionais e internacionais, que lucraram como nunca - entre elas os próprios grupos econômicos da mídia. A gritaria de que a democracia estava em perigo, em 1964, serviu para acobertar a ditadura e o regime mais antipopular que já tivemos.

Agora o quadro se repete, já não mais como tragédia, mas como farsa. Vivemos de novo um processo de ampla e profunda democratização da sociedade brasileira. Dezenas de milhões de brasileiros, que nunca haviam tido acesso aos bens mínimos à sobrevivência, adquirem o direito de tê-los, para viver com um mínimo de dignidade. O mercado interno de consumo popular passou a ser elemento integrante essencial do modelo econômico.

A sociedade brasileira, que era a mais desigual da América Latina -que, por sua vez, é o continente mais desigual do mundo-, pela primeira vez, começou a ser menos desigual, menos injusta. Isso incomoda às elites conservadoras brasileiras. Já não podem dispor do Estado brasileiro -e das empresas estatais- como sempre dispuseram. Os donos de jornais, rádios e TVs, já não têm um presidente da república que almoce e jante com eles, com todas as promiscuidades decorrentes daí.

Sentem que o poder se lhes escapa das mãos. Que um presidente -nordestino e operário de origem- conquistou um prestigio e um apoio popular, apesar deles. Tem medo do povo. Quando se dão conta da democratização que começou a acontecer, logo retomam os seus fantasmas da guerra fria e gritam que a democracia está em perigo, quando o que está em perigo são os seus privilégios.

São os mesmos que confundiam seus privilégios com democracia -porque assimilavam democracia com regime que protegia seus interesses-, que agora tem medo da democracia, porque sentem que perdem privilégios. Privilégios de serem os únicos formadores de opinião publica, de serem os que filtravam quem podia ocupar a presidência republica e os outros cargos públicos importantes. Privilégios de terem acesso exclusivo a viajar, a comprar certos bens, a ir ao teatro. Privilégios de decidir as políticas governamentais, de eleger e destituir presidentes.

O que está em perigo são os privilégios das minorias. O que está em desenvolvimento no Brasil é o mais amplo processo de democratização que o país já conheceu. Um processo que apenas começa, que tem que quebrar o monopólio do dinheiro (poder do capital financeiro), da terra (poder dos latifundiários) e o poder da palavra (poder da mídia monopolista), entre outros, para que nos tornemos realmente um país justo, solidário e soberano.

Quem tem medo da democracia? As elites que sempre detiveram privilégios, que agora começam a perdê-los. O povo, os que têm consciência social, democrática, não tem nada a temer. Tem um mundo -o outro mundo possível- a ganhar.


* Emir Sader é filósofo, cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde coordena o Laboratório de Políticas Públicas.

domingo, 22 de agosto de 2010

A CRISE DO CAPITALISMO

Maioria não foi beneficiada por 30 anos de crescimento
Renda média per capita dos EUA, ajustada pela inflação, ficou estagnada em US$ 45 mil, entre 1978 e 2007

O boom verificado nas bolsas e no mercado imobiliário, a orgia de empréstimos e os gastos excessivos do consumidor mascararam por muito tempo o fato de que uma maioria avassaladora de americanos não teve nenhum benefício de 30 anos de crescimento. Em 1978, a renda média per capita para os homens nos EUA era de US$ 45.879.

Em 2007, essa renda, ajustada pela inflação, era de US$ 45.113.

Enquanto 90% dos americanos tiveram aumentos apenas modestos da sua renda desde 1973, ela quase triplicou para as pessoas da classe abastada. Em 1979, um terço dos lucros que o país produziu foi para os 1% mais ricos da sociedade americana. Hoje, essa cifra chega a 60%.

Em 1950, um executivo do alto escalão ganhava em média 30 vezes mais do que um operário. Hoje ele ganha 300 vezes mais. E 1% dos americanos detém 37% da riqueza da nação.

A desigualdade de renda nos EUA é maior hoje do que vinha ocorrendo desde a década de 20, exceto que ninguém notou isso.

O sonho americano tem poucas chances. Nos EUA, o livre mercado impera, e os indivíduos de baixa renda são vistos como os próprios culpados por isso. Aqueles que enriqueceram são aplaudidos e copiados. O único problema é que os americanos não se davam conta de que o sonho americano estava se tornando uma realidade para um número cada vez menor de pessoas.

Estatisticamente, os americanos menos ricos têm 4% de chances de fazer parte da classe média alta - uma taxa menor do que a observada em outras nações industrializadas.

Até agora, os políticos não conseguiram oferecer soluções para uma crise financeira que só piora. Washington ainda espera por empregos que não chegam.

O presidente Barack Obama e seu governo parecem fundamentar suas esperanças na ideia de que os americanos acabarão se tornando autossuficientes sem precisar de ajuda - de preferência fazendo o que sempre fizeram: gastando seu dinheiro. Os gastos do consumidor são responsáveis por dois terços da produção econômica americana.

Mas, apesar de o presidente do Federal Reserve (banco central americano), Ben Bernanke, continuar injetando dinheiro no mercado, e mesmo com o déficit do governo atingindo a soma enorme de US$ 1,4 trilhão, todos esses esforços parecem não estar dando resultado.

"As luzes estão se apagando por toda a América", escreveu na semana passada o Prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman, descrevendo as comunidades que não podiam se permitir manter mais suas ruas.

Sem poupança. O problema é que muitos americanos não podem mais consumir porque não têm nenhuma economia. Em alguns casos, suas casas perderam metade do valor e eles não têm mais condições de conseguir um empréstimo a juro mais baixo. Estão ganhando muito menos do que antes ou estão desempregados. Consequentemente, essa situação reduz ou elimina a sua capacidade de pagar impostos.

Dessa forma, muitos governos estaduais e municipais enfrentam enormes déficits do orçamento. No Havaí, as escolas ficam fechadas algumas sextas-feiras para economizar o dinheiro do Estado.

Um condado da Georgia eliminou todos os serviços públicos de ônibus. Colorado Springs, cidade de 380 mil habitantes, desligou um terço das luzes da iluminação pública para economizar eletricidade.

As luzes estão de fato se apagando em algumas áreas, porque a administração, insistindo na necessidade de reduzir os gastos, não está disposta a dar assistência financeira aos governos municipais. "Agora, os EUA estão palmilhando um caminho sem iluminação, sem pavimentação, que não leva a lugar nenhum", adverte o economista Paul Krugman.

FONTE: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100822/not_imp598476,0.php

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Socialismo com liberdade e democracia

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. Portanto o stalinismo não foi resultado de uma "contra-revolução burocratica", como insistem em dizer os trotskistas. O stalinismo é resultado dos graves erros existentes no leninismo, ou seja, no bolchevismo, que ao reinterpretar a concepção marxista da ditadura do proletariado como ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista, acabou por transforma-la em um regime arbitrário, sem restrições, que logo se transformaria no totalitarismo stalinista.

Essa ditadura se fez presente desde a vitória da revolução e o começo do governo soviético. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo soviético(dirigido pelos bolcheviques).

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado, pois bastava que algum individuo suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, e pertencesse a classe burguesa, para ser executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil(1918-1922), o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra". E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin. Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e seus camaradas. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Ela manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, foi profética ao alertar para as as consequências desse autoritarismo.
"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na ética e na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Futebol é arte e religião

Futebol é arte e religião
Frei Betto *

Sou um analfubola. Ou seja, nada entendo de futebol. Todas as vezes que me perguntam para qual time torço, fico tão constrangido como mineiro que não gosta de queijo.

