domingo, 21 de fevereiro de 2010

Deus e o dinheiro

Deus e o dinheiro
Antônio Mesquita Galvão *

A Campanha da Fraternidade nem tinha sido bem lançada e a mídia nacional, nas edições da Quarta-feira de Cinzas já havia publicado vários textos que revelavam uma posição defensiva, quando não antagônica, com o fito de tachá-la de polêmica e até anacrônica, visando desmerecer a reflexão proposta pela Igreja do Brasil, a partir da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A mídia do Brasil, capitalista ou a serviço de grupos econômicos não admite qualquer reflexão que contrarie seus ideários. Uma chamada de consciência como a da CF 2010 converte-se num insulto, quando não uma ameaça.

Nesse esforço se viu muita gente criticando o lema "Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro" como egresso de ideologias socialistas, resumo de conclaves, como o "fórum social mundial" ou fruto de outros movimentos, cujas palavras-de-ordem atacam os ricos e o capital. Há nessas críticas uma deliberada intenção de ataque (à Igreja) e defesa (do capitalismo), uma vez que sempre que se combate a ganância, a exploração e a exclusão que brotam do mau uso do dinheiro, a oposição, o boicote e a censura evidenciam que se tocou na ferida de adversários poderosos.

Na verdade, o "Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus ou ao dinheiro" não brota de nenhuma cartilha de inspiração marxista, mas do Evangelho de Mateus (6,24) e de Lucas (16,13). Os textos originais alertavam para a impossibilidade de servir a Mámon, que no simbolismo palestino apontava para uma divindade cananéia, que se alimentava de dinheiro, indo inclusive ao sacrifício de pessoas humanas para esse fim. Ao proibir os cultos a Mámon ao invés de a Deus, os antigos repudiavam aquilo que chamavam de idolatria. Hoje, em alguns casos, a idolatria do mercado, o mercantilismo e algumas formas de globalização, por serem excludentes e sectárias, trazem consigo muitas características daquela pantagruélica entidade.

A "chave de leitura" do texto básico da campanha está no ato entender o sentido do verbo servir. Nós servimos a Deus porque é o Senhor e usamos o dinheiro (porque ele é coisa) para nosso bem-estar. As distorções econômicas, sociais e éticas ocorrem a partir do momento em que desprezamos a Deus e nos tornamos ou escravos do dinheiro. Não é crime nem pecado ter dinheiro, como resultado do trabalho e de alguma atividade ética. O ilícito está em acumular a partir da exploração dos outros, da montagem de esquemas espúrios e da entronização do dinheiro em detrimento do crescimento das pessoas. O dinheiro é coisa boa e útil desde que não seja transformado em divindade que exija culto e subserviência.

*Antônio Mesquita Galvão é Doutor em Teologia Moral

Economia e Vida

Economia e Vida
Manfredo Araújo de Oliveira *

As Igrejas cristãs do Brasil que fazem parte do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs decidiram realizar este ano a terceira Campanha da Fraternidade Ecumênica. Este gesto pretende ser realizado no sentido de aprofundar nossa vida democrática, porque o que se quer na realidade é no reconhecimento pleno e explícito da laicidade do Estado dar uma contribuição para a construção de uma sociedade verdadeiramente promotora da dignidade do ser humano. Isto já se revela no testemunho destas igrejas de respeito à totalidade da existência humana e no seu empenho na busca daquele conjunto de condições sociais que possibilitam o desenvolvimento integral da personalidade humana.

O propósito da campanha já se exprime na explicitação dos objetivos fundamentais: "É necessário conclamar a todos e todas para construir uma nova sociedade, educar essa mesma sociedade afirmando que um novo modelo econômico é possível, e denunciar as distorções da realidade econômica existente, para que a economia esteja a serviço da vida". Em última análise o que se deseja é que a campanha seja capaz de mobilizar não só estas igrejas, mas as forças vivas da sociedade civil no sentido da procura de respostas concretas e eficazes às necessidades básicas das pessoas e à salvaguarda da natureza a partir de mudanças profundas, tanto a nível pessoal como comunitário e estrutural, derivadas de uma visão de mundo em que a justiça e a solidariedade constituam valores estruturantes.

Onde se situa para estas igrejas a questão de fundo que marca hoje nossas formações sociais? Na contraposição entre duas lógicas: a lógica do mercado e a lógica da vida. Em primeiro lugar trata-se de um fato: nossas sociedades têm no mercado o mecanismo central de sua estruturação, ou seja, são sociedades em que bens e serviços são vendidos e comprados, em que se produz em função da venda e da compra. No entanto se tem consciência que isto não é um fato qualquer, porque a maneira de organizar a sociedade em todos os seus níveis toca diretamente a dignidade do ser humano e sua capacidade de se desenvolver na família e na sociedade.

Por esta razão se desce a um segundo nível de indagação e se procura entender a lógica que rege este processo que é a lógica da acumulação do capital independentemente se isto conduz à destruição da natureza e à produção sistêmica da miséria de muitas famílias. Assim, chega-se à conclusão que todo este processo não está organizado em função da vida humana o que faz com que exigências humanas importantes para a vida digna não possam simplesmente ser satisfeitas através do mecanismo de mercado. É isto que permite um julgamento ético desta configuração da vida social a partir da constituição do ser humano e de sua dignidade. Numa palavra, a economia é uma dimensão fundamental da vida e por esta razão o julgamento de suas instituições e de suas políticas se deve fazer a partir de um critério básico: a maneira de elas protegerem ou destruírem a vida e a dignidade da pessoa humana.

Daí a afirmação ética básica: "Cada pessoa tem o direito fundamental à vida e, portanto, o direito a todas as coisas necessárias para uma vida de qualidade. As pessoas têm direito a viver e a satisfazer as necessidades básicas. Essas não consistem apenas em alimentação, vestuário e moradia, mas também educação, saúde, segurança, lazer, garantias econômicas e oportunidades de desenvolver todas as capacidades de que a pessoa é dotada". Ora é precisamente esta vida que está ameaçada em nossa sociedade em que viviam em 2007 10,7 milhões de indigentes (famintos) e 46, 3 milhões de pobres segundo dados fornecidos pelo Instituto de Estudos do Trabalho e da Sociedade (IETS). A conjugação entre esta situação, a lógica do processo econômico que nos rege e seu julgamento ético nos leva a uma exigência fundamental: a busca de uma nova forma de organização social que ponha a vida humana acima dos interesses do mercado.

* Manfredo Araújo de Oliveira é Doutor em Filosofia e professor da UFC. Presidente da Adital.

REDUÇÃO DA JORNADA, SEM REDUÇÃO DE SALÁRIO JÁ!!

Quando a democracia representativa dos liberais surgiu, não defendia o voto universal. Apenas quem possuia propriedade e pagava impostos é que podia votar, portanto o voto era censitario. Os trabalhadores estavam excluidos, e foram os comunistas e os anarquistas que os organizaram, para que lutando por seus direitos e contra a opressão capitalista, se conquistasse o voto secreto e universal, o direito de greve, a legalização dos sindicatos e dos partidos operários e populares. Nessa luta foram também conquistadas a jornada de trabalho de oito horas(até o século XIX, a jornada era superior as 14 horas), férias remuneradas de trinta dias e uma série de outros direitos trabalhistas. O capitalismo se democratizou graças a luta dos movimentos operários e populares, portanto a direita e os liberais não podem sair dizendo que são defensores da democracia, pois se dependesse deles ainda viveriamos uma realidade de grande opressão.

A jornada de 48 horas semanais, férias remuneradas, salário mínimo, e a maior parte dos direitos trabalhistas em nosso país, foi conquista da chamada Era Vargas, que a direita acusa de "populista". E para se chegar a isso, ocorreram diversas lutas do movimento operário, a princípio sobre a liderança dos anarquistas, e após a fundação do velho "partidão"(o PCB), sobre a liderança dos comunistas. Por isso eu digo. Apesar do desastre que foi a URSS e demais países do finado "socialismo real", é inegavel a contribuição dos comunistas para o desenvolvimento da democracia, em especial por defender uma sociedade onde não mais exista a exploração do homem pelo homem, e a partir disso organizar os trabalhadores para a luta anti-capitalista. O socialismo burocratico oriundo da tradição autoritaria do bolchevismo precisa ser eliminado, mas não o projeto socialista, que precisa ser refundado, resgatando o melhor do pensamento marxista.

Mas e hoje, como estão as mobilizações populares em favor da ampliação da democracia em nosso país?

A Constituição de 1988, reduziu a jornada de trabalho para 44 horas semanais. Em muitos países europeus, a jornada é de 35, 36 horas, mas na maioria deles é de 40 horas semanais. Portanto é mais do que justa a redução da jornada para 40 horas semanais, sem redução de salários. O povo brasileiro e a classe trabalhadora em particular, deve se mobilizar em favor da aprovação da PEC 231/95. É uma questão de justiça!

Redução da jornada é bom para o Brasil
Escrito por Artur Henrique, presidente da CUT Nacional

A opinião da Fiesp sobre a redução da jornada semanal de trabalho é sempre a mesma, a despeito do que a experiência prática tem demonstrado ao longo do tempo. Em nota emitida ontem, a Federação tenta ocultar essa mesmice, porém, fica claro que a entidade só tenta adaptar os velhos argumentos de acordo com as suas conveniências.

Em 1988, ano da última redução constitucional da jornada de trabalho semanal, a mesma Fiesp dizia que 44 horas semanais representariam uma tragédia para o Brasil. Nada daquilo que a Fiesp profetizava aconteceu em decorrência de uma jornada semanal menor. Em nome da já conhecida verdade dos fatos, é preciso dizer que momentos de deterioração econômica nos períodos seguintes a 1988 não tiveram ligação com as 44 horas.

Em outra circunstância, observada no primeiro semestre de 2009, a Fiesp saiu em defesa da redução da jornada de trabalho, alegando que a medida impediria milhões de demissões iminentes, causadas pela crise econômica internacional. Parece curioso que uma mesma medida possa aplacar ondas de demissões, num caso, mas causar desemprego, em outro.

É certo que a Fiesp, no início de 2009, defendia também a redução de salário concomitante à redução da jornada. Esse detalhe serve para explicitar as reais razões da Fiesp e para demonstrar o que de fato está em jogo: o que a Fiesp quer é continuar sempre ampliando as margens de lucro, o excedente de capital, e manter o inegável crescimento dos índices de produtividade só para si, sem repartir com os trabalhadores e trabalhadoras aquilo que é fruto direto de sua participação.

