quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Enrico Berlinguer e o eurocomunismo
"Um dos capítulos mais importantes da história do socialismo democrático, no decorrer do século XX, encontra-se localizado nas reflexões empreendidas pelos intelectuais (militantes e dirigentes) reunidos em torno do Partido Comunista Italiano (PCI).
Do seu interior adveio uma boa parte das mais ricas contribuições para a renovação do pensamento socialista de matriz marxista, num momento em que este último rumava de maneira acelerada para o esclerosamento teórico, em virtude das vicissitudes da construção do sistema soviético a partir de 1917.(...)
Fundado pelas reflexões levadas a cabo por Antonio Gramsci durante os anos de luta contra o fascismo e desenvolvido por Palmiro Togliatti nos anos mais sombrios da Guerra Fria, o pensamento comunista italiano teve um terceiro salto de qualidade, em meio ao avanço da barbárie terrorista, com as propostas de Enrico Berlinguer.
Nos quinze anos em que esteve à frente do PCI — da sua eleição à vice-secretaria-geral no XII Congresso, em 1969, à sua morte, em 1984 —, Berlinguer foi responsável pela difícil obra de atualizar a "via italiana ao socialismo" em meio a uma significativa onda de transformações socioeconômicas e político-ideológicas, em nível mundial.
Então, se, por um lado, os fundamentos keynesiano-fordistas do Estado do Bem-Estar-Social começam a ser superados por um capitalismo cada vez mais flexibilizado, resultado da união entre política econômica monetarista e modelo de produção toyotista, por outro lado, uma série de novos movimentos sociais e políticos sai às ruas questionando as autoridades existentes, seja nos países capitalistas, seja nos países do chamado "socialismo real".
Na Itália, em particular, tais transformações foram implementadas num ambiente progressivamente inóspito à vida democrática. O medo de que um partido comunista chegasse ao comando da nação por vias democráticas — e não por um caminho insurrecional — acabou por acarretar uma sinistra situação, na qual extrema-direita fascista, extrema-esquerda autonomista e órgãos do próprio aparelho de Estado uniram-se em torno da prática de ações terroristas, com o intuito de inviabilizar as regras do jogo democrático, desestabilizando as instituições nacionais.
Porém, foi exatamente em meio a esta "estratégia da tensão" implementada nos anos setenta, na Itália, que Berlinguer formulou um conjunto de propostas teórico-políticas voltadas para o reforço dos vínculos existentes entre socialismo e democracia, como se da "escuridão" da tentação autoritária nascesse realmente a "luz" da radicalização da democracia.
O projeto de radicalização da democracia proposto por Berlinguer, a partir da matriz comunista originária, deve ser observado dentro da perspectiva gradualista trilhada pelos comunistas italianos(...)
Junto aos "elementos do socialismo", apresenta-se como segunda idéia-chave do projeto político berlingueriano a defesa do "valor universal da democracia". Anunciada em Moscou, no mês de novembro de 1977, em meio às comemorações pela passagem dos sessenta anos da Revolução Russa, a idéia da "democracia como valor universal" representou a cristalização do forte dissenso existente em relação às diretrizes impostas pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS) ao movimento comunista internacional e à forma assumida pelos regimes socialistas da União Soviética e do Leste europeu — dissenso que se vinha constituindo de forma cada vez mais intensa desde a repressão armada à "Primavera de Praga", na Tchecoslováquia, em 1968.
Ao polemizar abertamente com os dirigentes soviéticos, Berlinguer pretendia mostrar suas severas objeções à forma despótica assumida pelo "socialismo real". Pensar uma sociedade socialista, dirá na ocasião Berlinguer, implica imaginar "uma sociedade nova, que garanta todas as liberdades individuais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não-ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal".