Torci, na infância, pelo Fluminense, do Rio, e o América, de Belo Horizonte. Influência materna. Mais tarde, fui atleticano por um detalhe geográfico: minha avó morava defronte do estádio, na avenida Olegário Maciel, na capital mineira. E só. Sem contar a emoção de ter estado no Maracanã na noite de 14 de novembro de 1963 para assistir, misturado a 132 mil torcedores, aquele que é, por muitos, considerado o jogo dos jogos, a disputa entre Santos e Milan pelo Mundial Interclubes!

Hoje, me dou ao luxo de assistir, pela TV, às decisões de campeonato. Escolho para quem torcer. E não perco Copa do Mundo. Jogo do Brasil é missa obrigatória.

Eu disse missa? Sim, sem exagero. Porque, no Brasil, futebol é religião. E jogo, liturgia. O torcedor tem fé no seu time. Ainda que o time seja o lanterninha, o torcedor acredita piamente que dias melhores virão. Por isso, honra a camisa, vai ao estádio, mistura-se à multidão, grita, xinga, aplaude, chora de tristeza ou alegria, qual devoto que deposita todas as suas esperanças no santo de sua invocação.

O futebol nasceu na Inglaterra e virou arte no Brasil. Na verdade, virou balé. Aqui, tão importante quanto o gol são os dribles. Eles comprovam que nossos craques têm samba no pé e senso matemático na intuição. Observe a precisão de um passe de bola! No gramado, imenso palco ao ar livre, se desenha uma bela e estranha coreografia. Faça a experiência: desligue o som da TV e contemple os movimentos dos jogadores quando trombam. É uma sinfonia de corpos alados. Fosse eu cineasta, editaria as cenas mais expressivas em câmara lenta e as adequaria a uma trilha sonora, de preferência valsa, ritmando o flutuar dos corpos sobre o verde do gramado.

O Brasil conta com 190 milhões de técnicos de futebol. Todos dão palpite. E ninguém se envergonha de fazê-lo, como se cada um de nós tivesse, nessa matéria, autoridade intrínseca. Pode-se discordar da opinião alheia. Ninguém, no entanto, ousa ridicularizá-la.

Pena que a violência esteja contaminando as torcidas. Outrora, elas anabolizavam, com sua vibração, o desempenho dos jogadores. Agora, disputam no grito a prevalência sobre as torcidas adversárias. E se perdem no jogo, insistem em ganhar no braço. A continuar assim, em breve o campo será ocupado, não pelo time, e sim, como uma grande arena, pelas torcidas. Voltaremos ao tempo dos gladiadores, agora em versão coletiva.

Quando ouço a estridência de vuvuzelas, como um enxame de abelhas a nos picar os tímpanos, penso que os torcedores já não prestam atenção ao jogo. Querem transferir o espetáculo do gramado para as arquibancadas. O ruído da torcida passa a ser mais importante que o desempenho dos jogadores.

Nossa autoestima como nação se apoia, sobretudo, na bola. Não ganhamos nenhum prêmio Nobel; nosso único santo, frei Galvão, ainda é pouco conhecido; e nossa maior invenção - o avião - é questionada pelos usamericanos. Porém, somos o único país do mundo pentacampeão de futebol. Se a história dos países europeus do século XX se delimita por duas guerras mundiais, a nossa é demarcada pelas Copas. E nossos heróis mais populares eram ou são exímios jogadores de futebol. A ponto de o mais completo, Pelé, merecer o titulo de rei.

A Copa é um acontecimento tão importante para o Brasil que, no dia do jogo da nossa seleção, se faz feriado. Se vencemos, a nação entra em euforia. Se perdemos, somos tomados por uma triste estupefação. Como se todos se perguntassem: como é possível o melhor não ter vencido?

Gilberto Freyre bem percebeu que na arte futebolística brasileira mesclam-se Dionísio e Apolo: a emoção e a dança dos dribles são dionisíacos; a força da disputa e a razão das técnicas, apolíneos.

Criança, eu escutava futebol no rádio. Quanta emoção! Completava-se a imaginação com a descrição do narrador. Hoje, não há locutores na transmissão televisiva, apenas comentaristas. São lerdos, narram o óbvio e, palpiteiros, com frequência esquecem o que se passa no campo e ficam a tecer considerações sobre o jogo com seus assistentes.

"Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma", poetou Carlos Drummond de Andrade. Com toda razão.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais. Autor de "Maricota e o mundo das letras" (Mercuryo Jovem), entre outros livros.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Caminhos do futuro

Caminhos do futuro

Por Emiliano José

Quase desnecessário dizer que Eric Hobsbawm tem se afirmado como um dos maiores intelectuais do nosso tempo. Por isso, compensa discutir, reverberar a conferência, ou parte dela, publicada pela Carta Maior, no dia 13 de outubro. A fala dele foi feita no primeiro dia do World Political Forum, em Bosco Marengo, na Alexandria. O tema era mais do que próprio para a contemporaneidade: qual futuro depois do comunismo? É, indagação, como deve ser. Peço licença aos leitores para falar um pouco extensivamente dessa fala.

Logo de cara, uma tese forte: todos os países do Leste, e os do Oeste também, devem sair da ortodoxia do crescimento econômico a todo custo e dar mais atenção à equidade social. Os países ex-soviéticos, na visão dele, ainda não superaram as dificuldades da transição para o novo sistema. Diria, de outra maneira, que eles mergulharam desordenadamente na política neoliberal.

O século breve, como ele denomina o século XX, teria sido marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Só um intelectual do porte de Hobsbawm poderia dizer isso, sem medo. Foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos - o "socialismo", e as aspas são dele, identificado com economias de planejamento central tipo soviético, e o "capitalismo", também devidamente aspeado, que englobava todo o resto.

Essa contraposição nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Corajosa constatação de Hobsbawm, outra vez. Faz tremer os que copiam fórmulas, à direita e à esquerda. O exclusivismo de um ou de outro faliu. As economias do modelo soviético lá pelos anos 80. As do fundamentalismo de mercado anglo-americano, agora, no setembro passado.

O fim do "socialismo" foi catastrófico. As repercussões seguem até hoje, ao menos nos países da ex-URSS. A China, e lá vem ele com sua ousadia e firmeza intelectual, preferiu outro caminho capitalista, diferente do neoliberalismo, optando pelo modelo mais, como ele diria, "dirigista" das economias "tigres". Abriu caminho, assim para seu gigantesco salto econômico para frente, com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas, e eu completaria, ecológicas. A crise do capitalismo, essa que estamos ainda vivendo, terá conseqüências que ainda não dominamos.

Mesmo que não se saiba, ainda, quais as mudanças que a crise econômica em curso pode provocar, parece não haver dúvida, na visão de Hobsbawm, de que está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia Oriental.

No desenvolvimento da conferência, ele chega a uma primeira e fundamental conclusão: não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo. Delinear a economia do amanhã, no entanto, é, na visão dele, a parte menos relevante a nos preocupar em relação ao futuro. "A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim nas suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate".

Parece surpreendente, e não parece muito marxista, não? Não parece para os que cultuam dogmas. Ele explica isso ilustrando com dois aspectos que considera importantes. O primeiro é que o fim do socialismo - ele fala em fim do comunismo - implicou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras. Foi um inesperado e brusco terremoto social.

Corretamente, ele afirma que serão necessárias diversas décadas antes que as sociedades pós-comunistas encontrem alguma estabilidade no seu modo de viver. E que algumas das conseqüências dessa desagregação social poderão exigir ainda um tempo maior para serem combatidas.

O segundo aspecto, na visão dele, de muita importância, é que tanto a política ocidental do neoliberalismo quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou, subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB. Sempre o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Com isso, minaram - e nos ex-países socialistas até destruíram - os sistemas de assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades públicos.

O objetivo de uma economia não é o ganho. É o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim. É um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Um pensamento que lembra muito Celso Furtado. "Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI."