Com essa posição conservadora, anacrônica de fato, a Fiesp tenta ocultar benefícios que a redução trará para a maioria da sociedade e para, inclusive, a pujança econômica do Brasil.

Um desses benefícios será a maior possibilidade de os trabalhadores e trabalhadoras qualificarem-se educacional e profissionalmente. Com as extensas jornadas atuais – no setor de comércio e serviços, por exemplo, a média semanal é de até 56 horas em São Paulo, segundo o Dieese –, mais o longo tempo de deslocamento de casa para o trabalho nos centros urbanos, é simplesmente impossível para grandes contingentes de brasileiros investir em sua formação. É bom que se diga: quando a Fiesp e demais entidades reclamam da qualificação da força de trabalho, negam-se a admitir que só aprofundam as dificuldades com posicionamentos como esse em relação às 40 horas.

A redução das atuais 44 horas para 40 horas também pode melhorar a qualidade de vida dos trabalhadores e trabalhadoras, dando-lhes mais tempo para ficar com a família, para o lazer, para a cultura e para o que mais lhes aprouver ou for possível.

Isso vai se refletir no cotidiano das cidades, impulsionando o setor de comércio e serviços, e minimizar também os problemas de deslocamento urbano.

A redução da jornada sem redução de salário vai, especialmente, distribuir um pouco dos enormes ganhos que a economia brasileira vem acumulando, com ou sem crise internacional. E vai gerar novos empregos, como demonstram projeções do Dieese.

Trata-se de uma questão de escolha – por parte dos empresários – e de pressão – por parte dos trabalhadores. Por exemplo: em 2009, segundo estudo realizado por uma consultoria e divulgado nesta semana, as empresas brasileiras bateram recorde histórico no pagamento de dividendos. Lucratividade há, o que falta é, infelizmente, espírito nacionalista e projeto de futuro para uma parcela de nosso empresariado.

O socialismo marxista no século XXI

Apesar do desastre que foi a URSS e demais países do finado "socialismo real", é inegavel a contribuição dos comunistas para o desenvolvimento da democracia, em especial por defender uma sociedade onde não mais exista a exploração do homem pelo homem, e a partir disso organizar os trabalhadores para a luta anti-capitalista. O socialismo burocratico oriundo da tradição autoritaria do bolchevismo precisa ser eliminado, mas não o projeto socialista, que precisa ser refundado, resgatando o melhor do pensamento marxista.

"Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tomaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem .. Será que esse cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos esses segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?" (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

A esquerda precisa romper com o dogmatismo, refundando o socialismo segundo a realidade da luta de classes no século XXI. O cientista político Carlos Nelson Coutinho, que na minha opinião é um dos grandes nomes do marxismo em nosso país, deixou isso bem claro em recente entrevista a Caros Amigos. Ele é bem mais otimista do que eu, pois afirma que as condições objetivas para o socialismo já estão presentes. Não concordo com ele, mas reconheço que a luta pela redução da jornada de trabalho é um fator fundamental na luta pela conquista da hegemonia. E não somente a luta pela redução para 40 horas, mas acima de tudo a luta pela redução da jornada para 36 horas semanais. A CUT e a CTB não podem se limitar a luta pelas 40 horas, que diga-se de passagem já deveria ter sido aprovada por um governo que se diz democrático e popular.

"Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do "Capital", diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro "A Ideologia Alemã" que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz critica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego pata todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito .. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Uma das prioridades da esquerda, em sua luta pela construção de uma sociedade socialista no século XXI, é o reconhecimento da necessidade de conciliar socialismo com liberdade e democracia. Carlos Nelson Coutinho toca nessa questão na entrevista concedida a Caros Amigos.

"Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado "socialismo real" fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, "Democracia como valor universal", não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vinculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão "marxista-leninista", o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Nessa mesma entrevista, Marcelo Salles pergunta: "E nesse "Democracia como valor universal", você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia ..."

Coutinho respondeu: "Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase."

Nessa entrevista, Carlos Nelson Coutinho afirma que falta a esquerda um projeto de socialismo. Concordo com ele, mas afirmo que isso é resultado da incapacidade da esquerda em romper com os graves erros do modelo bolchevique, que a faz limitar-se a criticar apenas o stalinismo, não promovendo assim uma autêntica autocritica. E também tem a incapacidade da esquerda em romper com o dogmatismo, que a faz transformar o pensamento marxista em uma espécie de religião.

"Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, esses partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Eu tenho muito respeito pela obra do cientista político Carlos Nelson Coutinho, afinal foi um dos primeiros intelectuais marxistas a afirmar em nosso país, que socialismo sem democracia não é socialismo. Coutinho é filiado ao PSOL, e professor de teoria política na UFRJ. Entretanto eu vejo nele uma dificuldade muito grande em reconhecer que foi Lenin, o responsável pela construção de um socialismo autoritário e burocratico. Nessa entrevista publicada na revista Caros Amigos, Marcelo Salles pergunta a ele: "Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único ..."

Coutinho responde: "Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo, marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique, dizia o seguinte: liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão."

Carlos Nelson Coutinho está certo ao dizer que a filosofia marxista não defende regime de partido único, e que o socialismo exige a liberdade de expressão. Mas está errado ao não reconhecer que o socialismo bolchevique já era uma degeneração do marxismo.

Oras, eu conheço bem a história da Revolução Russa e sei perfeitamente que logo após a vitória da mesma, os bolcheviques excluiram a participação da ala internacionalista dos mencheviques do governo soviético, mesmo eles tendo se oposto a Primeira Guerra Mundial e ao governo provisório. O próprio Trotsky afirmou para Yuri Martov, lider dos mencheviques internacionalistas, que o lugar deles era na "lata de lixo da história". E mais, os socialistas revolucionários de esquerda realmente participaram do governo, mas de forma minoritaria. E a briga que Coutinho se refere ocorreu em março de 1918, ou seja, apenas quatro meses após a revolução. E essa briga ocorreu pela oposição dos socialistas revolucionários de esquerda ao Tratado de Paz de Brest Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial, cedendo grande parte de seu território aos alemães. Portanto a quem Coutinho quer enganar??? Os bolcheviques nunca toleraram a democracia, enquanto os socialistas revolucionários de esquerda eram passivos e obedeciam ao que os bolcheviques mandavam, tudo bem. Mas quando passaram a discordar....

Se os bolcheviques eram tão democráticos, porque dissolveram a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918??? Ela havia sido eleita democraticamente, e a maioria absoluta era composta por representantes da esquerda. Portanto nada havia de burguesa. Mas como os bolcheviques eram minoria... E depois, porque proibiram todos os partidos, com excessão do próprio partido deles??? A revolta que os socialistas revlucionários de esquerda promoveram em julho de 1918, não foi contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz com a Alemanha. E os mencheviques internacionalistas, liderados por Martov, apesar de fazerem oposição ao governo bolchevique, exigindo liberdade de imprensa e de reunião, apoiavam o Exército Vermelho em sua luta contra os reacionários do Exército Branco. Não havia portanto nenhuma justificativa racional, fora o autoritarismo bolchevique, para a absurda introdução do regime de partido único.

O socialismo na versão leninista, ou seja, bolchevique, nada tem de democrático e só pode funcionar como regime de partido único, mesmo que legalmente existam outros partidos, como por exemplo acontece na China, onde existem outros oito partidos além do Partido Comunista Chinês, mas todos sabemos que são apenas decorativos. O mesmo também acontece na Coréia do Norte, onde existem outros dois partidos além do Partido do Trabalho, mas esses dois partidos são ainda mais decorativos do que os partidos existentes na China.

E quem afirma isso não sou eu, mas o historiador marxista Jacob Gorender, que em "Marxismo sem utopia" faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)


A verdade é que a "ética bolchevique" sempre encarou a defesa da democracia e do sistema republicano como um movimento meramente "tático", tanto que Lenin argumenta em "A revolução proletária e o renegado Kautsky", escrito em 1918, que "A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não está preso por nenhuma lei."

O regime bolchevique preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; em Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo)

O mais engraçado é que nessa mesma entrevista, respondendo ao mesmo Marcelo Salles, Carlos Nelson Coutinho acaba reconhecendo que Lenin teve responsabilidade no surgimento do stalinismo. O problema é que os psolistas limitam muito a sua critica a Lenin e por isso acabam prisioneiros do bolchevismo.

"Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada." (Carlos Nelson Coutinho; revista Caros Amigos)

A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse. O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado socialismo real, foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

"Ao fim e ao cabo, o que se teve foi a pura e simples ditadura do partido único. O proletariado de que se trata não é aquele constituído pelos trabalhadores reais. Estes, como disse Lenin, "não se desembaraçarão facilmente dos seus preconceitos pequeno-burgueses" e, portanto, também precisarão ser "reeducados, através de uma luta prolongada, sobre a base da ditadura do proletariado" (O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Moscou, Ed. Progresso). Do que se trata efetivamente é do partido, isto é, da "expressão dos interesses históricos do proletariado", o qual é chamado a ser o verdadeiro governante. (...)

A consagração de direitos individuais e sociais em lei, classificada pejorativamente na categoria das liberdades formais, seria uma concessão inadmissível à democracia burguesa. Mesmo porque, se a ditadura do proletariado significa democracia para a maioria explorada, isso ocorre não porque essa disponha de meios efetivos de exercício do poder. Resulta tão somente da suposição de que o partido, por expressar os "interesses históricos do proletariado", governa de fato para a maioria, ainda que esta não tenha consciência disso.

De fato, a missão imanente do proletariado só se manifesta enquanto verdade revelada - o marxismo-leninismo - através do partido. A direção do partido, e só ela, é a garantia de que o futuro comunista será efetivamente construído. Ao partido, o proletariado suposto, cabe governar; ao proletariado real, obedecer.

É "natural' que, no limite, tal concepção tome a forma de terrorismo de Estado. Se a ética, entendida como parte integrante da ideologia, é apenas a "ética da classe", não há por que se estabelecerem limites para o emprego da violência nas situações em que os "interesses históricos de classe", os desígnios da história, estiverem em jogo. Ainda quando a contestação venha do proletariado real, desde que ameace o monopólio do poder pelo partido, precisará ser esmagada sem vacilação, como, aliás, ocorreu com o levante de Kronstadt, em 1921."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin.