Tal tese atrairá dois outros partidos comunistas da Europa Ocidental para um projeto conjunto, tecido por Berlinguer com a real intenção de ampliar a "via italiana ao socialismo" na direção de uma "via ocidental ao socialismo" — o "eurocomunismo". Fruto da interlocução com o Partido Comunista Espanhol (PCE) e o Partido Comunista Francês (PCF), o "eurocomunismo" situou como premissa de uma sociedade socialista o "desenvolvimento pleno da democracia" e o "direito de cada povo decidir livremente a forma do desenvolvimento socialista e do governo estabelecido".
Para Berlinguer, a exigência da vinculação entre socialismo e democracia estaria no centro de uma "terceira fase" da história do movimento operário, distinta dos tempos da unidade social-democrata novecentista (primeira fase) e dos anos de ruptura comunista pós-1917 (segunda fase) — uma forma alternativa encontrada pelo comunista sardo para abordar o problema da "terceira via" entre a social-democracia e o comunismo.
A reforçar em Berlinguer o sentimento de que aquilo que se desenvolvia no Leste cada vez menos se relacionava com a "terceira fase" da história do movimento operário, por ele propugnada, foram a invasão soviética no Afeganistão (1979) e o golpe de Estado dado na Polônia diante do avanço do sindicato Solidariedade (1981). Não lhe restava, então, outra coisa a não ser ratificar a ruptura definitiva que se tornava cada vez mais inevitável. Berlinguer declara, então, que a "fase aberta pela Revolução de Outubro encontrava-se irremediavelmente superada, tendo a sua capacidade propulsora sido esgotada".
Se o diálogo com os soviéticos assinalou uma parte do esforço teórico-político de Berlinguer, a outra metade das suas preocupações situava-se na necessidade de se confrontar com a Democracia Cristã, instrumento político responsável, desde a derrota do fascismo, pela manutenção do status quo na Itália.
Escaldado pela trágica experiência do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, que derrubou o governo da Unidade Popular liderado por Salvador Allende, no Chile, Berlinguer intui a necessidade da formação de um bloco de forças que viesse a impedir a repetição dos mesmos fatos em solo italiano. Para tal, apresenta a proposta de um "novo compromisso histórico" entre as três grandes forças responsáveis pela derrota do fascismo e pela construção da República italiana: os comunistas, os socialistas e os católicos.
De fato, no período compreendido entre 1973 e 1979, Berlinguer depositará grande parte das suas energias políticas na tentativa de erigir um governo pautado no entendimento entre o Partido Comunista e a Democracia Cristã, exatamente numa época em que, com raras exceções, como a do líder democrata-cristão Aldo Moro (por isso mesmo seqüestrado e assassinado pelos terroristas das Brigadas Vermelhas), a palavra "entendimento" era progressivamente retirada dos dicionários.
Através da estratégia berlingueriana do "compromisso histórico", o PCI alcançou, em 1975, o teto máximo em eleições políticas de 34,4% dos votos, aproximando-se em muito dos 38,7% dados à DC. No entanto, ela não foi forte o suficiente para se contrapor àqueles que continuavam a pensar a democracia italiana como um espaço não aberto a um governo com a participação dos comunistas, um raciocínio que atravessava os mais diversos posicionamentos políticos — da extrema-esquerda à extrema-direita, passando pelo centro católico e pela esquerda socialista liderada por Bettino Craxi.
Tal universo contribui em muito para que, na última fase da sua vida, Berlinguer visse no sistema político italiano uma fratura em relação ao próprio país, assumindo a crise política um novo conteúdo de ordem moral. Com a "questão moral" e a substituição da defesa de um governo de "solidariedade nacional" por um outro de "alternativa democrática", Berlinguer antevê aquilo que viria a ser destruído, na Itália, pela "Operação Mãos Limpas": um sistema político montado sobre a promiscuidade das relações entre partidos (DC e PSI), máfia, loja maçônica e empresariado, com a benevolência do próprio aparelho estatal. Uma promiscuidade que Berlinguer não teria a ocasião de ver desvelada."
(trecho de "Enrico Berlinguer", de Marco Mondaini)
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