A alguns a tese de Hobsbawm, aos marxistas ortodoxos, aos que vivem com os olhos no passado, parecerá idealista. Ela, no entanto, corresponde a uma análise muito densa da situação mundial, e consegue postular uma sociedade de bem-estar a partir das potencialidades do setor público e privado, não se rendendo às teses neoliberais, próprias do fundamentalismo de mercado, e nem ao estatismo completo, que levou ao desastre final dos anos 80.

Se olharmos para o Brasil, se olharmos para o projeto que o governo Lula vem desenvolvendo, para o contraponto que se fez ao neoliberalismo do tucanato sem, no entanto, descartar o dinamismo do setor privado, encontraremos muita coisa do que Hobsbawm está defendendo.

Lula tem dito que não quer o crescimento econômico por si só. Quer que ele garanta melhores condições de vida ao nosso povo. Para que consiga tirar as pessoas da miséria absoluta, como já conseguiu com mais de 20 milhões de pessoas.

E este é um governo que tem tentado, das mais variadas formas, constituir novos valores. Sejam os referentes aos negros. Sejam aqueles ligados às mulheres. Aos jovens. Aos homossexuais. O respeito aos movimentos sociais. A difusão de uma idéia de solidariedade social. É só olhar para o Bolsa-Família. Tudo isso representa uma visão política e moral, e aqui no sentido amplo da palavra. Creio que não é por acaso que o mundo tem voltado os olhos para o Brasil. É porque por aqui está se desenhando, ainda em fase inicial, um novo caminho, o da revolução democrática.

A caminhada em direção a uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais igualitária, não é simples. E nem é uma caminhada que se baseie em modelos acabados. Se há a idéia, e há, de uma sociedade socialista, não se pode mais imaginá-la nos termos daquilo que foi construído no século XX.

Há de ser uma proposta, que se vai construindo passo a passo, realizando transformações na vida das pessoas, e que necessariamente comporta a presença de setores não-estatais e privados, tudo subordinado ao interesse público, e onde o Estado continuará a ocupar por muito, muito tempo um papel essencial. E com a democracia sendo o leito fundamental por onde passam essas transformações.

Emiliano José é deputado federal(PT/BA), doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação,jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados.

Publicado no site da Carta Capital (21/10/2009) 

‘Economia: três usos do dinheiro’

‘Economia: três usos do dinheiro’

Leonardo Boff *

A Campanha da Fraternidade deste ano, agora ecumênica, vai propor que as milhares de comunidades cristãs, paroquiais e de base discutam o tema: Economia e Vida, tema central devido à crise econômica mundial que deixou mais de 60 milhões de desempregados.

Trata-se de resgatar o sentido originário da economia como a atividade destinada a garantir a base material da vida pessoal, social e espiritual. Ela não pode ocupar todos os espaços, como ocorreu nos últimos decênios. A sociedade mundial virou uma sociedade de mercado e todas as coisas, do sexo à SS. Trindade, viraram mercadorias com as quais se pode ganhar dinheiro. A economia é parte de um todo maior.

Para facilitar a compreensão, distingo três espaços da atividade humana, um dos quais ocupado pela economia. Em primeiro lugar somos seres de necessidade: precisamos comer, beber, ter saúde, morar e outros serviços. Nisso, todos dependemos uns dos outros para atender a esta infra-estrutura. É o campo da economia. Em segundo lugar somos seres de relação: colaboramos com os outros, instauramos direitos e deveres, observamos leis e juntos construímos o bem comum. É o lugar da política. Por fim, somos seres de criação: cada pessoa possui habilidades, não só reproduz o que está ai, mas, cria, exerce sua liberdade e faz a sociedade avançar. É o âmbito da cultura. Todas se entrelaçam, mesmo com conflitos que não invalidam esta estrutura básica.

Vamos nos concentrar num capítulo fundamental da economia que é o uso do dinheiro. No começo não havia dinheiro, mas a troca: eu lhe dou um kg de arroz e você me dá três garrafas de leite. Reinava a relação direta e a confiança de que as trocas eram justas. Mas ao sofisticar-se a sociedade, entrou o dinheiro como meio de troca. E aí surgiu um risco, pois dinheiro significa poder que obedece a esta lógica: "quem não tem quer ter; quem tem diz: quero ter mais; e quem tem mais diz: nunca é suficiente". Ai surge a especulação que é ganhar sem trabalhar, dinheiro fazendo dinheiro. Mas o dinheiro tem três usos legítimos: para comprar, para economizar e para doar.

Dinheiro para comprar é necessário para o consumo daquilo que precisamos. Mesmo assim devemos sempre colocar a pergunta: compro por que preciso ou por que sigo a propaganda ou a moda? Quem fabrica, explora os funcionários? Ao produzir, respeita os direitos humanos e a natureza ou polui e usa demasiados pesticidas? Esse dinheiro é para o hoje.

O segundo uso do dinheiro é aquele para economizar. É coisa para o amanhã. Não sabemos as voltas que a vida dá: doença, desemprego, aposentaria insuficiente. Muitos nem conseguem economizar, pois, consomem tudo na sobrevivência. Mas se sobrar, onde colocar este dinheiro? Deixá-lo no colchão é dinheiro morto que nada produz. Aqui surgem os bancos que guardam o dinheiro. Fazem-no render, ao emprestá-lo a quem quer produzir e que não dispõe de capital próprio. Este recebe o dinheiro como empréstimo, mas, faz rendê-lo na produção, paga algum juro ao banco que repassa uma parte ao dono do dinheiro. Uma pessoa consciente quer saber para quem o dinheiro é emprestado: para construir armas, para apoiar empresas que devastam a natureza? Extraordinária é a decisão em Bangladesh e no Brasil de criar o microcrédito para apoiar pobres que querem produzir.

O terceiro uso do dinheiro é para doar. O dinheiro não é para a acumulação, mas para a circulação. Se atendo com suficiência e decência minhas necessidades, se tenho economias que me dão certa tranquilidade para o futuro, se tenho garantido o bem-estar e certo futuro à família, a doação é um ato de grande desprendimento. Expressa a gratidão pelo dom da vida, da saúde, do amor recebidos dos outros. É altamente ético doar para os flagelados do Haiti, para apoiar projetos de combate à prostituição infantil ou creches para populações da periferia. E aí sentimos que ao dar, recebemos a alegria impagável de ter feito o bem e de ter amado o outro.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

O Socialismo e a Ecologia

O Socialismo e a Ecologia
Roberto Malvezzi, Gogó *

A questão ecológica trouxe novos desafios aos que têm convicções socialistas. Significa que o instrumental analítico histórico dos socialistas não é mais suficiente, embora continue essencial, para compreender a realidade.

O capitalismo não tem solução para a questão ecológica. O capitalismo verde é um jogo de aparências, de marketing, não uma solução para problemas reais. Basta ver que o "mercado de carbono", assim como os "selos verdes", servem para alimentar a propaganda de certas empresas, mas não para resolver o problema fundamental do planeta. Portanto, não está em discussão nesse texto o capitalismo esverdeado, mas as insuficiências dos instrumentais analíticos do socialismo para compreender a nova realidade em que se encontra a humanidade e o planeta no qual habitamos. Hoje precisamos incorporar em nossas análises os instrumentos analíticos que nos oferecem as ciências da Terra, particularmente a climatologia. Esse instrumental analítico ainda está para ser organicamente construído.

A dificuldade da esquerda, em geral, é que não consegue compreender e respeitar a "alteridade da Terra". É difícil para quem pensa deter a chave de interpretação da história, admitir que a Terra é autônoma em relação ao ser humano, que tem suas próprias leis, enfim, que ela não depende do ser humano, mas o ser humano depende dela. É a quarta humilhação humana. As três primeiras nos foram ensinada por Lúcio Flório, um teólogo argentino.