O stalinismo não foi resultado de uma degeneração do modelo socialista desenvolvido por Lenin, mas sim resultado dos graves erros existentes nesse modelo, que degenerando a concepção marxista da ditadura do proletariado, acabou por transforma-la em ditadura do partido do proletariado, ou seja, ditadura do partido comunista. Essa ditadura se fez presente desde o começo do governo bolchevique. Não podemos esquecer que em 5 de janeiro de 1918, apenas dois meses após a vitória da revolução, a Assembléia Constituinte que havia sido eleita democraticamente no final de novembro de 1917, mas onde os bolcheviques não tinham maioria, se reuniu pela primeira e última vez, pois foi dissolvida na noite do mesmo dia em um golpe promovido pelo governo bolchevique.

A partir desse episódio, o governo bolchevique passou a perseguir outras forças de esquerda(mencheviques, socialistas revolucionários, anarquistas), até que em julho de 1918, após uma revolta promovida pelos socialistas revolucionários de esquerda, todos os partidos foram proibidos, com excessão do Partido Comunista da Rússia(bolchevique). Então os sovietes e os sindicatos se transformaram em correias de transmissão do Partido Comunista. E o pior, após o atentado praticado por uma ativista socialista revolucionária de esquerda, contra o lider bolchevique Vladimir Lenin, em agosto de 1918, que o deixou ferido, os bolcheviques lançaram uma política de terrorismo de Estado completamente absurda, pois bastava a um individuo pertencer a antiga classe burguesa ser suspeito de praticar atividades contra-revolucionárias, para ser preso e executado sem nenhum julgamento. Individuos não pertencentes a burguesia que fossem suspeitos, eram presos e mandados para campos de trabalho forçado. Foi a fase do chamado "TERROR VERMELHO".

Se não bastasse isso, durante a guerra civil, o Exército Vermelho não combateu apenas os contra-revolucionários do Exército Branco e seus aliados das forças estrangeiras(americanos, britanicos, franceses, italianos, japoneses, etc). Também combateu os revolucionários anarquistas do Exército Negro, uma guerrilha camponesa liderada por Nestor Makhno, que havia promovido a reforma agrária no sul da Ucrânia e que teve um papel importante na derrota das forças brancas do general Anton Denikin. Além disso, o Exército Vermelho sufocou com extrema violência as revoltas camponesas que ocorriam devido a absurda política do "comunismo de guerra", quando milhares de camponeses foram aprisionados nos primeiros campos de concentração da Europa.

O filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, fez autocritica e reconheceu ter sido Lenin quem assinou o decreto criando o primeiro campo de concentração na Europa, para aqueles que não compartilhavam suas idéias. Os gulags de Stalin já nasceram com a Revolução de Outubro.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos. (...)

Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã."

(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])


Essa política terrorista do leninismo, ou seja, do bolchevismo, que Pietro Ingrao condena, foi usada não somente contra supostos inimigos de classe, mas também contra a própria classe trabalhadora, como demonstra a repressão contra greves e rebeliões populares decorrentes da fome causada pela política do "comunismo de guerra".

"Em 16 de março de 1919, tropas da Cheka invadiram a fábrica Putilov. Mais de 900 trabalhadores que estavam em greve foram presos. Mais de 200 deles foram executados sem julgamento. Na primavera de 1919, ocorreram vários ataques nas cidades de Tula, Orel, Tver, Ivanovo e Astrakhan. Os trabalhadores famintos tentavam obter rações alimentares semelhantes às dos soldados do Exército Vermelho. Eles também exigiram a eliminação de privilégios para os comunistas, a liberdade de imprensa e eleições livres. Todos os ataques foram impiedosamente reprimida pela Cheka com prisões e execuções.

Na cidade de Astrakhan, os grevistas e os soldados do Exército Vermelho que se juntaram a eles foram carregados em barcaças, e em seguida, jogados no Volga com pedras em torno de seus pescoços. Entre 2000 e 4000 foram assassinados entre 12 e 14 de março de 1919." (O Livro Negro do Comunismo)


E o principal, a brutal repressão ao levante do soviet de Kronstadt, onde os bolcheviques usaram da calúnia infame ao chamar de "agentes do imperialismo e da contra-revolução", os revoltosos que sempre estiveram ao lado da causa socialista, inclusive tendo sido chamados de "honra e glória" da revolução, pelo lider do Exército Vermelho, o bolchevique Leon Trotsky, e que se rebelavam para defender uma democracia socialista, onde o poder residisse nos sovietes e não em nenhum partido, e houvesse liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições livres.

A revolucionária marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo, que em hipótese alguma pode ser classificada como "revisionista" ou "oportunista", sempre criticou Lenin e o bolchevismo, tanto que no clássico "Questões de organização da social-democracia russa", escrito em 1904, criticou o modelo autoritario de partido defendido por Lenin.

Apesar de ter apoiado a Revolução de Outubro, inclusive se solidarizando com os bolcheviques, Rosa alertou para os riscos desse autoritarismo promovido por Lenin e pelos bolcheviques. Ao contrário de muita gente na esquerda, Rosa Luxemburgo não se deixou levar por uma visão acritica, beata, e de sacristia sobre esse processo revolucionário. Pelo contrário, manteve sua critica ao que achava errado no bolchevismo, e no clássico "A Revolução Russa", escrito em 1918, Rosa Luxemburgo alertou para as as consequências do autoritarismo bolchevique.

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".

(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")


Segundo o cientista social Michael Löwy, teórico marxista brasileiro que vive na França: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")

A esquerda precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia. Por isso deve abandonar a idéia equivocada de que os fins justificam os meios, e principalmente, ter na ética e na radicalidade democrática, a base de sua atuação política.

Além de resgatar os clássicos de Marx e Engels, a esquerda precisa buscar em Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, na chamada "Escola de Frakfurt", no eurocomunismo, e na Teologia da Libertação, as bases na qual se fundamentar sobre o ponto de vista filosófico-ideológico, construindo uma alternativa real ao capitalismo, possibilitando assim a retomada da luta pelo fim da exploração do homem pelo homem.

"Está mais do que provado que a construção de uma sociedade nova é impensável sem a adesão consciente do povo. As supostas tentativas de fazê-la através de métodos impositivos, da manipulação ou do emprego de aparatos coercitivos resultaram inevitavelmente na Construção da antiliberdade; uma antiliberdade que mal sobrevive à própria crise, como é notário em todos os países do "socialismo real".

Portanto, o novo Estado, aquele que deverá emergir da superação do Estado capitalista, precisará ser concebido como um Estado socialista necessariamente democrático e de direito, submetido a uma sociedade civil autônoma e plural, bem desenvolvida e articulada. Trata-se de aprofundar o caminho já aberto por Gramsci.

Um item destacado refere-se à teoria econômica do socialismo. A experiência do "socialismo real" deixa evidente que a gestão burocrática ultra centralizada é fonte inesgotável de desperdício, destruição do meio ambiente, corrupção e ineficiência.

O neoliberalismo vem se apoiando nessa evidência para tentar comprovar o valor supremo da livre iniciativa. Resistir a essa onda com a reiteração do estatismo, além de realimentar os fatores de destruição e de crise, é autocondenar-se à total defensiva ideológica. (...)

O que significa que, numa sociedade socialista renovada, não deverá haver lugar nem para a livre iniciativa, que se alimenta do culto ao indivíduo empreededor-consumidor, nem para o estatismo, que se baseia no enquadramento do indivíduo produtor dentro da regra estabelecida através do plano."

(Ozeas Duarte; em "Nem burguesia nem estatismo")


A bem sucedida experiência da Nova Política Economica, adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928, assim como as recentes experiências do "Doi Moi" no Vietnã, e do "socialismo de mercado" na China, demonstram que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto. Portanto a socialização da propriedade dos meios de produção, distribuição e troca será processual, não será algo da noite para o dia. O socialismo precisa se fundamentar no consenso, e não somente na coerção.

"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)

Cuba precisa de reformas que introduzam uma democracia socialista

Antes da revolução, Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA. Foi graças a revolução, que fez do país o primeiro Estado socialista na América Latina, que foram alcançadas as conquistas sociais que todos nós admiramos. O analfabetismo foi erradicado de Cuba, o serviço de saúde, que é público e gratuito, é considerado o melhor da América Latina, comparavel inclusive ao serviço de saúde dos países desenvolvidos. Nenhum cubano passa fome, todos tem o direito de se alimentar três vezes ao dia.

Entretanto essas conquistas só foram possíveis graças ao apoio que a URSS fornecia para Cuba, inclusive comprando o seu açúcar a preços bem acima dos valores de mercado, e vendendo petroléo para a ilha a preços bem abaixo dos valores de mercado. A URSS era como uma mãe para Cuba. Quando o socialismo caiu na URSS, no começo dos anos 90, a economia cubana entrou em colapso, e as conquistas que todos admiram correram sério risco de se extinguir. O regime socialista cubano era totalmente dependente da URSS, tanto que a retirada dos subsídios soviéticos(cerca de 4 a 6 bilhões de dólares anuais entre 1989 e 1993), representou uma perda de, pelo menos, 35% relação ao pico de seu PIB de então, causando sérios problemas de abastecimento e provocando rígidos racionamentos, entre 1989 e 1993, anos de grandes privações para todos, no que foi chamado de "Período Especial". As importações feitas por Cuba caíram de US$ 8,1 bilhões em 1989 para US$ 3,5 bilhões em 1991.

Entretanto, assim como Lenin ousou dar um passo atrás para depois poder dar dois passos adiante, promovendo um recuo estratégico ao abrir a economia soviética, adotando a bem sucedida Nova Política Economica(cuja sigla em inglês é NEP), o lider cubano Fidel Castro fez o mesmo. Cuba sobreviveu à brutal queda da URSS porque tomou um rumo “capitalista”: investimentos estrangeiros privadas; dupla economia (área dólar e área peso; depois, área CUC); abertura ao capital e à iniciativa privada na área de serviços e outras etc. Foi dessa maneira, com enormes sacrifícios por parte de uma população fiel à revolução e fortes concessões ao ideal socialista, que o essencial do processo foi salvo.

