quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Em defesa de um projeto socialista e democrático

"Que perspectivas poderiam ter hoje, no Brasil, os projetos radicais revolucionários? Claro que as previsões históricas são difíceis, e a definição de objetivos vem sempre afetada por um certo grau de incerteza. Mas, se julgarmos pelo que se viu no século XX, colocar hoje suas fichas na revolução violenta é uma aposta altamente arriscada. As três revoluções "socialistas" mais importantes do século XX - a russa, a chinesa e a cubana - levaram aos piores resultados. Em primeiro lugar, elas custaram muito sangue e sofrimento. Para a primeira: coletivização forçada - mais ou menos 7 milhões de mortos -, terror e Goulag, mais uns 4 milhões ou 5 milhões de mortos, pelo menos etc.; para a segunda, além dos massacres dentro e fora do partido que começaram muito antes da vitória final, houve o chamado "grande salto para frente", que custou de 20 milhões a 30 milhões de mortos, a "revolução cultural", mais ou menos 1 milhão etc.; para a terceira: exílio de mais de 10% da população, repressão brutal de toda opinião dissidente, assassinatos políticos etc.

E tudo isso para desembocar em um capitalismo selvagem (China) ou mafioso (Rússia) ou em uma situação de miséria e colapso econômico (Cuba), que prenuncia também, a médio prazo, um retorno ao capitalismo. A acrescentar, nos três exemplos, a liquidação de todo movimento socialista-democrático e a desmoralização da idéia geral de "socialismo".

Porém os intelectuais que enveredam por essa via não se dispõem a extrair lições dessas experiências. Sua fé no "progresso social" é, à sua maneira, absoluta. Essa situação tem um contexto mais amplo, embora seja difícil dizer se se tratam de causas ou de efeitos. A melhor e mais importante literatura histórico-crítica sobre os "socialismos" do século XX nunca foi traduzida para o português, e os originais, em francês, inglês ou espanhol, pouco são vistos - e, menos ainda, lidos - no Brasil. Só para dar alguns exemplos: por que nenhum editor brasileiro se dispõe a publicar (pelo menos o final) "Cuba: The Pursuit of Freedom", de Hugh Thomas, o livro mais importante sobre a história de Cuba do século 18 à atualidade? Por que não se traduz a extraordinária autobiografia de Huber Matos, o quarto homem cubano da revolução, que passou 20 anos nas prisões de Fidel? Sobre a China, há 30 anos, sinólogos franceses e anglo-americanos aliam uma alta competência técnica a uma formidável lucidez na leitura da história chinesa do século 20. Por que nunca se traduziu -que eu saiba- nenhum dos seus livros (a começar, na ordem do tempo, pelos textos de Simon Leys)? Sobre a Rússia, traduziu-se mais. Penso, principalmente, no excelente "A Tragédia de um Povo", de Orlando Figes. Porém, quantos leram esse livro? Os leitores de Figes não são certamente tão numerosos quanto os dos ícones do pensamento terceiro-mundista, os da literatura gauchista -às vezes interessante, mas insuficiente - sobre o capitalismo ou os dos representantes nacionais do radicalismo revolucionário. O resultado se vê.

A relativa consolidação de Chávez na Venezuela (deixemos de lado, por ora, o caso Morales) não é motivo para modificar o julgamento crítico sobre os populismos e os totalitarismos. Há novidade, mas ela está em que os fatos mostram o que não é de modo algum uma boa notícia -que, na América Latina (em termos de força, simplesmente), as possibilidades do populismo não estão esgotadas; e revelam também, o que, em boa parte, é uma conseqüência, que o poder totalitário em Cuba terá, provavelmente, uma sobrevida maior do que se previa.

Convém lembrar que por trás da vitória dessas duas formas de autoritarismo está quase sempre a desmoralização dos poderes democráticos (democrático-capitalistas, embora) pela corrupção desenfreada da chamada "classe" política. Nesse sentido, para o conjunto da América Latina, incluindo o Brasil, as perspectivas são, de algum modo, inquietantes. A menos que a vitória de Bachelet no Chile incline a balança da esquerda latino-americana para outra direção.

Concluindo. Para além do modelo revolucionário e do modelo petista em plena crise, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático no Brasil, no contexto de uma política de esquerda antitotalitária para todo o continente. Apesar dos descaminhos de parte da social-democracia - mas não se trata de uma simples retomada da política social-democrata, mesmo nas suas melhores versões (sem falar em uma certa legenda nacional, que de social-democrata tem apenas o nome) -, o projeto socialista democrático está mais vivo do que se supõe."

(Ruy Fausto; em "A esquerda e o país". Artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 12/03/2006)

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