A primeira humilhação é que nos julgávamos o centro do universo e descobrimos que a Terra é um planeta que gira me torno do sol, uma estrela de quinta categoria numa franja de uma galáxia. A segunda humilhação nos foi imposta por Darwin. O ser humano, biologicamente, não é mais que um descente dos macacos. A terceira humilhação nos foi imposta por Freud. Cada pessoa é um poço de desejos e interesses instintivos e inconfessos. A quarta humilhação humana eu acrescento por conta própria e nos foi imposta por Lovelock: a Terra é um ser vivo autônomo que não depende do ser humano, ao contrário, o ser humano depende dela para existir.

A esquerda está aberta para compreender e respeitar as leis da Terra? Ou vai continuar dependendo dos paradigmas produtivistas dos capitalistas?

Enfim, hoje não há como falar do socialismo do século XXI sem considerar teórica e praticamente a queda do muro de Berlim e os desafios que a crise ecológica nos coloca. Do contrário vamos continuar interpretando a realidade, propondo soluções estruturais, com as calças curtas de nossa infância.


* Roberto Malvezzi, Gogó é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Deus e o dinheiro

Deus e o dinheiro
Antônio Mesquita Galvão *

A Campanha da Fraternidade nem tinha sido bem lançada e a mídia nacional, nas edições da Quarta-feira de Cinzas já havia publicado vários textos que revelavam uma posição defensiva, quando não antagônica, com o fito de tachá-la de polêmica e até anacrônica, visando desmerecer a reflexão proposta pela Igreja do Brasil, a partir da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A mídia do Brasil, capitalista ou a serviço de grupos econômicos não admite qualquer reflexão que contrarie seus ideários. Uma chamada de consciência como a da CF 2010 converte-se num insulto, quando não uma ameaça.

Nesse esforço se viu muita gente criticando o lema "Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro" como egresso de ideologias socialistas, resumo de conclaves, como o "fórum social mundial" ou fruto de outros movimentos, cujas palavras-de-ordem atacam os ricos e o capital. Há nessas críticas uma deliberada intenção de ataque (à Igreja) e defesa (do capitalismo), uma vez que sempre que se combate a ganância, a exploração e a exclusão que brotam do mau uso do dinheiro, a oposição, o boicote e a censura evidenciam que se tocou na ferida de adversários poderosos.

Na verdade, o "Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro" não brota de nenhuma cartilha de inspiração marxista, mas do Evangelho de Mateus (6,24) e de Lucas (16,13). Os textos originais alertavam para a impossibilidade de servir a Mámon, que no simbolismo palestino apontava para uma divindade cananéia, que se alimentava de dinheiro, indo inclusive ao sacrifício de pessoas humanas para esse fim. Ao proibir os cultos a Mámon ao invés de a Deus, os antigos repudiavam aquilo que chamavam de idolatria. Hoje, em alguns casos, a idolatria do mercado, o mercantilismo e algumas formas de globalização, por serem excludentes e sectárias, trazem consigo muitas características daquela pantagruélica entidade.

A "chave de leitura" do texto básico da campanha está no ato entender o sentido do verbo servir. Nós servimos a Deus porque é o Senhor e usamos o dinheiro (porque ele é coisa) para nosso bem-estar. As distorções econômicas, sociais e éticas ocorrem a partir do momento em que desprezamos a Deus e nos tornamos ou escravos do dinheiro. Não é crime nem pecado ter dinheiro, como resultado do trabalho e de alguma atividade ética. O ilícito está em acumular a partir da exploração dos outros, da montagem de esquemas espúrios e da entronização do dinheiro em detrimento do crescimento das pessoas. O dinheiro é coisa boa e útil desde que não seja transformado em divindade que exija culto e subserviência.

*Antônio Mesquita Galvão é Doutor em Teologia Moral

Economia e Vida

Economia e Vida
Manfredo Araújo de Oliveira *

As Igrejas cristãs do Brasil que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs decidiram realizar este ano a terceira Campanha da Fraternidade Ecumênica. Este gesto pretende ser realizado no sentido de aprofundar nossa vida democrática, porque o que se quer na realidade é no reconhecimento pleno e explícito da laicidade do Estado dar uma contribuição para a construção de uma sociedade verdadeiramente promotora da dignidade do ser humano. Isto já se revela no testemunho destas igrejas de respeito à totalidade da existência humana e no seu empenho na busca daquele conjunto de condições sociais que possibilitam o desenvolvimento integral da personalidade humana.

O propósito da campanha já se exprime na explicitação dos objetivos fundamentais: "É necessário conclamar a todos e todas para construir uma nova sociedade, educar essa mesma sociedade afirmando que um novo modelo econômico é possível, e denunciar as distorções da realidade econômica existente, para que a economia esteja a serviço da vida". Em última análise o que se deseja é que a campanha seja capaz de mobilizar não só estas igrejas, mas as forças vivas da sociedade civil no sentido da procura de respostas concretas e eficazes às necessidades básicas das pessoas e à salvaguarda da natureza a partir de mudanças profundas, tanto a nível pessoal como comunitário e estrutural, derivadas de uma visão de mundo em que a justiça e a solidariedade constituam valores estruturantes.

Onde se situa para estas igrejas a questão de fundo que marca hoje nossas formações sociais? Na contraposição entre duas lógicas: a lógica do mercado e a lógica da vida. Em primeiro lugar trata-se de um fato: nossas sociedades têm no mercado o mecanismo central de sua estruturação, ou seja, são sociedades em que bens e serviços são vendidos e comprados, em que se produz em função da venda e da compra. No entanto se tem consciência que isto não é um fato qualquer, porque a maneira de organizar a sociedade em todos os seus níveis toca diretamente a dignidade do ser humano e sua capacidade de se desenvolver na família e na sociedade.

Por esta razão se desce a um segundo nível de indagação e se procura entender a lógica que rege este processo que é a lógica da acumulação do capital independentemente se isto conduz à destruição da natureza e à produção sistêmica da miséria de muitas famílias. Assim, chega-se à conclusão que todo este processo não está organizado em função da vida humana o que faz com que exigências humanas importantes para a vida digna não possam simplesmente ser satisfeitas através do mecanismo de mercado. É isto que permite um julgamento ético desta configuração da vida social a partir da constituição do ser humano e de sua dignidade. Numa palavra, a economia é uma dimensão fundamental da vida e por esta razão o julgamento de suas instituições e de suas políticas se deve fazer a partir de um critério básico: a maneira de elas protegerem ou destruírem a vida e a dignidade da pessoa humana.

Daí a afirmação ética básica: "Cada pessoa tem o direito fundamental à vida e, portanto, o direito a todas as coisas necessárias para uma vida de qualidade. As pessoas têm direito a viver e a satisfazer as necessidades básicas. Essas não consistem apenas em alimentação, vestuário e moradia, mas também educação, saúde, segurança, lazer, garantias econômicas e oportunidades de desenvolver todas as capacidades de que a pessoa é dotada". Ora é precisamente esta vida que está ameaçada em nossa sociedade em que viviam em 2007 10,7 milhões de indigentes (famintos) e 46, 3 milhões de pobres segundo dados fornecidos pelo Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade (IETS). A conjugação entre esta situação, a lógica do processo econômico que nos rege e seu julgamento ético nos leva a uma exigência fundamental: a busca de uma nova forma de organização social que ponha a vida humana acima dos interesses do mercado.

* Manfredo Araújo de Oliveira é Doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital.

REDUÇÃO DA JORNADA, SEM REDUÇÃO DE SALÁRIO JÁ!!