"O dinamismo atual da capital cubana contrasta com os dias negros do “período especial em tempos de paz”, que se seguiu após à dissolução da URSS. O PIB caiu 35% em apenas quatro anos, em meio a um bloqueio dos Estados Unidos que dura quase meio século. Agora, a mudança se nota nas ruas: vêem-se poucas bicicletas, não há apagões e a “revolução energética” impulsionou a troca, organizada casa a casa, dos antigos eletrodomésticos russos pelos chineses, de menor consumo. Cuba produz ao redor de 50% de seu consumo de petróleo, extraído em associação com empresas estrangeiras, frente à importação de quase 100% no início da década de 90. O déficit é coberto com os 100 mil barris diários enviados pela Venezuela bolivariana, na base de um acordo de cooperação firmado em outubro de 2000, que dá um prazo de pagamento de quinze anos, com taxa de juros de 2% ao ano."

(Pablo Stefanoni; em Encruzilhada em Havana)


Os trotskistas do PSTU vivem caluniando Fidel e o socialismo cubano, afirmando que nunca se preocuparam em exportar a revolução para fora de Cuba. Mas quem conhece a história sabe que isso é uma grande mentira, pois Cuba apoiou todos os movimentos revolucionários na América Latina nos anos 60, 70 e começo dos 80. Por exemplo, logo no começo do regime militar brasileiro, Fidel Castro apoiou o MNR - Movimento Nacionalista Revolucionário, organização armada de oposição ao regime militar de 1964, composta basicamente por militares cassados pelos militares no poder e por outros militantes infiltrados dentro dos próprios quartéis. Comandado por Jefferson Cardim de Alencar Osório e inicialmente influenciado por Leonel Brizola, manteve sua direção em seus primórdios na cidade de Montevidéu, no Uruguai. Com muitos militantes com experiência militar, inclusive treinados em Cuba, o MNR seria o grande responsável pelo início da luta armada, tendo iniciado, em 1965, uma guerrilha na serra gaúcha que chegou a tomar cinco cidades até ser dominada pelas forças da ditadura.

Nova tentativa de guerrilha, desta vez na Serra de Caparaó, em 1967 foi destruída antes mesmo de começar. Praticamente desmantelado, desligou-se de Brizola e, fundiu-se com a POLOP para dar origem a VPR - Vanguarda Popular Revolucionária.

A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi uma organização revolucionária brasileira de tendência comunista que lutava contra a Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). O grupo surgiu no fim de 1967, com a saída de Carlos Marighella do Partido Comunista Brasileiro (PCB), após sua participação na conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS) em Havana (Cuba).

A Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS) era uma entidade internacional fundada em 1966, com sede em Havana, Cuba. O objetivo marcante, porém formalmente oculto, era organizar pequenos grupos armados com instrução de guerrilha e apoiá-los logisticamente para libertar o continente de qualquer tipo de regime opressor ou desfavorável a população, através de revoluções por toda a América Latina aos moldes da Revolução Cubana. Diversos militantes de esquerda da América Latina foram treinados em Cuba, para depois desencadear a luta armada em seus países. No caso brasileiro, além de Marighela e dos membros do MNR, o próprio José Dirceu(ex-minístro chefe do gabinete civil no primeiro mandato de Lula) também esteve em Cuba nos anos 70, onde recebeu treinamento de guerrilha.

Cuba também planejou desencadear uma revolução socialista na Bolívia, enviando para o país um pequeno grupo de guerrilheiros cubanos, comandados por Ernesto Che Guevara. O pequeno grupo de revolucionários liderados por Che enfrentou dificuldades com o terreno desconhecido, não recebeu o apoio do Partido Comunista Boliviano e não conseguiu conquistar a confiança dos poucos camponeses que moravam na região que escolheu para suas operações, quase desabitada. Nem Che e nem nenhum de seus companheiros falavam a língua indígena local. É cercado e capturado em 8 de outubro de 1967 e executado no dia seguinte pelo soldado boliviano Mário Terán, a mando do Coronel Zenteno Anaya, na aldeia de La Higuera.

Se não bastasse isso, Cuba enviou tropas para Angola, onde lutaram ao lado das forças do governo comunista do MPLA contra os rebeldes direitistas da UNITA e seus aliados sul africanos. Cuba também enviou militares para a Etiópia, auxiliando o regime stalinista desse país em uma guerra contra a vizinha Somália.

Cuba também apoiou o governo socialista de Granada, um pequeno país no Caribe. Inclusive nesse país, cubanos lutaram contra soldados americanos, no primeiro e até agora único conflito militar direto entre Cuba e EUA.

"Em 13 de Março de 1979, um golpe de estado sem derramamento de sangue, liderado pelo socialista Maurice Bishop, havia destituído o governo de Eric Gairy para estabelecer um governo marxista-leninista, que rapidamente se alinhou à União Soviética e a Cuba.

O novo governo começou a construir um aeroporto internacional com a ajuda de Cuba. O Presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, indicou este aeroporto e vários outros sítios como provas de um processo de militarização de proporções importantes, em curso no Caribe, apoiado pela URSS e Cuba, o que tornaria Granada uma ameaça potencial aos Estados Unidos. O governo americano acusou Granada de construir as instalações para ajudar no transporte de armas soviéticas destinadas a insurgentes nos países centro-americanos. O governo de Bishop afirmava que o aeroporto fora construído para albergar aviões comerciais, que transportavam turistas.

Em 31 de Outubro de 1983, uma facção liderada pelo vice-primeiro-ministro Bernard Coard rompeu com Bishop. Posteriormente, forças ligadas a Coard executaram Bishop, apesar dos protestos da população, a favor do primeiro-ministro. O Governador-Geral de Granada, Paul Scoon, foi colocado em prisão domiciliar.

A Organização de Estados do Caribe Oriental (OECS) pediu ajuda aos Estados Unidos, Barbados e Jamaica. Segundo Mythu Sivapalan, do New York Times (29 de Outubro de 1983), esse pedido formal teria sido feito por solicitação do próprio governo dos EUA, que já havia decidido realizar ações militares contra o regime de Coard.

Os oficiais dos EUA citaram o golpe e a instabilidade política num país próximo das suas próprias fronteiras, bem como a presença de estudantes de medicina americanos na Universidade de St. George de Granada, como as razões para a ação militar. Sivapalan também afirmou que essa última razão foi apresentada para ganhar apoio público, mais do que como um motivo real para a invasão, já que menos de 600 dos 1.000 civis não granadinos na ilha eram dos E.U.A.:

"Tanto Cuba como Granada, quando viram que os navios americanos estavam se dirigindo para Granada, enviaram mensagens urgentes prometendo que os estudantes americanos estavam a salvo e pediram que não ocorresse uma invasão. [...] Não há indicações que a administração tenha feito um decidido esforço para evacuar os americanos pacificamente. [...] Os oficiais reconheceram que não houve nenhuma tendência para tentar negociar com as autoridades granadinas."

(COLE, Ronald H. Operation Urgent Fury: The Planning and Execution of Joint Operations in Grenada 12 October - 2 November 1983 Joint History Office of the Chairman of the Joint Chiefs of Staff Washington, DC, 1997)


A invasão, que começou às 05:00 do dia 25 de outubro, foi a primeira grande operação realizada pelo exército dos Estados Unidos da América desde a Guerra do Vietnam. A luta durou vários dias e o número total de tropas americanas alcançou uns 7.000 combatentes, aos quais se juntaram 300 combatentes da OECS.

As forças invasoras encontraram 1.500 soldados granadinos e cerca de 600 cubanos, a maioria dos quais engenheiros militares. Não há provas de que militares de outros países estivessem em Granada.

Fontes oficiais dos E.U.A. afirmam que os defensores estavam bem preparados, bem posicionados e opuseram forte resistência, o que obrigou os E.U.A. a pedir reforços na tarde de 26 de outubro. Porém, a superioridade total naval e aérea das forças invasoras (incluindo helicópteros e artilharia naval de apoio) era indiscutível.

Entre os norte-americanos houve 19 mortos e 116 feridos. 69 granadinos morreram, dos quais 45 militares e pelo menos 24 civis, e houve 358 soldados feridos. Cuba teve 25 mortos em combate, 59 feridos e 638 foram feitos prisioneiros." (enciclopédia virtual Wikipédia, verbete Invasão de Granada)


O PSTU também afirma que Fidel promoveu o retorno do capitalismo a Cuba, se esquecendo que Lenin havia feito o mesmo durante a Nova Política Economica, sendo que assim como Fidel, com o único e exclusivo objetivo de recuperar a economia promovendo um recuo estratégico, sem nunca abrir mão do poder socialista sobre o processo. Mas como Trotsky queria fazer ainda em 1920/1921(quando a Rússia estava arrasada pela guerra e pelo fracasso do "comunismo de guerra"), o mesmo que Josef Stalin acabou fazendo em 1928, ou seja, militarizar o trabalho e estatizar os sindicatos, promovendo uma rapida industrialização a custa da expropriação do campesinato, o que teria causado um genocidio ainda maior do que o promovido por Stalin, o PSTU deve achar que Fidel deveria manter a economia fechada assim como fizeram os norte coreanos, o que teria arruinado Cuba, não se esquecendo que cerca de 3 à 4 milhões de norte coreanos já morreram de fome devido a ortodoxia stalinista do regime comunista de Kim Il Sung e de Kim Jong Il, que se recusa a fazer qualquer tipo de abertura. Depois tem gente que ainda consegue se aliar ao PSTU.

As reformas promovidas pelo lider Fidel Castro não chegam aos pés da NEP. Apesar dos investimentos estrangeiros privados e da adoção do CUC, a abertura para a iniciativa privada foi pequena.

"Até agora, uma das poucas reformas legais da iniciativa privada permitiu a criação de um mercado de agricultores. Um dos melhores e mais lotados está na Rua 19, no bairro de Vedado, em Havana.

Como todos os mercados do mundo, este vibra ao som dos feirantes gritando suas ofertas, provocando clientes para comprarem suas frutas e legumes. A produção vem de fazendas cooperativas próximas. Quando estes pequenos empreendimentos alcançam a cota que devem dar ao Estado, podem vender tudo o que cultivarem no mercado.

Apenas nos últimos 15 anos que estas atividades ao estilo capitalista foram permitidas - uma concessão forçada pelo colapso do ex-doador, a União Soviética.

Enquanto as lojas estatais estão com apenas metade de suas capacidades, não há falta de produtos no mercado dos fazendeiros. Mas é caro. O salário médio em Cuba é de apenas 100 pesos por semana. Comprando duas mangas, quatro pimentões verdes e pouco menos de meio quilo de pepinos, o cliente gasta 60 pesos - cerca de três dias de salário. Mas, com o acesso a moeda mais forte, isto custa menos de US$ 3 dólares.

"Meu marido faz artesanato que vende a turistas, então posso pagar uma compra aqui", disse uma das clientes. Mas outros não têm esta renda extra. "Tudo se resume a fazer sacrifícios", disse outra mulher.

Salários baixos, escassez de comida e pouco transporte público são as reclamações que dominam o local, muito mais do que questões de liberdade política." (BBC Brasil; Com poucas mudanças, Cuba completa um ano sem Fidel - 31 de julho, 2007)


Hoje já existem em Cuba, 117 atividades privadas autorizadas, com 208 mil pessoas registradas. Essas são as atividades que podem ser realizadas por particulares - oficinas, pequenos negócios, prestação de alguns serviços. A atividade que mais se expande é a dos restaurantes, chamados Paladares (nome alusivo a uma telenovela brasileira). Como uma forma de limitar a iniciativa particular, os paladares somente podem ter 12 cadeiras, e só devem funcionar com mão-de-obra familiar. Foram estabelecidas as Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBCP), em parte das terras ocupadas até então por granjas estatais. Entre setembro de 1993 e agosto de 1995, foram organizadas 3800 UBPCs, com 64% do fundo estatal de terras.

Apesar da abertura ser pequena, foi graças a essas reformas que o socialismo se manteve de pé em Cuba. Assim como a bem sucedida experiência da NEP, essa retificação cubana demonstra a necessidade do mercado e da iniciativa privada em uma economia socialista, principalmente na sua fase inicial. Após a renúncia de Fidel, em fevereiro de 2008, o governo do presidente Raúl Castro realizou pequenas reformas, ampliando a participação da iniciativa privada no campo, e liberando a venda de eletrodomésticos, celulares e computadores, assim como acabou com o igualitarismo salarial. Essas reformas são importantes e precisam ser ampliadas, Cuba precisa de sua NEP, para reeguer plenamente a economia, melhorando o nivel de vida da população e reduzindo a burocracia. Não podemos esquecer de que apesar de todos os cubanos possuirem o direito de se alimentar três vezes ao dia, a verdade é que a alimentação que os cubanos conseguem adquirir é em menor quantidade e de qualidade inferior ao que encontramos nas xepas das feiras livres das principais capitais brasileiras.

O governo Raúl Castro também corrigiu o erro histórico da revolução em perseguir os homossexuais e travestis, permitindo operações de mudança de sexo e o debate sobre a aprovação de leis que criminalizem a homofobia, garantindo inclusive a união civil homoafetiva.

Mas infelizmente o governo Raúl Castro parece ter pisado no freio, após um começo promissor, e as reformas economicas não foram adiante. Entretanto é fato que Cuba precisa dessas reformas, precisa adotar um verdadeiro "socialismo de mercado", seguindo não somente o exemplo da NEP, mas também o exemplo vietnamita do "doi moi", assim como precisa de reformas políticas que introduzam uma democracia socialista, permitindo assim o pluripartidarismo, eleições e sindicatos livres, e a legitima e efetiva participação dos trabalhadores no processo político, garantindo assim a hegemonia socialista sobre as reformas economicas, hegemonia socialista que infelizmente os vietnamitas parecem ter perdido, uma vez que a burocracia do partido único é quem detem o poder e possui a hegemonia, conduzindo o "socialismo de mercado" em direção a um "capitalismo de Estado".

Cuba é o farol do socialismo, precisa portanto se tornar uma democracia socialista e assim corrigir os erros do passado, permitindo a liberdade de imprensa e o pluripartidarismo, sindicatos livres e a liberdade religiosa. Também precisa de reformas economicas, substituindo o socialismo burocratico estatista por um "socialismo de mercado", garantindo desenvolvimento e prosperidade economica e social para o povo cubano.

Deus ou o Dinheiro?

Deus ou o Dinheiro?
Selvino Heck *

Um grande jornal do sul fez a seguinte manchete, em letras garrafais, na quarta-feira de cinzas, dia do lançamento da Campanha da Fraternidade/2010: "Igrejas se unem em crítica à economia". Nas matérias internas escreve: "A Campanha da Fraternidade de 2010 coloca a partir de hoje a ética cristã em guerra com o espírito do capitalismo. Na mira de bispos, pastores e reverendos figuram inimigos como a ânsia por lucro, o agronegócio, o capital especulativo, o consumismo e o sistema financeiro internacional. Uma análise dos documentos e materiais da Campanha da Fraternidade deste ano revela uma sintonia com o discurso adotado por entidades como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou eventos como o Fórum Social Mundial".

A colunista política do mesmo jornal intitula sua análise: "Utopia nas igrejas". E escreve: "Com o tema Economia e Vida e idéias que parecem ter saído de documento do Fórum Social Mundial, do programa de um partido socialista, de um congresso de estudantes ou mesmo de uma reunião do MST, a Campanha da Fraternidade 2010 tem potencial para acender polêmicas em todos os cantos do país. O slogan ‘Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro’, extraído do Evangelho de São Mateus, dá uma idéia do que se ouvirá nas igrejas e templos durante a quaresma. Tudo o que os organizadores da campanha propõem para ocupar o lugar dos bancos, da globalização e do agronegócio -cooperativas, redes solidárias, agricultura familiar e redes de microcrédito- tem espaço na sociedade, mas como uma opção a mais, não como substituto. Lutar contra a globalização é remar contra a maré: ela está na vida dos fiéis de qualquer credo".

Mais uma vez, a demonização e a criminalização dos movimentos sociais é a pauta principal de setores da grande mídia. MST e Fórum Social Mundial são apresentados como inimigos do povo e da pátria e, por associação, as igrejas cristãs que participam e organizam a Campanha da Fraternidade. Ao mesmo tempo são apresentados como românticos incuráveis, que têm sonhos irrealizáveis e, vejam só, ainda falam em ‘utopias’.

Nem parece que o mundo atravessa a pior crise econômica dos últimos 70 anos, com quebra de bancos e empresas, desemprego em massa nos países ricos, empobrecimento da população, fruto do lucro desmedido, da ganância desenfreada, do consumismo, da financeirização da economia e das teses neoliberais do Estado mínimo e do mercado livre e absoluto.

Vale a pena (re)ler o Evangelho de São Mateus e (re)descobrir o contexto de sua radicalidade. A afirmação de Jesus - Ninguém pode ser vir a dois senhores, porque ou aborrecerá um e amará o outro, ou apreciará o primeiro e desprezará o segundo. É impossível servir a Deus e ao dinheiro - vem no mesmo capítulo em que Jesus ensina o Pai Nosso: "Por isso, vocês têm que orar assim. (...) Venha o teu reino, seja feita a tua vontade na terra como no céu. Dá-nos hoje o pão nosso de cada dia" (Mt, 6,9. Em seguida Jesus diz: "Não amontoeis riquezas na terra, onde se põem a perder, porque a traça e a ferrugem as destroem, os ladrões assaltam e roubam" (Mt, 6,19). E na seqüência: "Por isso lhes digo: Não andem preocupados por sua vida, que vamos comer, ou por seu corpo, que vamos vestir. Não vale mais a vida que o alimento e o corpo mais que a roupa? Olhem como as aves do céu não semeiam, nem colhem, nem guardam em celeiros, e o Pai celestial as alimenta. Não valem vocês mais que as aves?" (Mt 6, 25-26.

O tema da Campanha da Fraternidade/2010, promovida pelo Conselho das Igrejas Cristãs - CONIC -, formado pela Igreja católica, pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, pela Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e pela Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia, coloca o dedo na ferida. Estamos em tempos em que o capital e o sistema que o sustenta, o capitalismo, santificam o individualismo, a ganância, o consumismo, desprezando valores como a solidariedade, a partilha, o fazer coletivo. Tempos em que o meio ambiente e a natureza não servem mais à humanidade como fonte de bem viver, mas apenas como lucro e acúmulo de riqueza, levando ao aquecimento global, aos desastres e desequilíbrios naturais, à falta de água e ao ar irrespirável.

Urge, pois, como diz Campanha da Fraternidade, "denunciar a perversidade de todo modelo econômico que vise em primeiro lugar o lucro, sem se importar com a desigualdade, miséria, fome e morte; educar para a prática de uma economia de solidariedade, de cuidado com a criação e valorização da vida como o bem mais precioso; conclamar as Igrejas, as religiões e toda a sociedade para ações sociais e políticas que levem à implantação de um modelo econômico de solidariedade e justiça para todas as pessoas."

A Economia Solidária, com seus milhares de grupos, cooperativas e redes espalhados por todo Brasil, é uma possibilidade de "pensar outra economia rumo a outro desenvolvimento, uma outra economia possível", com base em valores como a cooperação, a autogestão, solidariedade, "construindo a produção sustentável, o comércio justo, o consumo solidário". Para isso, é preciso incentivar as trocas solidárias, as cooperativas de crédito, os bancos comunitários, o microcrédito solidário, os fundos rotativos solidários.

Além disso, propõe a Campanha da Fraternidade, é preciso construir uma educação e cultura solidárias, a partir de experiências existentes como os Centros de Formação em Economia Solidária, as Escolas Família Agrícola, a Assistência técnica em Economia Solidária, as Incubadoras Populares e Universitárias, a Rede TALHER de Educação Cidadã, a Educação de Jovens e Adultos, os Jogos Cooperativos.

Não é crime sonhar e alimentar utopias, fortalecendo uma economia a serviço da vida. No mundo de hoje, elas são urgentes, necessárias e, principalmente, possíveis.

* Selvino Heck é da Coordenação nacional do Movimento Fé e Política. E Assessor Especial do Presidente da República.

Economia com face mais humana

Economia com face mais humana
Marcus Eduardo de Oliveira *

A Economia (enquanto ciência e atividade produtiva) somente será viável se for humana, para o homem e pelo homem. Essa frase, interessante pela sua abrangência social, é atribuída ao papa João Paulo II (Karol Voitjila, 1920-2005). O fato é que uma economia com face mais humana, preocupada com a questão social, tem sido constantemente sufocada em nome de modelos econômicos distorcidos que são dirigidos em favor de ganhos na escala especulativa.