Quando a democracia representativa dos liberais surgiu, não defendia o voto universal. Apenas quem possuia propriedade e pagava impostos é que podia votar, portanto o voto era censitario. Os trabalhadores estavam excluidos, e foram os comunistas e os anarquistas que os organizaram, para que lutando por seus direitos e contra a opressão capitalista, se conquistasse o voto secreto e universal, o direito de greve, a legalização dos sindicatos e dos partidos operários e populares. Nessa luta foram também conquistadas a jornada de trabalho de oito horas(até o século XIX, a jornada era superior as 14 horas), férias remuneradas de trinta dias e uma série de outros direitos trabalhistas. O capitalismo se democratizou graças a luta dos movimentos operários e populares, portanto a direita e os liberais não podem sair dizendo que são defensores da democracia, pois se dependesse deles ainda viveriamos uma realidade de grande opressão.

A jornada de 48 horas semanais, férias remuneradas, salário mínimo, e a maior parte dos direitos trabalhistas em nosso país, foi conquista da chamada Era Vargas, que a direita acusa de "populista". E para se chegar a isso, ocorreram diversas lutas do movimento operário, a princípio sobre a liderança dos anarquistas, e após a fundação do velho "partidão"(o PCB), sobre a liderança dos comunistas. Por isso eu digo. Apesar do desastre que foi a URSS e demais países do finado "socialismo real", é inegavel a contribuição dos comunistas para o desenvolvimento da democracia, em especial por defender uma sociedade onde não mais exista a exploração do homem pelo homem, e a partir disso organizar os trabalhadores para a luta anti-capitalista. O socialismo burocratico oriundo da tradição autoritaria do bolchevismo precisa ser eliminado, mas não o projeto socialista, que precisa ser refundado, resgatando o melhor do pensamento marxista.

Mas e hoje, como estão as mobilizações populares em favor da ampliação da democracia em nosso país?

A Constituição de 1988, reduziu a jornada de trabalho para 44 horas semanais. Em muitos países europeus, a jornada é de 35, 36 horas, mas na maioria deles é de 40 horas semanais. Portanto é mais do que justa a redução da jornada para 40 horas semanais, sem redução de salários. O povo brasileiro e a classe trabalhadora em particular, deve se mobilizar em favor da aprovação da PEC 231/95. É uma questão de justiça!

Redução da jornada é bom para o Brasil
Escrito por Artur Henrique, presidente da CUT Nacional

A opinião da Fiesp sobre a redução da jornada semanal de trabalho é sempre a mesma, a despeito do que a experiência prática tem demonstrado ao longo do tempo. Em nota emitida ontem, a Federação tenta ocultar essa mesmice, porém, fica claro que a entidade só tenta adaptar os velhos argumentos de acordo com as suas conveniências.

Em 1988, ano da última redução constitucional da jornada de trabalho semanal, a mesma Fiesp dizia que 44 horas semanais representariam uma tragédia para o Brasil. Nada daquilo que a Fiesp profetizava aconteceu em decorrência de uma jornada semanal menor. Em nome da já conhecida verdade dos fatos, é preciso dizer que momentos de deterioração econômica nos períodos seguintes a 1988 não tiveram ligação com as 44 horas.

Em outra circunstância, observada no primeiro semestre de 2009, a Fiesp saiu em defesa da redução da jornada de trabalho, alegando que a medida impediria milhões de demissões iminentes, causadas pela crise econômica internacional. Parece curioso que uma mesma medida possa aplacar ondas de demissões, num caso, mas causar desemprego, em outro.

É certo que a Fiesp, no início de 2009, defendia também a redução de salário concomitante à redução da jornada. Esse detalhe serve para explicitar as reais razões da Fiesp e para demonstrar o que de fato está em jogo: o que a Fiesp quer é continuar sempre ampliando as margens de lucro, o excedente de capital, e manter o inegável crescimento dos índices de produtividade só para si, sem repartir com os trabalhadores e trabalhadoras aquilo que é fruto direto de sua participação.

Com essa posição conservadora, anacrônica de fato, a Fiesp tenta ocultar benefícios que a redução trará para a maioria da sociedade e para, inclusive, a pujança econômica do Brasil.

Um desses benefícios será a maior possibilidade de os trabalhadores e trabalhadoras qualificarem-se educacional e profissionalmente. Com as extensas jornadas atuais – no setor de comércio e serviços, por exemplo, a média semanal é de até 56 horas em São Paulo, segundo o Dieese –, mais o longo tempo de deslocamento de casa para o trabalho nos centros urbanos, é simplesmente impossível para grandes contingentes de brasileiros investir em sua formação. É bom que se diga: quando a Fiesp e demais entidades reclamam da qualificação da força de trabalho, negam-se a admitir que só aprofundam as dificuldades com posicionamentos como esse em relação às 40 horas.

A redução das atuais 44 horas para 40 horas também pode melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras, dando-lhes mais tempo para ficar com a família, para o lazer, para a cultura e para o que mais lhes aprouver ou for possível.

Isso vai se refletir no cotidiano das cidades, impulsionando o setor de comércio e serviços, e minimizar também os problemas de deslocamento urbano.

A redução da jornada sem redução de salário vai, especialmente, distribuir um pouco dos enormes ganhos que a economia brasileira vem acumulando, com ou sem crise internacional. E vai gerar novos empregos, como demonstram projeções do Dieese.

Trata-se de uma questão de escolha – por parte dos empresários – e de pressão – por parte dos trabalhadores. Por exemplo: em 2009, segundo estudo realizado por uma consultoria e divulgado nesta semana, as empresas brasileiras bateram recorde histórico no pagamento de dividendos. Lucratividade há, o que falta é, infelizmente, espírito nacionalista e projeto de futuro para uma parcela de nosso empresariado.

O socialismo marxista no século XXI

Apesar do desastre que foi a URSS e demais países do finado "socialismo real", é inegavel a contribuição dos comunistas para o desenvolvimento da democracia, em especial por defender uma sociedade onde não mais exista a exploração do homem pelo homem, e a partir disso organizar os trabalhadores para a luta anti-capitalista. O socialismo burocratico oriundo da tradição autoritaria do bolchevismo precisa ser eliminado, mas não o projeto socialista, que precisa ser refundado, resgatando o melhor do pensamento marxista.

"Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tomaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem .. Será que esse cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos esses segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?" (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

A esquerda precisa romper com o dogmatismo, refundando o socialismo segundo a realidade da luta de classes no século XXI. O cientista político Carlos Nelson Coutinho, que na minha opinião é um dos grandes nomes do marxismo em nosso país, deixou isso bem claro em recente entrevista a Caros Amigos. Ele é bem mais otimista do que eu, pois afirma que as condições objetivas para o socialismo já estão presentes. Não concordo com ele, mas reconheço que a luta pela redução da jornada de trabalho é um fator fundamental na luta pela conquista da hegemonia. E não somente a luta pela redução para 40 horas, mas acima de tudo a luta pela redução da jornada para 36 horas semanais. A CUT e a CTB não podem se limitar a luta pelas 40 horas, que diga-se de passagem já deveria ter sido aprovada por um governo que se diz democrático e popular.

"Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do "Capital", diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro "A Ideologia Alemã" que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz critica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego pata todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito .. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Uma das prioridades da esquerda, em sua luta pela construção de uma sociedade socialista no século XXI, é o reconhecimento da necessidade de conciliar socialismo com liberdade e democracia. Carlos Nelson Coutinho toca nessa questão na entrevista concedida a Caros Amigos.

"Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado "socialismo real" fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, "Democracia como valor universal", não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vinculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão "marxista-leninista", o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Nessa mesma entrevista, Marcelo Salles pergunta: "E nesse "Democracia como valor universal", você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia ..."

Coutinho respondeu: "Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase."

Nessa entrevista, Carlos Nelson Coutinho afirma que falta a esquerda um projeto de socialismo. Concordo com ele, mas afirmo que isso é resultado da incapacidade da esquerda em romper com os graves erros do modelo bolchevique, que a faz limitar-se a criticar apenas o stalinismo, não promovendo assim uma autêntica autocritica. E também tem a incapacidade da esquerda em romper com o dogmatismo, que a faz transformar o pensamento marxista em uma espécie de religião.

"Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, esses partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Eu tenho muito respeito pela obra do cientista político Carlos Nelson Coutinho, afinal foi um dos primeiros intelectuais marxistas a afirmar em nosso país, que socialismo sem democracia não é socialismo. Coutinho é filiado ao PSOL, e professor de teoria política na UFRJ. Entretanto eu vejo nele uma dificuldade muito grande em reconhecer que foi Lenin, o responsável pela construção de um socialismo autoritário e burocratico. Nessa entrevista publicada na revista Caros Amigos, Marcelo Salles pergunta a ele: "Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único ..."

Coutinho responde: "Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo, marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique, dizia o seguinte: liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão."

Carlos Nelson Coutinho está certo ao dizer que a filosofia marxista não defende regime de partido único, e que o socialismo exige a liberdade de expressão. Mas está errado ao não reconhecer que o socialismo bolchevique já era uma degeneração do marxismo.

Oras, eu conheço bem a história da Revolução Russa e sei perfeitamente que logo após a vitória da mesma, os bolcheviques excluiram a participação da ala internacionalista dos mencheviques do governo soviético, mesmo eles tendo se oposto a Primeira Guerra Mundial e ao governo provisório. O próprio Trotsky afirmou para Yuri Martov, lider dos mencheviques internacionalistas, que o lugar deles era na "lata de lixo da história". E mais, os socialistas revolucionários de esquerda realmente participaram do governo, mas de forma minoritaria. E a briga que Coutinho se refere ocorreu em março de 1918, ou seja, apenas quatro meses após a revolução. E essa briga ocorreu pela oposição dos socialistas revolucionários de esquerda ao Tratado de Paz de Brest Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial, cedendo grande parte de seu território aos alemães. Portanto a quem Coutinho quer enganar??? Os bolcheviques nunca toleraram a democracia, enquanto os socialistas revolucionários de esquerda eram passivos e obedeciam ao que os bolcheviques mandavam, tudo bem. Mas quando passaram a discordar....

Se os bolcheviques eram tão democráticos, porque dissolveram a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918??? Ela havia sido eleita democraticamente, e a maioria absoluta era composta por representantes da esquerda. Portanto nada havia de burguesa. Mas como os bolcheviques eram minoria... E depois, porque proibiram todos os partidos, com excessão do próprio partido deles??? A revolta que os socialistas revlucionários de esquerda promoveram em julho de 1918, não foi contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz com a Alemanha. E os mencheviques internacionalistas, liderados por Martov, apesar de fazerem oposição ao governo bolchevique, exigindo liberdade de imprensa e de reunião, apoiavam o Exército Vermelho em sua luta contra os reacionários do Exército Branco. Não havia portanto nenhuma justificativa racional, fora o autoritarismo bolchevique, para a absurda introdução do regime de partido único.

O socialismo na versão leninista, ou seja, bolchevique, nada tem de democrático e só pode funcionar como regime de partido único, mesmo que legalmente existam outros partidos, como por exemplo acontece na China, onde existem outros oito partidos além do Partido Comunista Chinês, mas todos sabemos que são apenas decorativos. O mesmo também acontece na Coréia do Norte, onde existem outros dois partidos além do Partido do Trabalho, mas esses dois partidos são ainda mais decorativos do que os partidos existentes na China.

E quem afirma isso não sou eu, mas o historiador marxista Jacob Gorender, que em "Marxismo sem utopia" faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)


A verdade é que a "ética bolchevique" sempre encarou a defesa da democracia e do sistema republicano como um movimento meramente "tático", tanto que Lenin argumenta em "A revolução proletária e o renegado Kautsky", escrito em 1918, que "A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não está preso por nenhuma lei."

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

O mais engraçado é que nessa mesma entrevista, respondendo ao mesmo Marcelo Salles, Carlos Nelson Coutinho acaba reconhecendo que Lenin teve responsabilidade no surgimento do stalinismo. O problema é que os psolistas limitam muito a sua critica a Lenin e por isso acabam prisioneiros do bolchevismo.

"Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada." (Carlos Nelson Coutinho; revista Caros Amigos)

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin.

O stalinismo não foi resultado de uma degeneração do modelo socialista desenvolvido por Lenin, mas sim resultado dos graves erros existentes nesse modelo, que degenerando a concepção marxista da ditadura do proletariado, acabou por transforma-la em ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista. Essa ditadura se fez presente desde o começo do governo bolchevique. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo bolchevique.

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda, contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado completamente absurda, pois bastava a um individuo pertencer a antiga classe burguesa ser suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, para ser preso e executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil, o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve um papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

O filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, fez autocritica e reconheceu ter sido Lenin quem assinou o decreto criando o primeiro campo de concentração na Europa, para aqueles que não compartilhavam suas idéias. Os gulags de Stalin já nasceram com a Revolução de Outubro.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos. (...)

Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã."

(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])


Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, que Pietro Ingrao condena, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra".

"Em 16 de março de 1919, tropas da Cheka invadiram a fábrica Putilov. Mais de 900 trabalhadores que estavam em greve foram presos. Mais de 200 deles foram executados sem julgamento. Na primavera de 1919, ocorreram vários ataques nas cidades de Tula, Orel, Tver, Ivanovo e Astrakhan. Os trabalhadores famintos tentavam obter rações alimentares semelhantes às dos soldados do Exército Vermelho. Eles também exigiram a eliminação de privilégios para os comunistas, a liberdade de imprensa e eleições livres. Todos os ataques foram impiedosamente reprimida pela Cheka com prisões e execuções.

Na cidade de Astrakhan, os grevistas e os soldados do Exército Vermelho que se juntaram a eles foram carregados em barcaças, e em seguida, jogados no Volga com pedras em torno de seus pescoços. Entre 2000 e 4000 foram assassinados entre 12 e 14 de março de 1919." (O Livro Negro do Comunismo)


E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução, pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin.

Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e pelos bolcheviques. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Pelo contrário, manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo, e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo alertou para as as consequências do autoritarismo bolchevique.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Segundo o cientista social Michael Löwy, teórico marxista brasileiro que vive na França: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na ética e na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


A bem sucedida experiência da Nova Política Economica, adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928, assim como as recentes experiências do "Doi Moi" no Vietnã, e do "socialismo de mercado" na China, demonstram que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto. Portanto a socialização da propriedade dos meios de produção, distribuição e troca será processual, não será algo da noite para o dia. O socialismo precisa se fundamentar no consenso, e não somente na coerção.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)

Cuba precisa de reformas que introduzam uma democracia socialista

Antes da revolução, Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA. Foi graças a revolução, que fez do país o primeiro Estado socialista na América Latina, que foram alcançadas as conquistas sociais que todos nós admiramos. O analfabetismo foi erradicado de Cuba, o serviço de saúde, que é público e gratuito, é considerado o melhor da América Latina, comparavel inclusive ao serviço de saúde dos países desenvolvidos. Nenhum cubano passa fome, todos tem o direito de se alimentar três vezes ao dia.

Entretanto essas conquistas só foram possíveis graças ao apoio que a URSS fornecia para Cuba, inclusive comprando o seu açúcar a preços bem acima dos valores de mercado, e vendendo petroléo para a ilha a preços bem abaixo dos valores de mercado. A URSS era como uma mãe para Cuba. Quando o socialismo caiu na URSS, no começo dos anos 90, a economia cubana entrou em colapso, e as conquistas que todos admiram correram sério risco de se extinguir. O regime socialista cubano era totalmente dependente da URSS, tanto que a retirada dos subsídios soviéticos(cerca de 4 a 6 bilhões de dólares anuais entre 1989 e 1993), representou uma perda de, pelo menos, 35% relação ao pico de seu PIB de então, causando sérios problemas de abastecimento e provocando rígidos racionamentos, entre 1989 e 1993, anos de grandes privações para todos, no que foi chamado de "Período Especial". As importações feitas por Cuba caíram de US$ 8,1 bilhões em 1989 para US$ 3,5 bilhões em 1991.