Modelos econômicos, em geral, aqui e acolá, têm sido desenhados para atingir objetivos no curto prazo, quase sempre apontando para a necessidade de fazer a produção crescer. Acontece que buscar maior produção não assegura, por conseqüência, que todos participação dela ou terão sua fatia disponível para abocanhar o bolo do crescimento econômico. Isso, por si só, já nos permite afirmar que crescimento não rima com desenvolvimento; e que, por definição mais ampla, significa ainda dizer que crescer não permite se desenvolver como mera contrapartida. Desenvolvimento passa por uma abordagem bem mais ampla envolvendo, no bojo, melhoria substancial na vida dos mais necessitados.

Dessa constatação parte uma provocação e um chamado a quem se interessa por construir uma economia mais humana e menos tecnicista em seu sentido capitalista-espoliador. A provocação é simples: precisamos enveredar esforços no sentido de lançar-se um olhar renovador sobre a economia para, a partir disso, entender e propor alternativas a esse mundo-econômico repleto de injustiças e distorções. O objetivo disso tudo é apenas um: criar modelos econômicos que permitam melhorar a vida de milhões de pessoas. Esse é, certamente, um dos grandes desafios que o economista moderno desejoso de ajudar a construir um mundo onde todos ganham precisará enfrentar. Para tanto, uma ruptura com a tradicional teoria econômica precisa acontecer. Nesse sentido, o eixo central da economia - base da economia tradicional - não pode ser estritamente o mercado e, o objeto, a mercadoria; mas, antes, o indivíduo e suas necessidades básicas e peculiares. Que a Ciência Econômica "carregada" por todos aqueles que vislumbrem a necessidade de mudar os modelos econômicos para a construção de um mundo melhor seja posta no caminho de se construir, de forma sólida, a igualdade entre os homens.

As diversas crises que a economia e a sociedade, por não raras vezes, são (e tem sido) acometidas servem para acender a chama da renovação e da urgente mudança, até mesmo porque é inaceitável aceitar pacificamente a imposição de certas "ordens" ditadas pelos abonados mandantes da ordem estabelecida.

Amartya Sen, um dos economistas que mais tem trabalhado a questão do social em torno da análise econômica, a esse respeito, certa vez disse que: "É difícil entender como uma ordem mundial compassiva pode incluir tanta gente atormentada pela miséria extrema, pela fome persistente e por vidas miseráveis e sem esperança, e por que a cada ano milhões de crianças inocentes têm de morrer por falta de alimentos, assistência médica ou social".

Talvez seja por isso que certas situações causam tanto incômodo. Vejamos, por exemplo, que os dentes afiados da financeirização internacional que movimentam, em termos especulativos, 2 trilhões de dólares por dia, nos dilaceram a carótida, nos jogam de bruços ao chão, nos tornam ínfimos e raquíticos perante a força do grande capital. Disso resulta a constatação que é simplesmente insano, patológico mesmo, "descobrir" essa verdade sabendo ser também verdadeiro que, a cada ano, milhões de pessoas - pobres, miseráveis e indigentes - padecem pela dor física da fome.

Nos dias que correm nesse século XXI que vem carregando 2.000 anos nas costas a contar do nascimento de Cristo, todas as noites, 900 milhões de pessoas - crianças, jovens, idosos, homens e mulheres comuns -, vão dormir de barriga vazia; não pela opção estética do corpo magro e perfeito, mas por terem as bocas esfaimadas; porque os famigerados sistemas econômicos que "manipulam" mercados ao doce sabor do lucro e que pelos mercados são "manipulados" em favor dos rápidos retornos financeiros assim determinam tal ordem ignominiosa.

Isso nos leva a outra reflexão: Em se tratando de economia, não tenhamos dúvidas: as ações econômicas possuem diversas dimensões e impactos múltiplos que afetam substancialmente à qualidade de vida das pessoas; às vezes de maneira positiva ou negativa. Em outras palavras, em economia somos todos responsáveis pelo que acontece. O lamentável fato de presenciarmos gente morrendo de fome num tempo em que o avanço tecnológico é incomensurável, não pode ser moralmente justificável. Quase todos conhecem as maneiras (o modo de fazer) e sabem que os recursos para tirar essa massa incontável de pessoas da indigência estão disponíveis. Nesse pormenor, bastaria, para tanto, menos de 0,5% de um PIB mundial que está batendo na casa dos 65 trilhões de dólares anuais para acabar, de uma vez por todas, com essa sandice.

Nesse sentido, para finalizar vale resgatar aqui as sábias palavras de santo Agostinho quando diz com clareza que "a esperança tem duas filhas lindas: a raiva e a coragem. Raiva do estado das coisas e coragem para mudá-las". Que tenhamos a coragem para mudar esse cenário de tristeza que são cometidos aqueles que passam fome, em geral determinadas pelas ditas "ordens e modelos econômicos".

*Marcus Eduardo de Oliveira: Economista e professor universitário. Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional

Os ataques caluniosos dos psolistas contra o governo Lula e contra o PT

Pelo fato de ser fortemente influenciado pela tradição bolchevique, que fazia da calúnia infame um instrumento corriqueiro para atacar os adversários, como por exemplo chamar os revolucionários de Kronstadt, de "agentes do imperialismo" ou de "aliados dos contra-revolucionários brancos", o PSOL promove ataques caluniosos ao governo Lula, ao PT e demais partidos da esquerda que apoiam o governo. Um desses ataques caluniosos é afirmar que o governo Lula é neo-liberal.

Oras, esse governo deteve o fetichismo privatista da era FHC, tanto que não privatizou o Banco do Brasil e a Caixa Economica Federal, como pretendia fazer o senhor Maílson da Nóbrega, quando ministro da Fazenda do governo FHC. Não privatizou Furnas, Eletrobras, e os Correios, como os tucanos e seus aliados democratas defendem, e nem mesmo a INFRAERO será privatizada, apesar de toda campanha da mídia em favor dessa privatização, após a crise nos aeroportos.

"O ministro da Defesa, Nelson Jobim, descartou nesta quinta-feira, 14, a privatização da Infraero ao ser questionado sobre a proposta de cisão e privatização da estatal proposta por um estudo encomendado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

"O que está decidido exclusivamente é a Anac fazer uma formatação do processo de concessão de aeroportos que não é a privatização. O presidente da República já decidiu que faríamos a concessão de Viracopos, do Galeão e depois a concessão para a construção do novo aeroporto de São Paulo", declarou o ministro, após participar da missa de corpo presente do marechal Waldemar Levy Cardoso."

(Ministro Jobim descarta privatização da Infraero; O Estado de São Paulo On Line, 14 de maio de 2009)


O governo Lula também impediu que se realizasse a flexibilização dos direitos trabalhistas, como ameaçava fazer FHC, assim como mudou o paradigma das relações exteriores de nosso país, que antes era submissa ao imperialismo yankee.

E mais, o governo tem ampliado a participação do Estado na economia, não somente através do monopólio estatal sobre o Pré-Sal, mas também com uma fiscalização mais rigorosa no setor de mineração. Essa ampliação vem promovendo o ataque raivoso dos neo-liberais contra o governo.

Vejam o que diz o professor Cândido Mendes: "Há, sim, confronto radical entre os dois regimes, ao contrário do que diz, e os tucanos abriram o país à globalização privatista hegemônica, enquanto o petismo vai hoje, com a melhoria social do país, à recuperação do poder do Estado, numa efetiva economia de desenvolvimento sustentável." (Cândido Mendes; em Para Onde Não Vamos)

Como os psolistas podem então dizer que o governo Lula é neo-liberal??? Que o governo Lula possui graves erros, não assumindo um caráter de esquerda e até mesmo faltando com a ética na política, isso todos sabem. Agora com certeza não é neo-liberal. A promoção da calunia para difamar os adversários, prática tão comum do bolchevismo, é também a prática dos psolistas, que vivem presos a um sectarismo que perde apenas para as "seitas" trotskistas, pois tem limitado sua política de alianças a uma dessas "seitas", ou seja, ao PSTU, e aos comunistas do PCB. As excessões foram em Porto Alegre e Macapá, onde nas últimas eleições o PSOL se aliou ao PV e ao PSB respectivamente.

O governo Lula não é de esquerda, mas não porque os petistas e seus aliados(PSB, PDT, e PCdoB) assim o querem, e sim pelo fato da esquerda não possuir condições de disputar com um discurso socialista, a hegemonia na sociedade. Na conjuntura atual, a esquerda precisa se aliar ao centro e até mesmo a centro-direita, para promover uma política capaz de superar o modelo neo-liberal e assim resgatar o nacional-desenvolvimentismo. Tudo bem que os petistas exageram, não era necessário ampliar tanto a aliança, como fizeram ao se aliar aos conservadores do PP - Partido Progressista(herdeiros da ARENA), e do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro. O governo poderia assumir um perfil social democrata combativo, assumindo um perfil moderado de esquerda. Entretanto isso não justifica em hipótese alguma as acusações caluniosas que os psolistas fazem. O governo Lula não é neo-liberal, é um governo de centro-esquerda moderado, que possui erros sim, mas que tem promovido a redução da miséria em nosso país, quer queira ou não os adeptos do esquerdismo, a doença infantil do comunismo.

E mais, o próprio programa de governo da candidata petista à Presidência da República, Dilma Roussef, é claramente de esquerda, motivo pelo qual já vem recebendo os ataques caluniosos da direita conservadora e neo-liberal. Isso indica que a possível continuação de um governo petista irá assumir um perfil social democrata combativo, assumindo um perfil moderado de esquerda. E mesmo assim os psolistas insistem em identifica-lo com o projeto neo-liberal dos tucanos e dos demos. Parece que não sabem mais o que seja neo-liberalismo, usando esse termo para identificar qualquer projeto diferente do deles.

Os psolistas possuem uma enorme incapacidade de analisar a conjuntura, o que leva o partido a defender um projeto socialista mesmo não havendo a menor possibilidade, na conjuntura atual, da esquerda conseguir disputar a hegemonia usando um discurso de caráter socialista contra as forças políticas de centro e de direita. E por isso os psolistas se isolaram, elegendo apenas 25 vereadores nas últimas eleições.

Os psolistas não buscam refundar o projeto socialista, repetindo os mesmos dogmas que a história já demostrou ser um grave equivoco, até porque o "socialismo real" não fracassou apenas devido a ausencia de democracia, mas também fracassou devido a completa burocratização da economia, que era completamente estatizada. E os psolistas continuam promovendo esse fracassado fetichismo estatista, tanto que defenderam a reestatização da EMBRAER, e defendem a estatização do sistema financeiro, o restabelecimento do monopólio estatal do petróleo, e a revisão de muitas das privatizações realizadas na era FHC.

Lógico que não estou afirmando que a esquerda socialista deve renunciar a seu projeto de coletivização da propriedade, mas isso não pode ocorrer em curto espaço de tempo. Como disse o dirigente comunista italiano Fausto Bertinotti, ex-secretário geral da Refundação Comunista: "Certo: a propriedade privada não pode ser abolida por decreto. Mas é um objetivo" ("Voglio la fine della proprietà privata". Corriere della Sera, 03-03-2005).

E mais, até mesmo o historiador marxista Eric Hobsbawn reconhece a necessidade da existência do mercado no socialismo, ao contrário dos psolistas, que preferem continuar presos ao dogmatismo da velha esquerda.

"Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. (...) A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado." (Eric Hobsbawn)

O PT é um partido socialista, seu objetivo é superar o capitalismo pela via processual, construindo uma sociedade socialista e democrática. Isso não se faz da noite para o dia, precisa-se primeiro disputar a hegemonia na sociedade, respeitando a realidade da conjuntura atual, que não permite que essa hegemonia seja disputada com um projeto socialista. Por isso o governo Lula imprementou um projeto democrático e popular, de perfil progressista e desenvolvimentista contrário ao neo-liberalismo. Agora a candidatura de Dilma Roussef vai mais além, assumindo um projeto social-democrata que já vem recebendo duras criticas da direita conservadora e neo-liberal. Um governo Dilma será de centro-esquerda combativo. Ainda não será um governo de perfil socialista, e com certeza não realizará reestatizações, mas já vai representar um passo adiante. E assim, pela via processual, construindo uma hegemonia cada vez mais a esquerda, será construido o socialismo com liberdade e democracia.

E construida a sociedade socialista e democrática, ainda haverá a propriedade privada e o mercado, uma vez que a socialização da propriedade deve se realizar respeitando o consenso na sociedade, e não através da pura e simples coerção. Será um processo longo, fundamentado na radicalidade democrática.

A esquerda do século XXI precisa ter essa consciência democrática, e os petistas tem demonstrado possuir essa consciência, apesar dos erros cometidos(em especial os graves erros com relação a ética, marca negativa desses oito anos de governo Lula).


Plano de governo do PT para Dilma reforça papel do Estado na economia

Documento, que vai a debate, prega fortalecimento de estatais e de políticas de crédito oficiais para setor produtivo

Vera Rosa, BRASÍLIA. Estado de S. Paulo, 05 de Fevereiro de 2010


Ancorado pelo mote de um novo "projeto nacional de desenvolvimento", o programa de governo do PT vai situar a candidatura presidencial da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, à esquerda da gestão Lula. Documento com as diretrizes que nortearão a plataforma política de Dilma, intitulado A grande transformação, prega maior presença do Estado na economia, com fortalecimento das empresas estatais e das políticas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal para o setor produtivo.

O texto a ser apresentado no 4º Congresso Nacional do PT, de 18 a 20 de fevereiro - quando Dilma será aclamada candidata ao Palácio do Planalto num megaencontro em Brasília - diz que a herança transmitida à "próxima presidente" será "bendita", após duas décadas de estagnação e avaliações "medíocres". Em 2003, quando assumiu o primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ter recebido uma "herança maldita" do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Na tentativa de esvaziar o mote do pós-Lula entoado pelo PSDB, o documento obtido pelo Estado sustenta que só o herdeiro do espólio lulista pode oferecer as bases para a formulação de um "projeto nacional de desenvolvimento", que mescla incentivos ao investimento público e privado com distribuição de renda.

"O Brasil deixou de ser o eterno país do futuro. O futuro chegou. E o pós-Lula é Dilma", diz um trecho da versão preliminar da plataforma. No diagnóstico que antecede a apresentação dos eixos programáticos, o PT afirma que "o Brasil foi programado para ser um país pequeno, cujo crescimento não poderia nunca ultrapassar os 3%, e que teria de se conformar com a existência de 30 ou 40 milhões de homens e mulheres para os quais não haveria espaço".

Com estocadas nos tucanos, o texto deixa claro que o PT deseja uma campanha polarizada com o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), potencial adversário de Dilma, embora o nome dele não seja citado. "Os preconceitos ideológicos hegemônicos nos anos 90 fizeram com que o Estado brasileiro passasse naquele período por um processo de desconstrução, que comprometeu sua eficácia", ataca o documento, numa referência ao governo Fernando Henrique. "Os mesmos que no passado foram responsáveis por esse desmantelamento são hoje os que denunciam a "gastança" e o inchaço da máquina pública."

As propostas apresentadas, no entanto, são enunciados genéricos, como "aumentar os recursos públicos" para ter um Sistema Único de Saúde (SUS) de qualidade, "expandir o orçamento da educação", "dar ênfase especial à construção de novas hidrelétricas" e "ampliar as funções do Ministério do Planejamento".

GRANDES CIDADES

De olho nos votos dos dois maiores colégios eleitorais do País (São Paulo e Minas), o programa tem um eixo chamado "Melhor condição de vida nas grandes cidades" e acaba tocando em temas que não dizem respeito ao governo federal, como ampliação das linhas de metrô, veículo leve sobre trilhos (VLT) e corredores de ônibus.

Não há metas de curto, médio ou longo prazo nas diretrizes da plataforma petista nem propostas para a política fiscal e monetária, embora coordenadores da campanha de Dilma assegurem que o PT não defenderá mudanças nessa seara, para não assustar o mercado financeiro.

Trata-se-se, na prática, de uma carta de intenções, coordenada pelo assessor de Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Os verbos mais conjugados no documento - que ainda receberá emendas, passará pelo crivo dos partidos aliados e só virará programa de governo a partir de junho - são "manter", "acelerar", "aprofundar" e "ampliar". Mesmo assim, a primeira versão contém pistas de como o PT enxerga um eventual governo Dilma.

"O programa é mais à esquerda do presidente Lula, mas não é mais esquerdista", argumenta o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (SP). "Isso significa que poderemos cumprir agora os objetivos sociais mais ambiciosos, porque as grandes questões macroeconômicas, como a dívida interna, ou foram solucionadas ou estão equacionadas."

EIXOS

Treze eixos compõem a versão preliminar da plataforma de Dilma. O primeiro deles diz que "o crescimento acelerado e o combate às desigualdades sociais serão o eixo estruturante do desenvolvimento econômico". No fim de cada tópico há uma frase do tipo "a ação do governo Dilma privilegiará" e aí são expostas as intenções do partido, como "manutenção da política de valorização do salário mínimo".

JORNADA

Alvo de intensa polêmica, a redução da jornada semanal de trabalho de 44 para 40 horas - reivindicada pelas centrais sindicais - também é citada no primeiro esboço. Pode, no entanto, ser retirada, sob o argumento de que projetos de lei em tramitação no Congresso não devem constar do texto.

Carro-chefe da propaganda de Dilma, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é tratado como essencial para a estratégia de desenvolvimento do País, ao lado do PAC 2 - que será lançado em grande estilo em março, às vésperas de a ministra deixar o cargo -, embora sua vigência seja para o período 2011-2015. "A elevação das taxas de crescimento, que deverá marcar o governo Dilma, exigirá a conclusão das obras do PAC", reforça o documento. "O PAC 1 e o que estará previsto no PAC 2 darão competitividade à economia brasileira."


Meirelles e Jobim farão programa de governo do PMDB
AE - Agencia Estado - 9 de fevereiro de 2010

O PMDB iniciou ontem uma ofensiva para se contrapor ao PT e garantir espaço na elaboração do programa de governo da pré-candidata Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil, à Presidência da República. Reeleito presidente nacional do PMDB, o deputado Michel Temer (SP) chamou o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, para barrar a consolidação do programa petista.

O motivo da pressa em escalar o time que vai formular o plano foi a notícia de que o programa da petista já está pronto. Como o documento será discutido no Congresso do PT, que vai oficializar a candidatura de Dilma no dia 20, em Brasília, Temer agiu para deixar claro que não aceitará "prato feito".

Em telefonema ao vice-presidente do PT e assessor do Planalto, Marco Aurélio Garcia, Temer avisou que seu partido também terá um plano de governo e a aliança se dará a partir da fusão dos programas. "O PT não vai impor nada. Vamos trabalhar juntos", respondeu Garcia a Temer, segundo o próprio deputado disse a um interlocutor. "O que está acontecendo é que estão fazendo diretrizes, para depois conversarmos em conjunto", explicou o assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao peemedebista.

O documento petista, intitulado A Grande Transformação, defende a maior presença do Estado na economia, com fortalecimento das empresas estatais e das políticas de crédito dos bancos públicos federais para o setor produtivo. Embora uma ala expressiva do PMDB tenha viés nacionalista e se identifique com a ideia do reforço do papel do Estado, o cenário aponta para um intenso debate entre petistas e peemedebistas. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

BBC Brasil - 16 de fevereiro, 2010
Dilma defende Estado com maior poder de execução

Asdrubal Figueiró; da BBC Brasil em São Paulo

A ministra-chefe da Casa Civil e provável candidata do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência na eleição de outubro, Dilma Rousseff, disse que "o Estado (brasileiro) terá, inexoravelmente, de reforçar seu segmento executor".

A afirmação está em uma entrevista inédita, que será publicada no livro Brasil - Entre o Passado e o Futuro, uma edição conjunta da editora Boitempo e da Fundação Perseu Abramo, com lançamento previsto para os próximos dias.

Segundo a ministra, o reforço do segmento executor do Estado é necessário para garantir a "universalização de serviços como o saneamento, melhorar a segurança pública, a habitação, as condições de vida da população".

Na entrevista de 21 páginas, intitulada "Um país para 190 milhões de brasileiros", Dilma Rousseff defende a construção de um "um país de bem-estar social à moda brasileira" e dá indicações de como vê o papel do Estado brasileiro no futuro próximo.