Entretanto, assim como Lenin ousou dar um passo atrás para depois poder dar dois passos adiante, promovendo um recuo estratégico ao abrir a economia soviética, adotando a bem sucedida Nova Política Economica(cuja sigla em inglês é NEP), o lider cubano Fidel Castro fez o mesmo. Cuba sobreviveu à brutal queda da URSS porque tomou um rumo “capitalista”: investimentos estrangeiros privadas; dupla economia (área dólar e área peso; depois, área CUC); abertura ao capital e à iniciativa privada na área de serviços e outras etc. Foi dessa maneira, com enormes sacrifícios por parte de uma população fiel à revolução e fortes concessões ao ideal socialista, que o essencial do processo foi salvo.

"O dinamismo atual da capital cubana contrasta com os dias negros do “período especial em tempos de paz”, que se seguiu após à dissolução da URSS. O PIB caiu 35% em apenas quatro anos, em meio a um bloqueio dos Estados Unidos que dura quase meio século. Agora, a mudança se nota nas ruas: vêem-se poucas bicicletas, não há apagões e a “revolução energética” impulsionou a troca, organizada casa a casa, dos antigos eletrodomésticos russos pelos chineses, de menor consumo. Cuba produz ao redor de 50% de seu consumo de petróleo, extraído em associação com empresas estrangeiras, frente à importação de quase 100% no início da década de 90. O déficit é coberto com os 100 mil barris diários enviados pela Venezuela bolivariana, na base de um acordo de cooperação firmado em outubro de 2000, que dá um prazo de pagamento de quinze anos, com taxa de juros de 2% ao ano."

(Pablo Stefanoni; em Encruzilhada em Havana)


Os trotskistas do PSTU vivem caluniando Fidel e o socialismo cubano, afirmando que nunca se preocuparam em exportar a revolução para fora de Cuba. Mas quem conhece a história sabe que isso é uma grande mentira, pois Cuba apoiou todos os movimentos revolucionários na América Latina nos anos 60, 70 e começo dos 80. Por exemplo, logo no começo do regime militar brasileiro, Fidel Castro apoiou o MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário, organização armada de oposição ao regime militar de 1964, composta basicamente por militares cassados pelos militares no poder e por outros militantes infiltrados dentro dos próprios quartéis. Comandado por Jefferson Cardim de Alencar Osório e inicialmente influenciado por Leonel Brizola, manteve sua direção em seus primórdios na cidade de Montevidéu, no Uruguai. Com muitos militantes com experiência militar, inclusive treinados em Cuba, o MNR seria o grande responsável pelo início da luta armada, tendo iniciado, em 1965, uma guerrilha na serra gaúcha que chegou a tomar cinco cidades até ser dominada pelas forças da ditadura.

Nova tentativa de guerrilha, desta vez na Serra de Caparaó, em 1967 foi destruída antes mesmo de começar. Praticamente desmantelado, desligou-se de Brizola e, fundiu-se com a POLOP para dar origem a VPR - Vanguarda Popular Revolucionária.

A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi uma organização revolucionária brasileira de tendência comunista que lutava contra a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). O grupo surgiu no fim de 1967, com a saída de Carlos Marighella do Partido Comunista Brasileiro (PCB), após sua participação na conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Havana (Cuba).

A Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS) era uma entidade internacional fundada em 1966, com sede em Havana, Cuba. O objetivo marcante, porém formalmente oculto, era organizar pequenos grupos armados com instrução de guerrilha e apoiá-los logisticamente para libertar o continente de qualquer tipo de regime opressor ou desfavorável a população, através de revoluções por toda a América Latina aos moldes da Revolução Cubana. Diversos militantes de esquerda da América Latina foram treinados em Cuba, para depois desencadear a luta armada em seus países. No caso brasileiro, além de Marighela e dos membros do MNR, o próprio José Dirceu(ex-minístro chefe do gabinete civil no primeiro mandato de Lula) também esteve em Cuba nos anos 70, onde recebeu treinamento de guerrilha.

Cuba também planejou desencadear uma revolução socialista na Bolívia, enviando para o país um pequeno grupo de guerrilheiros cubanos, comandados por Ernesto Che Guevara. O pequeno grupo de revolucionários liderados por Che enfrentou dificuldades com o terreno desconhecido, não recebeu o apoio do Partido Comunista Boliviano e não conseguiu conquistar a confiança dos poucos camponeses que moravam na região que escolheu para suas operações, quase desabitada. Nem Che e nem nenhum de seus companheiros falavam a língua indígena local. É cercado e capturado em 8 de outubro de 1967 e executado no dia seguinte pelo soldado boliviano Mário Terán, a mando do Coronel Zenteno Anaya, na aldeia de La Higuera.

Se não bastasse isso, Cuba enviou tropas para Angola, onde lutaram ao lado das forças do governo comunista do MPLA contra os rebeldes direitistas da UNITA e seus aliados sul africanos. Cuba também enviou militares para a Etiópia, auxiliando o regime stalinista desse país em uma guerra contra a vizinha Somália.

Cuba também apoiou o governo socialista de Granada, um pequeno país no Caribe. Inclusive nesse país, cubanos lutaram contra soldados americanos, no primeiro e até agora único conflito militar direto entre Cuba e EUA.

"Em 13 de Março de 1979, um golpe de estado sem derramamento de sangue, liderado pelo socialista Maurice Bishop, havia destituído o governo de Eric Gairy para estabelecer um governo marxista-leninista, que rapidamente se alinhou à União Soviética e a Cuba.

O novo governo começou a construir um aeroporto internacional com a ajuda de Cuba. O Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, indicou este aeroporto e vários outros sítios como provas de um processo de militarização de proporções importantes, em curso no Caribe, apoiado pela URSS e Cuba, o que tornaria Granada uma ameaça potencial aos Estados Unidos. O governo americano acusou Granada de construir as instalações para ajudar no transporte de armas soviéticas destinadas a insurgentes nos países centro-americanos. O governo de Bishop afirmava que o aeroporto fora construído para albergar aviões comerciais, que transportavam turistas.

Em 31 de Outubro de 1983, uma facção liderada pelo vice-primeiro-ministro Bernard Coard rompeu com Bishop. Posteriormente, forças ligadas a Coard executaram Bishop, apesar dos protestos da população, a favor do primeiro-ministro. O Governador-Geral de Granada, Paul Scoon, foi colocado em prisão domiciliar.

A Organização de Estados do Caribe Oriental (OECS) pediu ajuda aos Estados Unidos, Barbados e Jamaica. Segundo Mythu Sivapalan, do New York Times (29 de Outubro de 1983), esse pedido formal teria sido feito por solicitação do próprio governo dos EUA, que já havia decidido realizar ações militares contra o regime de Coard.

Os oficiais dos EUA citaram o golpe e a instabilidade política num país próximo das suas próprias fronteiras, bem como a presença de estudantes de medicina americanos na Universidade de St. George de Granada, como as razões para a ação militar. Sivapalan também afirmou que essa última razão foi apresentada para ganhar apoio público, mais do que como um motivo real para a invasão, já que menos de 600 dos 1.000 civis não granadinos na ilha eram dos E.U.A.:

"Tanto Cuba como Granada, quando viram que os navios americanos estavam se dirigindo para Granada, enviaram mensagens urgentes prometendo que os estudantes americanos estavam a salvo e pediram que não ocorresse uma invasão. [...] Não há indicações que a administração tenha feito um decidido esforço para evacuar os americanos pacificamente. [...] Os oficiais reconheceram que não houve nenhuma tendência para tentar negociar com as autoridades granadinas."

(COLE, Ronald H. Operation Urgent Fury: The Planning and Execution of Joint Operations in Grenada 12 October - 2 November 1983 Joint History Office of the Chairman of the Joint Chiefs of Staff Washington, DC, 1997)


A invasão, que começou às 05:00 do dia 25 de outubro, foi a primeira grande operação realizada pelo exército dos Estados Unidos da América desde a Guerra do Vietnam. A luta durou vários dias e o número total de tropas americanas alcançou uns 7.000 combatentes, aos quais se juntaram 300 combatentes da OECS.

As forças invasoras encontraram 1.500 soldados granadinos e cerca de 600 cubanos, a maioria dos quais engenheiros militares. Não há provas de que militares de outros países estivessem em Granada.

Fontes oficiais dos E.U.A. afirmam que os defensores estavam bem preparados, bem posicionados e opuseram forte resistência, o que obrigou os E.U.A. a pedir reforços na tarde de 26 de outubro. Porém, a superioridade total naval e aérea das forças invasoras (incluindo helicópteros e artilharia naval de apoio) era indiscutível.

Entre os norte-americanos houve 19 mortos e 116 feridos. 69 granadinos morreram, dos quais 45 militares e pelo menos 24 civis, e houve 358 soldados feridos. Cuba teve 25 mortos em combate, 59 feridos e 638 foram feitos prisioneiros." (enciclopédia virtual Wikipédia, verbete Invasão de Granada)


O PSTU também afirma que Fidel promoveu o retorno do capitalismo a Cuba, se esquecendo que Lenin havia feito o mesmo durante a Nova Política Economica, sendo que assim como Fidel, com o único e exclusivo objetivo de recuperar a economia promovendo um recuo estratégico, sem nunca abrir mão do poder socialista sobre o processo. Mas como Trotsky queria fazer ainda em 1920/1921(quando a Rússia estava arrasada pela guerra e pelo fracasso do "comunismo de guerra"), o mesmo que Josef Stalin acabou fazendo em 1928, ou seja, militarizar o trabalho e estatizar os sindicatos, promovendo uma rapida industrialização a custa da expropriação do campesinato, o que teria causado um genocidio ainda maior do que o promovido por Stalin, o PSTU deve achar que Fidel deveria manter a economia fechada assim como fizeram os norte coreanos, o que teria arruinado Cuba, não se esquecendo que cerca de 3 à 4 milhões de norte coreanos já morreram de fome devido a ortodoxia stalinista do regime comunista de Kim Il Sung e de Kim Jong Il, que se recusa a fazer qualquer tipo de abertura. Depois tem gente que ainda consegue se aliar ao PSTU.

As reformas promovidas pelo lider Fidel Castro não chegam aos pés da NEP. Apesar dos investimentos estrangeiros privados e da adoção do CUC, a abertura para a iniciativa privada foi pequena.

"Até agora, uma das poucas reformas legais da iniciativa privada permitiu a criação de um mercado de agricultores. Um dos melhores e mais lotados está na Rua 19, no bairro de Vedado, em Havana.

Como todos os mercados do mundo, este vibra ao som dos feirantes gritando suas ofertas, provocando clientes para comprarem suas frutas e legumes. A produção vem de fazendas cooperativas próximas. Quando estes pequenos empreendimentos alcançam a cota que devem dar ao Estado, podem vender tudo o que cultivarem no mercado.

Apenas nos últimos 15 anos que estas atividades ao estilo capitalista foram permitidas - uma concessão forçada pelo colapso do ex-doador, a União Soviética.

Enquanto as lojas estatais estão com apenas metade de suas capacidades, não há falta de produtos no mercado dos fazendeiros. Mas é caro. O salário médio em Cuba é de apenas 100 pesos por semana. Comprando duas mangas, quatro pimentões verdes e pouco menos de meio quilo de pepinos, o cliente gasta 60 pesos - cerca de três dias de salário. Mas, com o acesso a moeda mais forte, isto custa menos de US$ 3 dólares.

"Meu marido faz artesanato que vende a turistas, então posso pagar uma compra aqui", disse uma das clientes. Mas outros não têm esta renda extra. "Tudo se resume a fazer sacrifícios", disse outra mulher.

Salários baixos, escassez de comida e pouco transporte público são as reclamações que dominam o local, muito mais do que questões de liberdade política." (BBC Brasil; Com poucas mudanças, Cuba completa um ano sem Fidel - 31 de julho, 2007)


Hoje já existem em Cuba, 117 atividades privadas autorizadas, com 208 mil pessoas registradas. Essas são as atividades que podem ser realizadas por particulares - oficinas, pequenos negócios, prestação de alguns serviços. A atividade que mais se expande é a dos restaurantes, chamados Paladares (nome alusivo a uma telenovela brasileira). Como uma forma de limitar a iniciativa particular, os paladares somente podem ter 12 cadeiras, e só devem funcionar com mão-de-obra familiar. Foram estabelecidas as Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBCP), em parte das terras ocupadas até então por granjas estatais. Entre setembro de 1993 e agosto de 1995, foram organizadas 3800 UBPCs, com 64% do fundo estatal de terras.

Apesar da abertura ser pequena, foi graças a essas reformas que o socialismo se manteve de pé em Cuba. Assim como a bem sucedida experiência da NEP, essa retificação cubana demonstra a necessidade do mercado e da iniciativa privada em uma economia socialista, principalmente na sua fase inicial. Após a renúncia de Fidel, em fevereiro de 2008, o governo do presidente Raúl Castro realizou pequenas reformas, ampliando a participação da iniciativa privada no campo, e liberando a venda de eletrodomésticos, celulares e computadores, assim como acabou com o igualitarismo salarial. Essas reformas são importantes e precisam ser ampliadas, Cuba precisa de sua NEP, para reeguer plenamente a economia, melhorando o nivel de vida da população e reduzindo a burocracia. Não podemos esquecer de que apesar de todos os cubanos possuirem o direito de se alimentar três vezes ao dia, a verdade é que a alimentação que os cubanos conseguem adquirir é em menor quantidade e de qualidade inferior ao que encontramos nas xepas das feiras livres das principais capitais brasileiras.

O governo Raúl Castro também corrigiu o erro histórico da revolução em perseguir os homossexuais e travestis, permitindo operações de mudança de sexo e o debate sobre a aprovação de leis que criminalizem a homofobia, garantindo inclusive a união civil homoafetiva.

Mas infelizmente o governo Raúl Castro parece ter pisado no freio, após um começo promissor, e as reformas economicas não foram adiante. Entretanto é fato que Cuba precisa dessas reformas, precisa adotar um verdadeiro "socialismo de mercado", seguindo não somente o exemplo da NEP, mas também o exemplo vietnamita do "doi moi", assim como precisa de reformas políticas que introduzam uma democracia socialista, permitindo assim o pluripartidarismo, eleições e sindicatos livres, e a legitima e efetiva participação dos trabalhadores no processo político, garantindo assim a hegemonia socialista sobre as reformas economicas, hegemonia socialista que infelizmente os vietnamitas parecem ter perdido, uma vez que a burocracia do partido único é quem detem o poder e possui a hegemonia, conduzindo o "socialismo de mercado" em direção a um "capitalismo de Estado".

Cuba é o farol do socialismo, precisa portanto se tornar uma democracia socialista e assim corrigir os erros do passado, permitindo a liberdade de imprensa e o pluripartidarismo, sindicatos livres e a liberdade religiosa. Também precisa de reformas economicas, substituindo o socialismo burocratico estatista por um "socialismo de mercado", garantindo desenvolvimento e prosperidade economica e social para o povo cubano.