"O desenvolvimento com inclusão social é o nosso modelo econômico. Aquele que considera que os 190 milhões de brasileiros e brasileiras são o centro do modelo".
Em sua opinião, essa inclusão e universalização devem ser feitos, sobretudo, por meio de investimentos públicos que viabilizem "as obras que dependem intrinsecamente do Estado", com subsídios e pela parceria com o setor privado.

"Como construir casas para a população com renda de até três salários mínimos, se o custo da casa não é compatível com a renda? A equação não fecha. O mercado jamais resolveria esse problema. Não se promove política de universalização sem subsidiar: é impossível no Brasil".

Órgãos executores

Para atingir o objetivo, Dilma Rousseff diz que é preciso corrigir o que ela vê como um desvio que teria sido criado em governos anteriores ao de Lula: a valorização das "funções de controle" do Estado, por um lado, e a redução dos órgãos executores a uma "situação precária".

"Como é sabido, devemos evitar a ocorrência de salários abaixo do razoável, por exemplo, a profissionais como engenheiros, professores, médicos, agentes de saúde e policiais, porque o resultado desse tipo de política compromete a gestão pública, a capacidade de executar obras e prestar serviços adequados à sociedade".

O processo deve ser realizado, segundo a ministra, paralelamente ao "estabelecimento de princípios meritocráticos e profissionais para reger o Estado" e à adoção "de novos e modernos mecanismos de gestão interna".

A ministra também vê como importante a simplificação do que chama de "atual emaranhado de exigências para se fazer qualquer coisa no Brasil".

"Não haverá obras se não simplificarmos os processos, tornando-os absolutamente transparentes".

A entrevista foi concedida ao secretário especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, ao sociólogo Emir Sader (organizadores do livro) e ao ex-presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Matoso.

Os três entrevistadores também assinam artigos sobre o legado e princípios do governo Lula. A obra inclui ainda textos do presidente do Ipea, Marcio Pochmann, e do secretário de Política Econômica da Fazenda, Nelson Barbosa, entre outros.

Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/02/100216_dilma_livro_nf.shtml


O PT e o Brasil
Por Emiliano José - 16 de Fevereiro de 2009

O nascimento do PT, que comemora 29 anos este mês, dá-se no momento da aurora do neoliberalismo com sua promessa de redimir o mundo pelo mercado. No trajeto, coisa de uma década depois, o abalo da derrocada da União Soviética.

Logo ao nascer, o PT disse a que vinha: a luta pelo socialismo era indissociável da luta pela democracia. Não mais a ditadura do proletariado. Não mais o sacrifício das liberdades em favor de conquistas sociais.Até aqui, uma rica trajetória. Já há muito que comemorar. Constituiu-se num dos maiores partidos de massa do Ocidente, talvez o maior. Não mais o partido de quadros. Não o modelo leninista. Defesa da democracia para a sociedade. Democracia também no interior do partido.

Abertura para o debate. Nasceu impulsionado por três forças motrizes: a esquerda revolucionária egressa da luta contra a ditadura, a corrente progressista da Igreja Católica e principalmente o novo sindicalismo que despontava no ABC paulista.Essas três forças foram plasmando um partido que se mostraria vocacionado para governar o Brasil. Demorou algum tempo, no entanto, para descobrir os caminhos que o levassem a ser a força política hegemônica da sociedade brasileira.

Depois de muitos tropeços e equívocos, compreendeu que um sonho que se sonha só é apenas um sonho. Chegar ao poder, governar o Brasil exigia amplitude, capacidade de fazer alianças com os diferentes.A revolução deixava de ter data marcada. Não mais a quimera do grande dia da conquista do céu. A transformação do País seria fruto de uma paciente construção cotidiana. Guerra de posição. Não mais o assalto ao Palácio de Inverno. Gramsci assume o lugar antes ocupado por Lênin. As classes trabalhadoras tinham que ser conquistadas e conquistar corações e mentes da sociedade brasileira. As forças do atraso eram muito mais fortes do que pretendia o jovem PT.Governar o Brasil era a grande meta, o sonho dourado. E o grande desafio, hoje encarado.

O PT lidera hoje no País uma revolução. A revolução democrática. Produz, ao lado dos aliados que soube conquistar, transformações nunca antes vistas na sociedade brasileira. Mais de 20 milhões de pessoas retiradas da miséria absoluta. Autonomia cidadã. Afirmação das liberdades e da soberania nacional, respeito à diversidade. Clareza de que é longa a estrada que tornará o Brasil uma sociedade justa e fraterna. Certeza de estar hoje promovendo políticas públicas que representam passos seguros nessa direção.

Lula não será mais candidato em 2010. A importância do partido cresce ainda mais. Dele se exigirá muita lucidez para que a revolução democrática não seja interrompida. O PT terá, de um lado, que aumentar sua coesão interna, afirmar sua vocação democrática e socialista. De outro, persistir na compreensão de que as alianças à esquerda e ao centro continuam indispensáveis. As responsabilidades crescem. A sociedade brasileira espera que o PT esteja à altura delas.

Emiliano José é deputado federal(PT-BA), e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação, onde lecionou por 25 anos, jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados.
Publicado em A Tarde (16/02/2009)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A esquerda precisa refundar o socialismo

O socialismo precisa ser refundado, com a esquerda resgatando o melhor do pensamento marxista, ao mesmo tempo que rompendo com o dogmatismo, enxergue as novas realidades da luta de classes no século XXI.

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, que na minha opinião é um dos grandes nomes do marxismo em nosso país, deixa isso bem claro.

"Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tomaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem .. Será que esse cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos esses segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?" (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Coutinho é mais otimista do que eu, pois afirma que as condições objetivas para o socialismo já estão presentes. Não concordo com ele, mas reconheço que a luta pela redução da jornada de trabalho é um fator fundamental na luta pela conquista da hegemonia. E não somente a luta pela redução para 40 horas, mas acima de tudo a luta pela redução da jornada para 36 horas semanais. A CUT e a CTB não podem se limitar a luta pelas 40 horas, que diga-se de passagem já deveria ter sido aprovada por um governo que se diz democrático e popular.

"Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do "Capital", diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro "A Ideologia Alemã" que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz critica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego pata todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito .. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Uma das prioridades da esquerda, em sua luta pela construção de uma sociedade socialista no século XXI, é o reconhecimento da necessidade de conciliar socialismo com liberdade e democracia. Carlos Nelson Coutinho toca nessa questão na entrevista concedida a Caros Amigos.

"Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado "socialismo real" fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção - nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização - mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, "Democracia como valor universal", não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vinculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão "marxista-leninista", o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Nessa mesma entrevista, Marcelo Salles pergunta: "E nesse "Democracia como valor universal", você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia ..."

Coutinho respondeu: "Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase."

Nessa entrevista, Carlos Nelson Coutinho afirma que falta a esquerda um projeto de socialismo. Concordo com ele, mas afirmo que isso é resultado da incapacidade da esquerda romper com os graves erros do modelo bolchevique, que a faz limitar-se a criticar apenas o stalinismo, não promovendo assim uma autêntica auto-critica. E também tem a incapacidade da esquerda em romper com o dogmatismo, que a faz transformar o pensamento marxista em uma espécie de religião.

"Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, esses partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista." (Carlos Nelson Coutinho, em entrevista na Caros Amigos, dezembro de 2009)

Um partido comunista que eu considero ter se libertado dos erros do bolchevismo, e que por isso possui um perfil mais democrático, é a Refundação Comunista, na Itália. Eles organizam junto com o Partido dos Comunistas Italianos, e com Socialismo 2000, a aliança Federação de Esquerda(http://www.federazionedellasinistra.com/).

Refundação Comunista é o partido do filósofo marxista Pietro Ingrao, que fez uma autocritica digna de aplausos e elogio. Ele reconheceu que foi Lenin quem assinou o decreto criando o primeiro campo de concentração na Europa, para aqueles que não compartilhavam suas idéias. Portanto os gulags de Stalin já nasceram com a Revolução de Outubro.

"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. (...) Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos." (Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])

A autocrítica de Ingrao é radical, assinala a natureza, as raízes da ideologia comunista, e a investigação do erro não se reduz à leitura do passado, mas se torna um instrumento para olhar adiante. Mesmo que, noventa anos depois, a conta da verdade seja muito alta.

"Os gulags não foram uma fábula, mas não vejo por que hoje deveria assumi-los no meu patrimônio, no meu sentimento de comunista, agora que não tenho nem mesmo o álibi de ‘não saber’. Ao lado desta derivação, o movimento comunista no século XX arrastou classes sociais inteiras para a luta política e social, e grande parte do crescimento da democracia, pelo menos na Europa, está ligada a esta participação, a esta batalha. Por que não deveria revisitar e reexaminar nossa história, ver as luzes e as sombras? Enfraqueço-me? Penso exatamente o contrário: a autocrítica me reforça. O arrependimento é uma palavra que não pertence à minha linguagem, tem um sabor de sacristia. Mas, se arrepender-se significa reconhecer os erros, então não tenho medo desta palavra. Tentar compreender onde erramos me ajuda a viver, a me sentir mais forte, a olhar para a frente. A reconstruir o passado para dar uma indicação sobre o futuro: pode-se aprender com os erros. E no horizonte futuro resta a necessidade de uma resposta às exigências, decisivas, de sentido da vida, de horizonte, num mundo vergado como então, como em todo o século XX, pela maldição de uma guerra. Passei uma vida batendo-me por coisas essenciais: o direito de se alimentar, crescer, se instruir, se cuidar, ser criativo no próprio trabalho. O movimento operário, no curso de um século, cresceu no contexto da reivindicação de necessidades fundamentais, a começar pelo grande tema do resgate do trabalho, e da exigência destas coisas nasceu a ideologia comunista, com seus erros, suas culpas, seus delitos. A violência armada, infelizmente, teve um lugar na história e na ideologia do movimento comunista. Em nome desta violência, o homem foi posto sob cadeias, quando nós o queríamos livre. Nossa derrota nasceu também daqui. Mas aquelas exigências permanecem presentes, continuam a ser atuais, e alguém terá de responder a elas..."

(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])


A esquerda precisa seguir o exemplo dessa autocritica de Pietro Ingrao. Precisa romper com a tradição autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia.