quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Vamos acertar o ponto. 40 horas já!

Vamos acertar o ponto. 40 horas já!
Carlos Grana

O grande desenvolvimento da ciência e do pensamento da humanidade acelerou o tempo das transformações tecnológicas. O mundo nunca viu tantas evoluções, tantas transformações, como hoje se vê. O ser humano parece invencível, chegou à Lua, codificou o Genoma, navegou todos os mares e o ultrapassou a velocidade do som.

A automação tem sido um grande fator do aumento da produtividade e se impôs como norma para o desenvolvimento das indústrias. Há empresas em que o departamento de pesquisa e desenvolvimento tem orçamentos maiores que a produção.

Como efeito, ao longo dos anos, o investimento em inovação tecnológica e organizacional tem como um dos seus resultados a liberação do tempo de trabalho. E como esse ganho de tempo é dividido em nossa sociedade? Do lado dos trabalhadores sabemos: com o desemprego de uns e a sobrecarga de trabalho de outros.

Desde 1998 até o ano de 2008 a produtividade do trabalho cresceu cerca de 80% e esse ganho não foi repartido com os trabalhadores ou com a sociedade. E por outro lado, apesar do crescimento da Taxa de Ocupados durante o governo Lula, ainda há um contingente de 3,29 milhões de desempregados (PED/DIEESE).

A Confederação Nacional dos Metalúrgicos e a Central Única dos Trabalhadores defendem a redução da jornada como uma grande estratégia de distribuição de renda, de aumento dos postos de trabalho e da elevação da qualidade de vida para todos os brasileiros. É uma forma de gerar desenvolvimento, combatendo a pobreza e a concentração de riqueza onde todos ganham, trabalhadores e empresários. Mais que isso, a redução da jornada de trabalho é uma questão de justiça social no Brasil, país que tem uma das maiores concentrações de renda do mundo.

A Confederação Nacional da Indústria contabiliza que o custo médio da mão de obra para a produção é de 22%, isto quer dizer que de todos os gastos com a fabricação de um bem, pouco mais de um quinto representa os gastos com os trabalhadores. Porém, uma redução de 9,09% da jornada (de 44h para 40h) - representaria uma ampliação de apenas 1,99% do custo das empresas. Ao passo que o aumento do emprego formal representa aumento da arrecadação do Estado e aumento do mercado consumidor, pode-se dizer que este custo seria um investimento de médio e longo prazo, que retornaria em crescimento do mercado interno brasileiro.

Do ponto de vista do trabalhador a redução da jornada de trabalho está longe de ser um luxo, já que ela é uma das maiores do mundo - 44h semanais ou 2.112 horas/ano. Por exemplo, na Alemanha a jornada é de 1.428 horas/ano, no Japão são 1809 horas/ano, na Itália 1619 horas/ano e na Espanha 1807 horas/ano (OCDE, 2003). Isto demonstra que a redução da jornada não implica em perda de competitividade, já que estes países detêm economias desenvolvidas, dinâmicas e altamente competitivas.

Os baixos salários no Brasil elevam ainda mais a carga horária de trabalho, já que algo entre 40% e 60% de trabalhadores realizam horas extra com o objetivo de complementarem suas remunerações (PED/DIEESE). A legislação que regula a hora extra no Brasil é insuficiente e a simples limitação dessa prática tem um potencial de geração de 1 milhão de postos de trabalho.

Apesar disso, o movimento que tem ocorrido no Brasil é o contrário: o tempo de trabalho total além de aumentar em função da hora extra e da flexibilização ocorrida principalmente na década de 90, está cada vez mais intenso em função das diversas inovações técnico-organizacionais implementadas pelas empresas como a polivalência, o just-in-time, a concorrência entre os grupos de trabalho, as metas e a redução das pausas.

A intensificação da jornada de trabalho tem cada vez mais acometido os trabalhadores com doenças como estresse, depressão e lesão por esforços repetitivos, custo com o qual a sociedade tem que arcar. Do ponto de vista social, a redução da jornada de trabalho possibilitaria aos trabalhadores mais tempo para o convívio familiar, para o lazer e para o descanso.

Num contexto de crescente demanda dos empregadores para que os trabalhadores se qualifiquem, a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários, em muito contribuiria para esse aumento da qualificação, pois o trabalhador estaria mais descansado e teria mais tempo para essa "segunda" jornada.

A combinação dos fatores positivos que essa medida pode proporcionar possibilitaria a geração de um círculo virtuoso na economia: diminuição no desemprego - aumento da demandada - aumento da produtividade do trabalho - aumento da competitividade - diminuição dos gastos sociais - aumento da arrecadação tributaria - crescimento econômico - melhoria da distribuição de renda - redução dos acidentes e doenças do trabalho - aumento da qualificação do trabalhador.

E finalmente, além da geração de empregos e da melhoria da qualidade da mão de obra brasileira, a redução da jornada de trabalho possibilita ao trabalhador - produtor das riquezas do Brasil e do mundo - trabalhar menos e viver mais. Há de fundo nesta discussão um debate sobre o tipo de sociedade, de economia e trabalho que queremos.


Carlos Grana é presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT).

Ecos da violência



Ecos da violência
Valtenir Pereira*

O noticiário deste fim de semana foi marcado pela violência no Rio de Janeiro, que resultou em 25 mortes e a queda de um helicóptero da Polícia Militar. Todo o conflito ocorreu em virtude de um ataque de facções rivais no Morro do Macaco, oriundas das favelas Tabajaras, Morro São João, Mangueira, Jacarezinho e Alemão. O que parece estar distante e localizado nos grandes centros tem origem e solução no nosso próprio “quintal”.

Na noite de terça-feira (20), a Polícia Rodoviária Federal apreendeu em Primavera do Leste (MT) cinco fuzis 762, dois fuzis M1 calibre 30, 20 carregadores de fuzis e cinco mil munições para esses armamentos. Gravações da Polícia Civil do Rio de Janeiro comprovam a entrada de armas no país, sem nenhuma dificuldade, originarias da Bolívia, com destino às quadrilhas cariocas.

Todo o carregamento estava escondido na fuselagem de uma caminhonete F-100. O motorista, Vanderlei de Souza, afirmou à polícia que receberia R$ 10 mil para entregar o armamento a membros de uma facção criminosa no Rio.

Em minha atuação como parlamentar, sempre lutei para que nossa região fosse mais bem atendida, por servir justamente de “porta de entrada” para o tráfico de drogas e armas para outras regiões brasileiras. Só em Mato Grosso, existe uma fronteira “seca” de 700 quilômetros.

Como membro da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados convoquei audiência pública para debater a fragilidade das fronteiras brasileiras, em especial, de Mato Grosso com a Bolívia, ocasião em que diversas autoridades nacionais tomaram, mais uma vez, conhecimento dos problemas oriundos do descaso com a segurança em nossas fronteiras. Na Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional apresentei, para 2009, uma emenda de comissão, apoiada pelo relator,senador Delcídio Amaral (PT-MS) no valor de R$ 15 milhões que foram contingenciados em virtude da crise econômica. Infelizmente, e não por nossa culpa, o contingenciamento impediu que o dinheiro fosse liberado na totalidade.

Os recursos deveriam ser usados na compra de helicópteros para fiscalização das fronteiras de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, entre outras ações de segurança e combate ao tráfico de drogas e armas. Dada a urgência da situação, continuamos lutando para reaver esses R$ 14 milhões junto ao Ministério da Justiça. Chegamos a uma situação limite, pois a segurança pública tem que ser encarada como prioridade. Investir na segurança da região de fronteira é a principal estratégia para o combate ao crime organizado.

Outra questão levantada por essa onda de violência no Rio de Janeiro diz respeito ao traficante Fabiano Atanásio, que liderou a invasão ao Morro do Macaco. Condenado por crime hediondo, em 2002, sob o argumento de apresentar bom comportamento, o traficante foi beneficiado com a progressão de regime para sair da cadeia, trabalhar e voltar para a prisão. Porém, ele fugiu. Hoje existem 14 mandados de prisão contra Fabiano.

Não é a primeira vez que criminosos, considerados de alta periculosidade, são beneficiados com o regime de progressão de pena. O caso do garoto Kaytto Guilherme, em Mato Grosso, demonstra o quanto a sociedade está vulnerável aos condenados por crimes hediondos que provoca grande repulsa social. Kaytto foi violentado e morto por Edson Delfino, pedófilo que foi beneficiado pelo regime semi-aberto. Colocado em liberdade, Delfino praticou o mesmo crime pelo qual foi condenado.

É urgente a mudança da legislação para evitar que novos crimes hediondos continuem a chocar a sociedade. Por essa razão, apresentei a Proposta de Emenda à Constituição número 364/2009, que ficou conhecida como “PEC Kaytto”. Essa proposição já está pronta para ser apreciada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, com parecer favorável do deputado federal Ciro Nogueira (PP-PI).

A sociedade tem que demonstrar sua indignação e combater essa situação de violência que atinge a todas as classes sociais. Temos que concentrar os esforços para combater as organizações criminosas e toda a forma de violência que fere as famílias brasileiras.

(*)Valtenir Pereira é Defensor Público Licenciado e Deputado Federal (PSB/MT)

O DESENCANTO DE RUY BARBOSA

O DESENCANTO DE RUY BARBOSA
*Silvio Mendonça

Em 1914, em célebre discurso proferido no Senado da República, Ruy Barbosa proclamou o seu desencanto com a maioria dos políticos desta terra brasileira: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."

Passado quase um século, eu acompanho pela imprensa a seqüência de absolvições dos deputados envolvidos no escândalo do "mensalão", e volta mais uma vez em mim esse teimoso sentimento de desencanto de que falou o nosso notável Ruy. É uma sensação dolorosa, porque as esperanças definham e os sonhos se desvanecem nessa aridez de bons valores; e o homem sem sonhos e sem esperanças torna-se a figura triste de quem traz a alma acabrunhada, desiludida. Por isso temos que logo afastar esse tipo sentimento, e mantermos a luta serena e perseverante na trincheira de nossos valores éticos.

Mas é preciso romper essa estrutura que domina o Brasil, desde os tempos de Ruy! E precisamos fazê-lo em sua raiz, ou seja, no íntimo de cada um de nós, dando o exemplo da conduta reta e honesta; tendo orgulho de não se entregar à maré das vantagens fáceis porque sabe que, sobre o patrimônio material, ergue-se sempre o caráter forjado nas árduas batalhas em defesa da dignidade e das virtudes.

Cada um de nós deve cultivar o "bom pensamento", porque do pensamento é que nascem os "desejos", e destes é que resultam as "ações". As ações que se repetem formam "hábitos", e é o conjunto desses vários hábitos que forma o nosso "caráter". E no caráter, nesta marca indelével que se finca na nossa própria personalidade, repousa o inexorável caminho que traçamos para o nosso "destino", na obrigatória colheita do que plantamos.

Então, se o destino deve ser redirecionado, liberto de suas mazelas, mudemos antes de tudo a nossa maneira de pensar; olhemos mais as dores alheias, busquemos alívio ao sofrimento dos inocentes e puros, deixemos um pouco de lado as nossas intermináveis querências e desejos materiais. Aí teremos chance de começar a mudar a nossa sociedade, os nossos políticos (que nós elegemos!) e o destino do nosso País.


*Silvio Mendonça é juiz de direito aposentado, foi professor de Economia Política e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Unisantos. Atualmente é Conselheiro Fiscal do Diretório Nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB).

A CAVERNA DE PLATÃO

A CAVERNA DE PLATÃO

Frei Betto *

No livro VII de A República, Platão narra que Sócrates propôs a seus ouvintes imaginarem um grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar. Lá fora há uma fogueira, cujas chamas projetam dentro da caverna as sombras de quem passa diante da entrada. Os prisioneiros, que nunca viram o mundo exterior, julgam que as sombras e o eco das vozes são reais.

O capitalismo, em seus primórdios, produzia em função das necessidades humanas. Não se investia em algo que o consumidor julgasse desnecessário. A superprodução inventou a publicidade de modo a inverter o processo, já não é o consumidor que busca o produto, é o produto que se impõe ao consumidor.

O avanço tecnológico e o designer tornam a mercadoria descartável. Não basta ter um rádio. É preciso ter o novo rádio, de linhas arrojadas, formado menor, capaz de funcionar a pilha. Assim, graças à publicidade o supérfluo torna-se necessário.

Nessa sua fase neoliberal, em pleno advento da pós-modernidade, o capitalismo introduz o mercado como paradigma supremo. Se no período medieval o paradigma foi teocêntrico, e a fé figurava como rainha do saber; se no período moderno o paradigma antropocêntrico fez a fé ceder lugar à razão; agora o mercado não se interessa pelo homem religioso ou racional, interessa-se pelo consumista. E quanto menos razão, mais emoção, o que induz o consumidor a contemplar, embevecido, um novo computador ou os veículos expostos no Salão do Automóvel. Assim, o capitalismo alcança o nosso inconsciente.

Agora, de costas à concretude da existência e indiferentes à sua historicidade, tomamos as sombras por realidades. O sentido da vida desloca-se da fé (coração) e dos ideais (razão) para centrar-se nos objetos possuídos. Vive-se em função de bens finitos. Mesmo para o jovem morador da favela, o tênis de marca é mais importante que a escolaridade e a formação profissional.

A pessoa é o quem tem e ostenta, e não os valores e propósitos que assume. As aparências contam mais que o ser, e ainda que isso não seja verdade há o socorro miraculoso do marketing para convencer-nos de que faz bem à saúde o refrigerante descalcificador; imprime sedução a cerveja que alcooliza; concede status o carro luxuoso. Vale a pena votar no político safado revestido de ética!

Se os bens finitos superam os infinitos, e o desejo converge para o absurdo, e não para o Absoluto, não é de se estranhar que as frustrações sejam proporcionais às ambições. Todos invejam o alpinismo de seus ídolos incensados pela mídia, embora deles conheçamos apenas as sombras projetadas na tela da TV e das revistas, pois estamos irremediavelmente de costas para a porta da rua, convencidos de que o personagem representado por aqueles que exibem fama, poder e riqueza é mais real que as pessoas deles.


*Frei Betto é frei dominicano. Escritor, é autor de "Típicos tipos - perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.

Ruy Fausto



Declaração de Ruy Fausto, filósofo marxista, professor emérito da USP, na Conferência Caio Prado Jr, realizada nos dias 17,18 e 19 de agosto de 2007 em Brasília-DF

Em defesa de um projeto socialista e democrático

"Que perspectivas poderiam ter hoje, no Brasil, os projetos radicais revolucionários? Claro que as previsões históricas são difíceis, e a definição de objetivos vem sempre afetada por um certo grau de incerteza. Mas, se julgarmos pelo que se viu no século XX, colocar hoje suas fichas na revolução violenta é uma aposta altamente arriscada. As três revoluções "socialistas" mais importantes do século XX - a russa, a chinesa e a cubana - levaram aos piores resultados. Em primeiro lugar, elas custaram muito sangue e sofrimento. Para a primeira: coletivização forçada - mais ou menos 7 milhões de mortos -, terror e Goulag, mais uns 4 milhões ou 5 milhões de mortos, pelo menos etc.; para a segunda, além dos massacres dentro e fora do partido que começaram muito antes da vitória final, houve o chamado "grande salto para frente", que custou de 20 milhões a 30 milhões de mortos, a "revolução cultural", mais ou menos 1 milhão etc.; para a terceira: exílio de mais de 10% da população, repressão brutal de toda opinião dissidente, assassinatos políticos etc.

E tudo isso para desembocar em um capitalismo selvagem (China) ou mafioso (Rússia) ou em uma situação de miséria e colapso econômico (Cuba), que prenuncia também, a médio prazo, um retorno ao capitalismo. A acrescentar, nos três exemplos, a liquidação de todo movimento socialista-democrático e a desmoralização da idéia geral de "socialismo".

Porém os intelectuais que enveredam por essa via não se dispõem a extrair lições dessas experiências. Sua fé no "progresso social" é, à sua maneira, absoluta. Essa situação tem um contexto mais amplo, embora seja difícil dizer se se tratam de causas ou de efeitos. A melhor e mais importante literatura histórico-crítica sobre os "socialismos" do século XX nunca foi traduzida para o português, e os originais, em francês, inglês ou espanhol, pouco são vistos - e, menos ainda, lidos - no Brasil. Só para dar alguns exemplos: por que nenhum editor brasileiro se dispõe a publicar (pelo menos o final) "Cuba: The Pursuit of Freedom", de Hugh Thomas, o livro mais importante sobre a história de Cuba do século 18 à atualidade? Por que não se traduz a extraordinária autobiografia de Huber Matos, o quarto homem cubano da revolução, que passou 20 anos nas prisões de Fidel? Sobre a China, há 30 anos, sinólogos franceses e anglo-americanos aliam uma alta competência técnica a uma formidável lucidez na leitura da história chinesa do século 20. Por que nunca se traduziu -que eu saiba- nenhum dos seus livros (a começar, na ordem do tempo, pelos textos de Simon Leys)? Sobre a Rússia, traduziu-se mais. Penso, principalmente, no excelente "A Tragédia de um Povo", de Orlando Figes. Porém, quantos leram esse livro? Os leitores de Figes não são certamente tão numerosos quanto os dos ícones do pensamento terceiro-mundista, os da literatura gauchista -às vezes interessante, mas insuficiente - sobre o capitalismo ou os dos representantes nacionais do radicalismo revolucionário. O resultado se vê.

A relativa consolidação de Chávez na Venezuela (deixemos de lado, por ora, o caso Morales) não é motivo para modificar o julgamento crítico sobre os populismos e os totalitarismos. Há novidade, mas ela está em que os fatos mostram o que não é de modo algum uma boa notícia -que, na América Latina (em termos de força, simplesmente), as possibilidades do populismo não estão esgotadas; e revelam também, o que, em boa parte, é uma conseqüência, que o poder totalitário em Cuba terá, provavelmente, uma sobrevida maior do que se previa.

Convém lembrar que por trás da vitória dessas duas formas de autoritarismo está quase sempre a desmoralização dos poderes democráticos (democrático-capitalistas, embora) pela corrupção desenfreada da chamada "classe" política. Nesse sentido, para o conjunto da América Latina, incluindo o Brasil, as perspectivas são, de algum modo, inquietantes. A menos que a vitória de Bachelet no Chile incline a balança da esquerda latino-americana para outra direção.

Concluindo. Para além do modelo revolucionário e do modelo petista em plena crise, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático no Brasil, no contexto de uma política de esquerda antitotalitária para todo o continente. Apesar dos descaminhos de parte da social-democracia - mas não se trata de uma simples retomada da política social-democrata, mesmo nas suas melhores versões (sem falar em uma certa legenda nacional, que de social-democrata tem apenas o nome) -, o projeto socialista democrático está mais vivo do que se supõe."

(Ruy Fausto; em "A esquerda e o país". Artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 12/03/2006)

Os 50 anos da Revolução Cubana



Cuba era uma colônia espanhola, mas foi conquistada pelos EUA em 1898, quando os estadunidenses derrotaram os espanhois na Guerra Hispanico-Americana. Cuba permaneceu ocupada pelos EUA até 1902, sendo liberada depois da aprovação de uma emenda à Constituição cubana que dava o direito, aos EUA, de invadir Cuba a qualquer momento em que os interesses econômicos dos EUA fossem ameaçados. A chamada Emenda Platt permaneceu mantendo Cuba um protetorado estadunidense até 1933.

Fulgêncio Batista, um militar mulato, assumiu o poder após liderar um golpe militar em 1933, e governou o país até 1944. A corrupção tomava conta de Cuba, e o capital proveniente do submundo ítalo-americano (a máfia dos EUA) financiava grande parte da economia cubana. Em 1952, o general Fulgêncio Batista liderou um novo golpe militar e reassumiu o poder, estabelecendo uma ditadura que era submissa aos interesses estadunidenses, inclusive 40% da produção açucareira da ilha era controlado diretamente pelo capital yankee. Isso gerou um grande sentimento de anti-americanismo na população cubana, e no dia 26 de julho de 1953, Fidel Castro - um advogado membro do Partido Ortodoxo - liderou um ataque ao quartel de Moncada. Frustada a tentativa, os rebeldes foram para a prisão e, em maio de 1955, depois de anistiados, foram para o exílio no México.

Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA, inclusive em 1958, havia um total de 500 prostitutas em Havana, sendo a indústria da prostituição a mais rentável da ilha. A prostituição, a corrupção e negociatas caracterizaram a era Batista, e, pouco a pouco, a classe média afastou-se do regime.

Fora de Cuba, Fidel e seu irmão, Raul Castro, conheceram o médico argentino Ernesto "Che" Guevara, e juntos organizaram o movimento 26 de julho, com o claro objetivo de voltar a Cuba a derrubar a ditadura de Batista. Compraram o iate Granma, que partindo do México com cerca de 80 revolucionários, dirigiu-se a Cuba para iniciar a revolução em 2/12/1956.

O desembarque dos revolucionários do iate Granma estava sendo esperado pelas tropas de Fulgênio Batista(o ditador cubano que era "capacho" dos EUA), e marcou-se por uma sangrenta luta que levou à morte a maior parte dos integrantes do movimento.

Fidel, Raul e "Che" conseguiram chegar à Sierra Maestra, de onde passaram a organizar os camponeses para a luta armada. Ao mesmo tempo, os rebeldes buscavam o apoio de setores da burguesia contrário à ditadura de Fulgêncio Batista e que acreditavam em um projeto nacionalista para Cuba, dentro do respeito à propriedade privada. Era assinado, então, o Manifesto de Sierra Maestra, que no ano seguinte, 1958, foi ampliado pela formação da Frente Cívico-Revolucionária Democrática, no qual a burguesia cubana concordava com a luta armada para depor Fulgêncio Batista.

Em outubro de 1958 teve início a "Marcha sobre Havana", que cai em mãos dos rebeldes em 1º de janeiro de 1959. Com a fuga do ditador, montou-se o Governo Provisório, tendo à frente o presidente Manuel Urrutia e o primeiro-ministro Miró Cardona, que no início era apenas reformista. O comandante Fidel Castro substituiu Miró Cardona no cargo de primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959, e Miró Cardona tornou-se o embaixador de Cuba na Espanha.

São nacionalizadas empresas norte-americanas de petróleo e transporte, reformuladas as políticas de educação e saúde pública, suprimidos os latifúndios e realizada a reforma agrária.

A tensão entre a burguesia e as camadas populares se ampliam na medida em que essas consideravam as reformas precárias em relação às suas necessidades. Logo, o presidente Manuel Urrutia é substituído por Osvaldo Dorticós, o que levou à preponderância dos anseios populares.

As medidas reformistas foram suficientes para provocar o descontentamento norte-americano, que foi impondo uma série de medidas restritivas - como por exemplo o boicote ao açúcar cubano. No final de 1960, Miró Cardona e os setores da burguesia que haviam apoiado a revolução, se unem aos americanos no objetivo de derrubar o governo Fidel Castro. Os anticastristas liderados por Cardona são armados e treinados pela CIA(agência de inteligencia americana), e realizam em abril de 1961, a tentativa de invasão ao território cubano no malogrado desembarque à Baía dos Porcos.

As pressões norte-americanas, em meio à Guerra Fria, culminaram com a expulsão de Cuba da OEA, em 1962. Desse episódio, a URSS aproveita-se para enfraquecer as posições dos Estados Unidos e prometem instalar uma base de mísseis em Cuba, gerando um dos episódios mais tensos da Guerra Fria, quando navios americanos impedem a frota russa de chegar à ilha, em outubro de 1962.

Em troca de pretensa paz mundial, Estados Unidos e URSS assinam um acordo em que a URSS se compromete a não instalar bases de mísseis em Cuba e os Estados Unidos a não tentar invadir novamente a ilha. A partir de então, Cuba passa a vivenciar a primeira experiência socialista da América Latina.

Em 1963, foi criado o Partido Unificado da Revolução Socialista que, em 1965, foi substituído pelo Partido Comunista Cubano.

As conquistas sociais da revolução

A educação é controlada pelo Estado e a Constituição de Cuba determina que o ensino fundamental, médio e superior devem ser gratuitos a todos os cidadãos cubanos.

Em 1958, antes do triunfo da revolução, 23,6% da população cubana era analfabeta e, entre a população rural, os analfabetos eram 41,7%. Após a vitória da revolução, se realiza uma campanha nacional para alfabetizar a população e Cuba torna-se o primeiro país do mundo a erradicar o analfabetismo (Segundo dados do próprio governo). Hoje não há mais analfabetos em Cuba. Segundo o The World Factbook 2007 (1), publicado pela CIA, 99.8% da população cubana, acima de 15 anos, sabe ler e escrever. De acordo com os resultados obtidos nos testes de avaliação de estudantes latino-americanos, conduzidos pelo painel da Unesco, Cuba lidera, por larga margem de vantagem, nos resultados obtidos pelas terceiras e quartas séries em matemática e compreensão de linguagem. "Mesmo os integrantes do quartil mais baixo dentre os estudantes cubanos se desempenharam acima da média regional", disse o painel (2).

Em Cuba a prestação de serviços relacionados à saúde é totalmente gratuito, o que se espelha em seus indicadores padrão. A taxa de mortalidade infantil abaixo de 5 (probaliblidade de morrer antes dos 5 anos) em Cuba é 7, (índice só superado nas Américas pelo Canadá, onde é de 6; nos Estados Unidos é 8, e no Brasil é 33) (3) . A expectativa de vida ao nascer em Cuba é de 75 anos para os homens e de 79 para as mulheres; nos Estados Unidos é de 75/80 (4).

(1) The World Factbook — Cuba
(2) MARQUIS, Christofer. Cuba Leads Latin America in Primary Education, Study Finds. The New York Times, 14 de dezembro de 2001
(3) Probability of dying (per 1 000 live births) under five years of age (under-5 mortality rate) , 2005. Organização Mundial da Saúde
(4) Life expectancy at birth (years), 2005. Organização Mundial da Saúde

Entretanto é preciso lembrar que essas conquistas sociais da revolução não podem servir de máscara para esconder que em Cuba existe uma ditadura burocratica de partido único. Em Cuba não existe liberdade de expressão, e muito menos liberdade de imprensa. Quem pensa diferente do governo castrista pode perder o emprego e pior, ser preso. Se não bastasse isso, o regime castrista executa quem tenta fugir do país(como ocorreu em 2003, quando três sequestradores de um barco que tentavam fugir para os EUA, foram executados apenas duas semanas após serem presos. Mesmo dentro do capitalismo não se condenam seqüestradores à morte, especialmente se não houve mortes, e os prazos de defesa em geral são maiores).

Mesmo na educação, onde Cuba consegue indices invejados por nós, como ter erradicado o analfabetismo e garantir um ensino gratuito e de qualidade do nível fundamental ao nível superior, a discriminação educativa por razões políticas é um fato que ainda se mantém e deve ser condenado.

O historiador marxista Jacob Gorender, um dos mais importantes intelectuais da esquerda brasileira, deixa claro sua oposição ao regime de partido unico em Cuba.

"O regime ideal para Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 16)

Ditadura de partido unico, regimes totalitarios e burocratizados, não fazem parte daquilo que a filosofia marxista defende. Essas aberrações são oriundas do leninismo, também conhecido como bolchevismo, ou seja, são oriundas da concepção socialista desenvolvida por V.Lenin e demais revolucionários russos do histórico "Outubro de 1917", que deu inicio a degeneração do marxismo e abriu caminho para o surgimento da bestialidade stalinista, originando o finado "socialismo real", do qual a ditadura castrista é herdeira.

Sou defensor de um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia, por isso me oponho a ditadura castrista em Cuba. Me oponho aqueles que defendem acriticamente o regime castrista, confundindo a defesa da Revolução Cubana com a defesa do regime liderado por Fidel e seu irmão, Raúl Castro.

A esquerda precisa apoiar com todo empenho a Revolução Cubana, a sua luta contra o imperialismo, as suas conquistas sociais, sem contudo confundir isso com apoio a ditadura de partido unico existente em Cuba.

A renúncia de Fidel Castro em fevereiro de 2008, abriu claras perspectivas de reforma no socialismo cubano. No dia 28/02/08, o ministro das Relações Exteriores de Cuba, Felipe Pérez Roque, assinou na sede da ONU, em Nova York, dois tratados internacionais que ampliam as garantias de respeito aos direitos humanos no país. O governo de Raúl Castro suspendeu a proibição da venda de diversos artigos eletrônicos na ilha, como computadores e aparelhos de DVD, além de ter liberado o acesso a telefonia celular. Além disso, na Assembléia Nacional de Cuba está em discussão um projeto de lei que estabelece os direitos civis para homossexuais, bissexuais e transgenêros.

O governo cubano também decidiu ceder terras estatais ociosas a cooperativas e produtores privados, em medida destinada a impulsionar a produção de alimentos, café e fumo. Além disso, o governo cubano anunciou, no começo de junho de 2008, o prazo para a eliminação do igualitarismo salarial e a substituição do atual sistema por uma gestão na qual o pagamento é feito com base no rendimento e produtividade.

BBC Brasil - 31 julho, 2008

Raúl Castro marca dois anos no poder com reformas em Cuba


O presidente Raúl Castro completa dois anos à frente do governo de Cuba, um período que começou com o irmão do líder Fidel Castro conseguindo manter a estabilidade no país.

Raúl assumiu o cargo em 31 de agosto de 2006 e foi eleito pela Assembléia Nacional do Poder Popular (o Parlamento cubano) no dia 24 de fevereiro deste ano, assumindo oficialmente o cargo de presidente.

Entretanto, desde agosto de 2006, Raúl Castro conseguiu manter os rumos políticos do país, a população tranqüila no momento de transição, os americanos quietos com uma proposta de diálogo com os Estados Unidos e o próprio país funcionando.

Para conseguir tudo isto, Raúl Castro contou com o apoio de seu irmão e com sua própria habilidade para dividir responsabilidades.

Bases

Ao compreender que sua permanência no cargo de presidente não seria temporária, Raúl Castro começou a lançar as bases de seu governo.

O primeiro passo foi pedir aos secretários provinciais do Partido Comunista Cubano (PCC) a aos dirigentes de grandes empresas que enviassem suas críticas ao funcionamento do sistema em suas respectivas áreas de trabalho. E propostas concretas para a solução destes problemas.

Castro recebeu de volta uma avalanche de opiniões que refletiam as incoerências de um sistema econômico dirigido por critérios políticos, estruturado sobre a base de um modelo ideológico.

As mudanças teriam que ser profundas e, no dia 26 de julho de 2007, Castro fez o anúncio destas mudanças, pouco antes de iniciar um debate nacional que tornou públicas as críticas da população e proporcionou o apoio político que precisava para iniciar as transformações.

Mesmo com os mais ortodoxos tentando limitar o debate, Castro foi à televisão para avisar que não havia tema proibido.

A partir daí, toda a população começou a pedir mudanças. Surgiram protestos contra salários baixos, problemas de transportes, falta de moradias e a necessidade de centros de lazer.

No total, Raúl Castro recebeu 1,2 milhão de críticas, a maioria pedindo reformas econômicas que poderiam ser feitas dentro de um socialismo reformulado.

Reformas

Assim, Raúl Castro chegou ao dia 24 de fevereiro de 2008, quando foi eleito à Presidência pelo Parlamento, pronto para fazer as mudanças pedidas pelo povo: reforma agrária, melhorias salariais e a eliminação das proibições.

A reforma de maior alcance será a agrária. O plano é distribuir entre os cubanos 50% das terras cultiváveis e também haverá a mudança na estrutura da organização agrária do país.

Até hoje esta estrutura é baseada em propriedades estatais e 80% das terras cultiváveis de Cuba estão nas mãos destas propriedades.
Quando o processo de reforma chegar ao ponto máximo, 70% do total das terras estarão nas mãos de cooperativas e pequenos agricultores, alguns proprietários e outros usufruindo gratuitamente.

Além da entrega de terras, agências de notícias de outros países também relatam que foram abertas linhas de crédito para o início, ampliação ou continuidade da semeadura de lavouras.

E, com o fim da igualdade salarial - princípio pelo qual, por mais que se trabalhasse, o empregado não poderia ganhar mais - deve começar a recuperação do poder aquisitivo dos salários.

Redefinição

A justiça social que se pretendia com a política de teto salarial acabou diminuindo os incentivos ao trabalhador e, segundo Raúl Castro, beneficiou os "preguiçosos".

"Socialismo é igualdade de direitos e de oportunidades, não de renda", disse Castro.

Com este reconhecimento das diferenças, Castro desencadeou também outra medida: a eliminação de proibições como posse de celulares e eletrodomésticos, e de estadias em hotéis. Com isso, milhares de celulares, motos e aparelhos de DVD foram vendidos e 10 mil quartos de hotel foram reservados.

Isto significa mais renda para o Estado, que pode utilizar no setor de habitação e transportes.

E o transporte é o setor em que o governo conseguiu sua grande vitória. Centenas de novos ônibus foram comprados apenas para Havana, aumentando o número de passageiros diários de 450 mil para 846 mil.

Burocracia

Para todas estas reformas, Raúl Castro deve tentar neutralizar seus piores inimigos no momento: burocracia e ortodoxia.

O próximo grande passo - planejado para 2009 - deve ser o Congresso do PCC que, em sua qualidade constitucional de "órgão governante da sociedade", deverá avaliar e, portanto, institucionalizar, as reformas.

Além disso, Raúl Castro também enfrenta outros problemas como a apatia crescente da população e a imigração de jovens profissionais. E Cuba também está sendo prejudicada pelo aumento mundial no preço dos alimentos.

Sejam quais forem as soluções, deverão ser aplicadas com rapidez, para que a expectativa do povo não se transforme em desânimo.

"Se há algo que aprendemos bem é que o tempo passa depressa. Desperdiçá-lo com inércia ou indecisão é uma negligência imperdoável", disse Castro.

Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080731_raulcastrodoisanosfn.shtml


A esquerda socialista e democrática precisa apoiar essas reformas, fazendo pressão para que sejam ampliadas e promovam uma renovação completa do socialismo cubano, uma renovação que promova o estabelecimento de um Estado democrático e socialista de direito, com pluripartidarismo, sindicatos livres, direito de greve, imprensa livre, eleições livres, maior liberdade religiosa, etc. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, afinal, como disse a revolucionária Rosa Luxemburgo:

"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês [...]". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Leia o texto abaixo e reflita

As prisões de Cuba
Pietro Ingrao - Abril 2003

As notícias que chegam de Cuba são alarmantes e não permitem o silêncio. Em 3 de abril, ocorreram em diversos lugares da ilha processos contra 78 "dissidentes" ou — para usar palavras mais diretas — opositores do regime castrista. Somando as várias condenações infligidas a estes opositores, chega-se a centenas e centenas de anos de cárcere. São cifras espantosas. E, no caso destes processos, falar de rito sumário é um eufemismo um pouco ridículo.

Também não podemos nos enganar: é impossível que, nestes verdadeiros processos-relâmpago, tenham sido garantidos direitos de defesa elementares e tenha havido aquela prudência elementar, necessária, que, no entanto, é o tempero obrigatório quando se decide sobre a liberdade ou o encarceramento dos indivíduos e dos grupos.

Eram os acusados opositores do regime castrista e até — usemos a palavra forte — conspiravam contra o regime? E o que mais podiam fazer, visto que em Cuba faltam direitos essenciais de palavra, de organização, de luta política pública e reconhecida? E isso ainda hoje, quarenta anos depois da insurreição armada e da emergência revolucionária. E, além disso, onde está escrito que, até mesmo aos conspiradores algemados — quando não estão em condições de causar danos —, não devam ser concedidos elementares direitos e instrumentos de defesa? A justiça — esta palavra tão nobre e solene — carece, como do pão, do contraditório público e prolongado. Sem isso, o recinto do tribunal se torna uma farsa, um engano feroz.

Ainda no início de abril — numa conexão alucinante —, realizou-se em Cuba um outro processo, que levou à condenação à morte de três jovens que haviam seqüestrado uma balsa para alcançar o litoral dos Estados Unidos. Quem escreve aprendeu, em sua vida, a odiar a condenação à morte — este assombroso poder de matar aquele que já está algemado e confinado nas paredes de um cárcere. Mas aquela condenação à morte que se consuma e se realiza quase como um raio, e não permite apelação, e recusa até um momento de hesitação na hora de matar o indefeso — é verdadeiramente algo repugnante. E é enganosa: tem-se a ilusão de cancelar, com a mão do carrasco, os problemas políticos e humanos que não se sabe resolver.

Dir-se-á: tudo isso é necessário a Fidel para se proteger dos complôs americanos. Eu receio, ao contrário, que isso ajude Bush a dizer: vejam como é indispensável a superpotência americana...

Este é o quadro amargo. Eu não esqueço aquilo que, da insurreição cubana, veio como esperança e símbolo para um terceiro mundo sufocado pelo imperialismo e até para a difícil luta da esquerda anticapitalista no Ocidente avançado. Embora, pessoalmente, tenha tido dúvidas, muitas, realmente muitas — desde o início —, naquela segunda metade do século XX, quando pusemos o retrato do "Che" sobre um móvel da casa e cantamos nas manifestações a canção inesquecível. E acredito perceber, compreender o quanto ainda hoje Cuba represente uma esperança: antes de mais nada, para o continente centro-americano em busca de resgate, e também para outros lugares. Tanto mais agora, quando a superpotência americana proclamou — diante do mundo — o advento da era da "guerra preventiva".

Mas, se a questão agora é esta — como se vê na prática —, menos ainda podemos ter a ilusão de superar tal desafio com processos sumários e fuzilamentos fulminantes. Sinto repulsa por aqueles novíssimos cárceres de Guantânamo, nos quais não mais existe sequer a proteção, o recolhimento em si mesmo que a escuridão da cela propicia. Mas como posso combater as alucinações de Guantânamo se recorro à pena capital contra fugitivos recapturados e já com os pulsos algemados?

A batalha contra Bush e contra a doutrina da "guerra preventiva" pede outros caminhos: novos e diferentes. E se nutre de pacifismo, não de cárceres e algemas até absurdas, e de carrascos manchados de sangue.

Um intelectual, grande amigo de Cuba — o Nobel Saramago —, declarou a sua discordância. É uma escolha que reclama a coragem da verdade, e só Deus sabe se é preciso coragem diante dos desafios abertos no mundo.

Autor: Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, escreveu este texto para Il Manifesto , 15 abr. 2003. Um dos seus livros está disponível em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980) — e é momento fundamental da reflexão sobre democracia política e socialismo.

O pensamento marxista de Karl Kautsky e a social democracia clássica



A social-democracia clássica fundamentava-se no marxismo e defendia a luta pelo socialismo. Um dos seus principais teóricos foi Karl Kautsky, nascido em Praga no dia 18 de outubro de 1854. Essa social-democracia clássica nasceu revolucionária, mas com o avanço da "socialização da política", conquistada em virtude das lutas heróicas do movimento operário e popular, passou a defender um caminho pacífico para o socialismo, afirmando que a democracia é necessária na futura sociedade socialista, e que graças as vitórias obtidas pelo movimento operário e popular, o próprio socialismo poderia ser construido de forma democrática, atráves de eleições e da luta parlamentar.

Karl Kautsky

O teórico político marxista Karl Kautsky foi uma das mais importantes figuras da história do marxismo, tendo editado o quarto volume de O Capital, de Karl Marx, as Teorias de Mais-Valia , que continha a avaliação crítica de Marx às teorias econômicas dos seus predecessores.

Kautsky estudou história e filosofía na Universidade de Viena, e se tornou membro do Partido Social Democrata em 1875. De 1885 a 1890, ele viveu em Londres, onde se tornou amigo de Friedrich Engels. Em 1891, foi co-autor do Programa de Erfurt do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), junto com August Bebel e Eduard Bernstein.

Kautsky não foi nenhum "renegado", como foi acusado injustamente por Lenin. Apesar de ter apoiado a participação alemã na Primeira Guerra Mundial, Karl Kautsky não sustentou esta "posição patriótica" até o fim da guerra. Em Junho de 1915, cerca de dez meses após a guerra ter começado, quando tornou-se evidente que seria uma guerra brutal e desumana, ele emitiu um recurso com Eduard Bernstein e Hugo Haase contra os líderes pró-guerra do SPD, e denunciou o governo de possuir objetivos imperialistas. Kautsky e demais opositores do apoio a guerra, foram expulsos do SPD em 1916. No ano seguinte, Kautsky e outros socialistas que se opunham a guerra, fundaram o Partido Social Democrata Independente. Kautsky retornou para o SPD apenas em 1922.

Quando Eduard Bernstein defendeu a revisão do marxismo, afirmando que a esquerda deveria se preocupar com as reformas que beneficiavam a vida dos trabalhadores, e não com a luta pelo socialismo, Kautsky se posicionou contra essa revisão. Apesar de defender o caminho reformista, Kautsky deixava claro que este só teria sentido em conexão com a luta pelo socialismo. Ele disse que:

"Quando Bernstein diz que devemos ter primeiramente a democracia para conduzir passo a passo o proletariado à vitória, eu digo que para nós a questão é inversa. A vitória da democracia está condicionada pela vitória do proletariado."

Kautsky também rejeitou a tentativa de Bernstein, de transformar o SPD em um "partido do povo". Embora o proletariado pudesse aliar- se, momentaneamente, às frações de classes pequeno- burguesas e camponesas para obter certos objetivos políticos e reformas administrativas, não deveria, contudo, cooperar com eles em uma organização duradoura. A preservação do caráter de classe, portanto, possibilitaria a organização do proletariado em um partido político autônomo, consciente da luta de classes que deve travar e de seus objetivos: supressão da propriedade individual dos meios de produção capitalista. Ao contrário, a fusão do proletariado em um partido único com todas as classes populares implicaria na renúncia à revolução e na obrigação de se contentar com algumas reformas sociais.

Deste modo, segundo Kautsky, "não se deve considerar que o socialismo aperfeiçoará, mas sim vencerá o liberalismo; não se pode contentar em ser um partido que se limite às reformas democrático- socialistas; deve- se ser o partido da revolução social", pois "a revolução social (...) é o objeto fatal ao qual tende toda organização política autônoma do proletariado"(Karl Kautsky; La doctrina socialista). Para tanto, Kautsky argumenta que todo partido deveria se dispor à conquista do poder político para "moldar o Estado" e fazer com que as suas forças atuem sobre as formas sociais em adequação às metas partidárias.

Para Kautsky, o socialismo não é o objetivo final da luta de classes do proletariado contra a burguesia, mas sim a abolição de toda espécie de exploração e de opressão. Entretanto o socialismo é o único meio de se conquistar esse objetivo.

"Em verdade não é o socialismo nosso objetivo final, mas a abolição de “toda espécie de exploração e de opressão, quer seja dirigida contra uma classe, um partido, um sexo ou uma raça”. Por essa luta [de classes], nós nos propomos a estabelecer um modo de produção socialista, dado que parece ser, hoje, o único meio que corresponde às condições técnicas e econômicas dadas para conseguir nosso fim. Se se chegasse a demonstrar que estamos errados em não acreditar que a liberdade do proletariado e da humanidade em geral possa realizar-se, unicamente, ou mais comodamente, na base da propriedade privada dos meios de produção – como Proudhon continuou a crer – então deveríamos rejeitar o socialismo, sem renunciar, entretanto, a nosso fim, e deveríamos fazê-lo, precisamente, no interesse de nosso objetivo final." (Karl Kautsky; A ditadura do proletariado)

Até a primeira decada do século XX, Kautsky defendia a via revolucionária como caminho para o socialismo. Entretanto ao observar o avanço da democracia na Alemanha, percebeu que os social-democratas poderiam chegar ao poder pelo voto, confirmando o que Marx havia sugerido ao falar sobre países capitalistas democráticos, que na sua época se resumia aos EUA e Grã Bretanha.

Kautsky observou essa possibilidade ao constatar que o Partido Social Democrata crescia a cada eleição, tanto que em 1890, havia conquistado 1,4 milhão de votos, enquanto que em 1912, conquistou 4,2 milhões de votos, passando de 35 deputados eleitos em 1890, para 110 em 1912.

Kautsky então afirmou que “não se poderia opor democracia e socialismo e dizer que um é o meio e o outro é o fim”, uma vez que “todos os dois são meios para um mesmo fim.”

A revolução socialista para Kautsky e para os demais teóricos da social-democracia clássica, deveria ser uma revolução processual, fundamentada na radicalidade democrática, através das eleições e da luta parlamentar. Por isso tornaram-se reformistas.

Muitos podem achar que a social-democracia clássica é igual ao eurocomunismo. Mas estão enganados quem acha isso, pois em primeiro lugar, os eurocomunistas não negam a Revolução Russa de Outubro de 1917, apesar de reconhecerem os erros promovidos pelos bolcheviques. Já os social-democratas sempre se opuseram a essa revolução, negando qualquer vinculo entre eles e essa que foi a primeira revolução socialista da história. Isso porque sempre se opuseram ao socialismo degenerado dos bolcheviques, pois sabiam que sem democracia não pode existir socialismo.

Os teóricos da social-democracia clássica foram os primeiros a fazer previsões que a história revelou serem válidas, sobre o fracasso do modelo bolchevique.

"Como o socialismo não consiste simplesmente na destruição do capitalismo e em sua substituição por uma organização estatal-burocrática da produção, a ditadura bolchevique estava destinada a fracassar e a terminar 'necessariamente no domínio de um Cromwell ou de um Napoleão'". (A previsão feita por Kautsky realiza-se plenamente na figura de Stálin).

(Israel Getzler: "Outubro de 1917: o debate marxista sobre a revolução na Rússia". In: História do Marxismo. Eric J. Hobsbawm (org.) Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, pp. 58-59)


Em segundo lugar, ao contrário dos eurocomunistas, que não separam o socialismo da democracia, afirmando que assim como não pode haver socialismo sem democracia, também não pode existir democracia sem socialismo, os social-democratas afirmam que o socialismo seria impensável sem democracia, contudo "uma democracia pura" seria possível sem o socialismo.

A democracia parlamentar como único caminho para o socialismo

A visão da democracia parlamentar como único instrumento para se chegar ao socialismo e propiciar o processo de amadurecimento do proletariado, é defendida por Kautsky, que sustenta a idéia de que para o socialismo se desenvolver seria preciso que "a maturidade do proletariado se acrescente à maturidade das condições e ao nível necessário de desenvolvimento industrial". Para tanto a democracia seria indispensável, posto que não somente permitiria, mais do que qualquer outro meio, acelerar o processo de amadurecimento do proletariado, como ainda ajudaria a reconhecer o momento em que essa maturidade seria alcançada. Assim, se o proletariado fosse "bastante forte e inteligente para tomar em mãos a organização social", ele poderia então transferir a democracia do plano político para o econômico.

Entretanto, o que Kautsky entende por democracia? Qual o seu conceito de democracia? Em um comentário sobre a experiência da Comuna de Paris, Kautsky enfatizou que:

"A primeira tarefa do novo regime revolucionário foi a consulta pelo sufrágio universal. A eleição, realizada com a maior liberdade, deu em todos os distritos de Paris e com raras exceções, grande maioria a favor da Comuna."

Em outra passagem, se referindo a Revolução proletária, Kautsky evidenciou que:

"Um regime que conta com o apoio das massas só empregará a força para defender a democracia, e não para aniquilá-la. Ele cometeria verdadeiro suicídio se quisesse destruir seu fundamento mais seguro: o sufrágio universal, fonte profunda de poderosa autoridade moral."

E Kautsky afirmava o seguinte sobre a ditadura do proletariado:

"Literalmente, a palavra ditadura significa supressão da democracia. Mas acontece que, tomada à letra, esta palavra significa igualmente poder pessoal de um só indivíduo que não está preso por nenhuma lei. Poder pessoal que difere do despotismo no fato de não ser entendido como uma instituição de Estado permanente, mas como uma medida extrema de transição.

A expressão "ditadura do proletariado", por conseqüência não de um só indivíduo, mas de uma única classe, prova que Marx não pensava aqui em ditadura no sentido literal da palavra.

Fala aqui não da forma de governo, mas do estado de coisas, que deve necessariamente produzir-se por toda a parte onde o proletariado conquistou o poder político."


Kautsky defendia claramente o conceito marxista, ou seja, que a ditadura do proletariado consistia na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. E que seria algo temporário, uma medida extrema de transição. Para Kautsky, a vitória da revolução socialista, ou seja, a vitória do proletariado, é a vitória da democracia. E após constatar o desenvolvimento da democracia alemã, concluiu que a revolução socialista ocorreria por meios pacíficos, através da democracia parlamentar.

Kautsky conhecia bem a conjuntura da Europa Ocidental e da Alemanha, não deixando-se levar pelo extremismo esquerdista. Sabia muito bem que não haveria uma revolução baseada na ruptura, em insurreição popular, seja na Alemanha ou na Europa Ocidental. Ao contrário da Rússia, onde ainda existia uma realidade semi-feudal, na Alemanha e na Europa Ocidental ocorreria uma revolução processual, baseada no reformismo e no respeito ao processo democrático.

Além desse reconhecimento da democracia como valor universal, Kautsky foi o pensador marxista que fez a correta análise do imperialismo, formulando a teoria do ultra-imperialismo. Foi também um dos mais ferozes criticos do bolchevismo, condenando a ditadura totalitaria estabelecida por eles na Rússia. Em 1934, escreveu "Bolchevismo: Democracia e Ditadura", onde condenou a URSS e sua ditadura totalitaria.

Kautsky faleceu em 17 de outubro de 1938, em Amsterdã, Holanda, onde encontrava-se exilado após os nazistas terem tomado o poder na Alemanha. Ele foi no marxismo, o pai do socialismo democrático, defendendo uma via pacífica para o socialismo, uma revolução processual fundamentada na radicalidade democrática.

E foi graças a social-democracia que a Alemanha tornou-se um exemplo de democracia, com a aprovação da Constituição de Weimar em 1919. A jornada de trabalho foi fixada em 8 horas diárias, as mulheres conquistaram o direito de votar e se candidatar a cargos eletivos, os trabalhadores conquistaram o pleno direito de greve, e mesmo o Partido Comunista da Alemanha que havia tentado tomar o poder pela via insurrecional, na fracassada revolução de janeiro de 1919(que ocasionou o assassinato de Rosa Luxemburgo), conquistou a legalidade e disputava livremente as eleições.

Os social-democratas prosseguiam portanto no objetivo de construir o socialismo com liberdade, baseando-se em uma revolução processual fundamentada na radicalidade democrática, apesar da crise econômica provocada pelas pesadas indenizações cobradas pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial. Entretanto após a guinada esquerdista promovida por Stalin em 1928, os comunistas alemães passaram a considerar os social-democratas como os principais inimigos do proletariado, chamando-os de "social-fascistas", chegando inclusive a colaborar com os nazistas. Isso dividiu o movimento operário alemão, possibilitando o crescimento das forças conservadoras, em especial do Partido Nazista.

"Em 1931, seguindo a orientação de Stalin, os comunistas alemães se aliaram aos nazistas(antes da ascensão destes ao poder) contra os sociais-democratas, então caracterizados como inimigos principais dos trabalhadores alemães. Isso porque em 1928, Stalin caracterizou a social-democracia como "social-fascismo", igual (ou pior, conforme a ocasião) ao partido nazista; posição reafirmada após a ascensão de Hitler ao poder em janeiro de 1933, quando, em abril do mesmo ano, o dirigente stalinista alemão Fritz Heckert explica aos militantes do Partido Comunista da Alemanha, que "o desabamento do regime fascista na Alemanha depende, antes de tudo, da liquidação da influência da social-democracia reacionária", isso num momento em que Hitler mandava prender os sociais-democratas em massa. Nunca na história uma organização operária havia aceito a destruição de outra organização operária(no caso, do maior partido dos trabalhadores alemães) pela polícia de um estado capitalista repressor, sem se considerar atingida.

Essa política que priorizava a luta contra a social-democracia, acima de tudo, só muda em 1934, com a política de frente popular, que inclui os sociais-democratas numa vasta frente anti-fascista, dirigida também aos partidos burgueses tidos como democráticos."

(Vitor Letízia; em "A era do retrocesso: as esquerdas e as guerras no século XX")


Após a Segunda Guerra Mundial, com o triunfo do stalinismo no movimento comunista internacional, e com a "Guerra Fria" entre Ocidente capitalista X Oriente socialista(incluindo a criação da República Democrática Alemã pelos soviéticos em 1949), os social-democratas foram levados a abandonar o marxismo e a utopia socialista, realizando em novembro de 1959, o Congresso de Bad-Godesberg. Foi apenas a partir disso que morreu a perspectiva de uma uma revolução processual que levasse a construção do socialismo democrático na Europa Ocidental e na Alemanha por parte da social-democracia.

Portanto a social-democracia clássica, representada principalmente por Karl Kautsky, nada tem em comum com a atual social-democracia, herdeira do Congresso de Bad-Godesberg. A social-democracia clássica é claramente socialista, e portanto anti-capitalista.

Na atualidade, a social-democracia clássica teve nomes como Alexander Dubcek, lider da "Primavera de Praga", que depois da queda da ditadura stalinista na Checoslováquia, ocorrida em 1989, foi um dos fundadores do Partido Social Democrata da Eslováquia, que liderou até sua morte em 1992. E Mikhail Gorbachev, que tentou sem sucesso reformar o socialismo soviético, e hoje é lider da União Social Democrata.

Como defensor do socialismo democrático, busco inspiração principalmente na social-democracia clássica. Essa social-democracia clássica, representada principalmente por Karl Kautsky, é claramente socialista, e na minha opinião é parte importante no processo de refundação do socialismo e da verdadeira alternativa capaz de superar o capitalismo.

O socialismo renovado precisa resgatar o melhor do pensamento marxista, não limitando-se portanto a Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci, aos eurocomunistas ou a Escola de Frankfurt. Precisa chegar a Kautsky, Max Adler, Otto Bauer, e outros autores da "social-democracia clássica", que sempre se opuseram ao socialismo degenerado dos bolcheviques, pois sabiam que sem democracia não pode existir socialismo. Precisa inclusive resgatar pensadores socialistas oriundos de outras tradições não marxistas, como por exemplo, Jean Jaurès e seu socialismo humanista.

Critica aos esquerdistas ainda existentes no PT

Apesar da saida de grande parte dos esquerdistas, infelizmente ainda existem muitos desses no PT - Partido dos Trabalhadores. É o caso de Gabriel Lourenço e de Danilo Vilela, estudantes universitários que se consideram os "gênios do marxismo revolucionário", motivo pelo qual ainda acreditam em uma ruptura como caminho para o socialismo. E pior, por acharem isso lançam calunias infames contra Tarso Genro e Vinicius Wu, por terem escrito o texto “Esquerda renovada”.

Pois bem, Karl Marx e Friedrich Engels nunca afirmaram que a ruptura deveria ser necessariamente violenta, inclusive Marx afirmou que em países capitalistas democráticos como EUA e Grã Bretanha, os comunistas poderiam chegar ao poder pelo voto. E essa posição é reafirmada pelo historiador marxista Jacob Gorender, em "Marxismo sem utopia", inclusive em estrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 43, afirmou: "Podemos conjecturar sobre uma transição democrática e pacífica para o socialismo. Mas se trata de uma perspectiva condicional. Depende de que o adversário respeite as regras do jogo."

Partindo dessa constatação, percebemos que hoje o capitalismo é muito mais democrático do que o capitalismo americano, britânico e holandês dos tempos de Marx. Isso elimina portanto o fetiche esquerdista pela "violência revolucionária", e possibilita que avancemos ainda mais, aceitando a possibilidade de uma transição processual ao socialismo. Essa é a posição formulada por Enrico Berlinguer e pelos chamados "eurocomunistas", que assumiram a defesa da democracia como valor universal em sua plenitude. Isso não significa que os "eurocomunistas" não sejam revolucionários, muito pelo contrário, mas entendem a revolução não como ruptura e sim como processo, desenvolvendo assim um "reformismo revolucionário". Essa é a posição do cientista político Carlos Nelson Coutinho, e do jornalista Milton Temer, por exemplo. Ambos são fundadores do PSOL, portanto nem de longe pode chama-los de direitistas. Isso já derruba a tese esquerdista defendida por esses dois estudantes universitários.

Recordando o que haviam escrito Tarso Genro e Vinicius Wu em “Esquerda renovada”:

“Uma estratégia política socialista, conduzida por um partido de esquerda nos dias de hoje, deve recuperar os valores tradicionais da social-democracia pré-bolchevique e do socialismo democrático europeu e latino-americano¹ – república, igualdade e afirmação de direitos – atualizá-los e vinculá-los aos interesses concretos e às demandas políticas dos grupos e classes sociais, para as quais o crescimento econômico e a distribuição [de] renda são uma necessidade ou uma exigência.”

Os dois estudantes universitários baseados nesse trecho, acusaram Tarso Genro e Vinicius Wu de trairem os principios socialistas do petismo, afirmando:

"Ganhamos um presente; mas precisamos retirar o laço e o papel de embrulho. O que é exatamente a “social-democracia pré-bolchevique”? Em que contexto mais amplo estão inseridos os valores citados? Tomando-se como referência o período entre a morte de Friedrich Engels (1820-1895) e a Revolução Russa (1917), encontramos Eduard Bernstein (1850-1932) como um dos grandes expoentes dessa corrente não-revolucionária. Estabelecido esse marco, podemos recorrer ao seu pensamento para entender o que Tarso Genro e Vinicius Wu estão propondo." (A esquerda reafirmada)

Oras, em momento algum Tarso Genro e Vinicius Wu estão defendendo as posições revisionistas bernsteinianas, até porque a social-democracia pré-bolchevique recusou aceita-las, inclusive o próprio Karl Kautsky as recusou, declarando:

"Quando Bernstein diz que devemos ter primeiramente a democracia para conduzir passo a passo o proletariado à vitória, eu digo que para nós a questão é inversa. A vitória da democracia está condicionada pela vitória do proletariado."

O revisionismo de Bernstein foi aceito pela social-democracia alemã somente em 1921, no Congresso de Stuttgart.

E mais, a social-democracia pré-bolchevique também representa Jean Jaurès, que foi assassinado por um jovem nacionalista em 1914, justamente por se opor a Primeira Guerra Mundial e estar tentando organizar uma greve geral na França e na Alemanha para dete-la. Também representa a ala internacionalista dos mencheviques, liderada por Yuri Martov, que se opos a Primeira Guerra Mundial, fez oposição ao governo provisório e mesmo não apoiando a Revolução de Outubro, não participou de nenhuma ação contra-revolucionária, inclusive apoiando o Exército Vermelho em sua luta contra o Exército Branco, mas fazendo oposição ao governo bolchevique por defender os princípios da democracia operária, que garantem a liberdade de expressão para todas as correntes socialistas, e não uma ditadura de partido único como os bolcheviques estabeleceram.

Portanto em “Esquerda renovada”, Tarso Genro e Vinicius Wu não estão defendendo o abandono da luta pelo socialismo, mas afirmando aquilo que somente os esquerdistas não querem enxergar: acabou-se os tempos das rupturas, o mundo não é mais o mesmo dos tempos do Manifesto Comunista. A classe trabalhadora conquistou cidadania, o capitalismo se democratizou, e o caminho para o socialismo é processual. Muito antes dos "eurocomunistas", a social-democracia pré-bolchevique já havia enxergado isso, até porque o próprio Engels, em 1895, na introdução à nova edição de "Luta de Classes na França", reconheceu que os tempos das grandes revoluções tinha chegado ao fim, que era preciso rever aquilo que ele e Marx haviam escrito no Manifesto Comunista, em dezembro de 1847.

Mas as calunias desses esquerdistas não param nessa absurda tentativa de identificar Genro e Wu com o revisionismo de Bernstein. Eles escrevem: "reparem no trecho primeiramente citado; fala-se de “interesses concretos (...) dos grupos e classes sociais, para as quais o crescimento econômico e a distribuição [de] renda são uma necessidade ou uma exigência”.

A ausência de qualquer referência específica à classe trabalhadora, ou ainda às classes trabalhadoras, não pode, de maneira alguma, ser considerada por acaso. Essa omissão significa declarar uma opção política, ainda que processada inconscientemente. Afinal, é óbvio que crescimento econômico não é necessidade ou exigência apenas da classe trabalhadora; os capitalistas auferem muito mais lucros em momentos de crescimento, e um melhor nível de distribuição de renda aumenta a quantidade de pessoas com poder de consumo, sendo este necessário à própria realização cíclica de capital.(A esquerda reafirmada)"


Oras, se Tarso Genro e Vinicius Wu estão escrevendo um texto para discussão interna no PT, é obvio que ao falar em grupos e classes sociais estão falando nas classes trabalhadoras e seus aliados, o que inclui a pequena-burguesia e o campesinato. E como não estamos ainda em uma fase adiantada do processo de construção do socialismo, eles estão se referindo também a burguesia progressista que se opõe ao neo-liberalismo. Mas esses esquerdistas não querem isso, querem um texto ao estilo daquele escrito pelos psolistas, que fala em classes trabalhadoras e na construção do socialismo, como se estivessemos em uma conjuntura propicia a isso, e pior, como se ainda estivessemos no século XIX ou na Rússia semi-feudal de 1917, onde ainda era legitimo falar em rupturas. Esses dois estudantes esquerdistas deveriam perceber que a visão que defendem, não é mais a visão do socialismo no século XXI, portanto como não existe maquina do tempo, deveriam migrar para o PSTU, PCB, ou até mesmo para o PSOL, pois lá sim o tempo parou e esse discurso esquerdista ainda faz algum sentido.

Indignação com as laranjeiras

Indignação com as laranjeiras
Luiz Carlos Bresser-Pereira *

Por que não nos indignamos com a captura do patrimônio público que ocorre todos os dias em nosso país?

Há uma semana, duas queridas amigas disseram-me da sua indignação contra os invasores de uma fazenda e a destruição de pés de laranja. Uma delas perguntou-me antes de qualquer outra palavra: "E as laranjeiras?" -como se na pergunta tudo estivesse dito.

Essa reação foi provavelmente repetida por muitos brasileiros que viram na TV aquelas cenas. Não vou defender o MST pela ação, embora esteja claro para mim que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é uma das únicas organizações a, de fato, defender os pobres no Brasil. Mas não vou também condená-lo ao fogo do inferno. Não aceito a transformação das laranjeiras em novos cordeiros imolados pela "fúria de militantes irracionais".

Quando ouvi o relato indignado, perguntei à amiga por que o MST havia feito aquilo. Sua resposta foi o que ouvira na TV de uma das mulheres que participara da invasão: "Para plantar feijão". Não tinha outra resposta porque o noticiário televisivo omitiu as razões: primeiro, que a fazenda é fruto de grilagem contestada pelo Incra; segundo, que, conforme a frase igualmente indignada de um dos dirigentes do MST publicada nesta Folha, em 11 deste mês, "transformaram suco de laranja em seres humanos, como se nós tivéssemos destruído uma geração; o que o MST quis demonstrar foi que somos contra a monocultura".

Talvez os dois argumentos não sejam suficientes para justificar a ação, mas não devemos esquecer que a lógica dos movimentos populares implica sempre algum desrespeito à lei. Não deixa de ser surpreendente indignação tão grande contra ofensa tão pequena se a comparamos, por exemplo, com o pagamento, pelo Estado brasileiro, de bilhões de reais em juros calculados segundo taxas injustificáveis ou com a formação de cartéis para ganhar concorrências públicas ou com remunerações a funcionários públicos que nada têm a ver com o valor de seu trabalho.

Por que não nos indignarmos com o fenômeno mais amplo da captura ou privatização do patrimônio público que ocorre todos os dias no país? Uma resposta a essa pergunta seria a de que os espíritos conservadores estão preocupados em resguardar seu valor maior -o princípio da ordem-, que estaria sendo ameaçado pelo desrespeito à propriedade.

Enquanto o leitor pensa nessa questão, que talvez favoreça o MST, tenho outra pergunta igualmente incômoda, mas, desta vez, incômoda para o outro lado: por que os economistas que criticam a suposta superioridade da grande exploração agrícola e defendem a agricultura familiar com os argumentos de que ela diminui a desigualdade social, aumenta o emprego e é compatível com a eficiência na produção de um número importante de alimentos não realizam estudos que demonstrem esse fato?

A resposta a essa pergunta pode estar no Censo Agropecuário de 2006: embora ocupe apenas um quarto da área cultivada, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção e emprega quase três quartos da mão de obra no campo.

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, nesta Folha listou esses fatos e afirmou que uma "longa jornada de lutas sociais" levou o Estado brasileiro a reconhecer a importância econômica e social da agricultura familiar. Pode ser, mas ainda não entendo por que bons economistas agrícolas não demonstram esse fato com mais clareza. Essa demonstração não seria tão difícil -e talvez ajudasse minhas queridas amigas a não se indignarem tanto com as laranjeiras.


*Luiz Carlos Bresser-Pereira: Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC). Autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994"

O marxismo no século XXI



"...a progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade) - uma passagem amplamente teorizada por Marx no Livro 1 de O Capital, publicado em 1867 - alterou as condições em que se trava a luta de classes: ela não mais ocorre num quadro em que a acumulação do capital leva necessariamente ao empobrecimento absoluto do trabalhador, mas torna possível um aumento simultâneo de salários e lucros; com isso, a luta de classes pode assumir formas mais institucionalizadas, que não podem ser equiparadas a uma "guerra civil". E, por outro lado, em estreita correlação com essa alteração infra-estrutural, ocorreu uma crescente "socialização da política" (conquista do sufrágio universal, criação de sindicatos e partidos operários de massa), a qual forçou o Estado capitalista a se abrir para outros interesses que não os da classe dominante, com o que - sem deixar de ser um Estado de classe - ele não mais pode ser definido como um mero "comitê executivo" da burguesia. Ao lado da coerção, gestaram-se também mecanismos de tipo consensual. Tudo isso, finalmente, motivou uma nova concepção da revolução socialista: essa pode agora ser imaginada não mais sob a forma de uma "explosão violenta" concentrada num curto lapso de tempo, como ainda o faz o Manifesto, mas sim de um movimento processual, de longa duração, que opera nos espaços progressivamente abertos pelas instituições liberal-democráticas (as quais, de resto, resultam em grande parte das lutas dos trabalhadores)."

(Carlos Nelson Coutinho; em "GRANDEZAS E LIMITES DO MANIFESTO COMUNISTA")


O mundo mudou, não vivemos mais no século XIX. Quando o Manifesto do Partido Comunista foi publicado, em fevereiro de 1848, a classe trabalhadora vivia em estado de semi-escravidão, com jornada diária de trabalho acima das 14 horas, sem direito a férias e com baixos salários, que garantiam apenas o mínimo necessário para sobreviver. As condições de trabalho eram desumanas, não havia direito de greve e muito menos de organização sindical, a questão social era considerada caso de policia. O voto era censitário, ou seja, apenas quem tinha propriedade e pagava impostos é que podia votar. Existia então uma ditadura da burguesia.

Entretanto, a partir da publicação do Manifesto Comunista, os trabalhadores se organizaram para lutar contra a opressão capitalista, e a luta vitoriosa do movimento operário e popular conquistou ao longo desses mais de 160 anos, aquilo que os comunistas italianos chamam de "socialização da política", ou seja, o estabelecimento do voto universal e a legalização dos partidos operários e dos sindicatos, assim como a conquista do direito de greve e de inúmeros direitos trabalhistas, como jornada diária de trabalho de 8 horas, férias remuneradas, seguro desemprego, condições humanas de trabalho, melhores salários, etc, que garantiram a cidadania para os trabalhadores, promovendo a democratização do capitalismo.

Isso mudou radicalmente os paradigmas da luta de classes, tornando obsoleta a defesa da ditadura do proletariado. Como afirmou o dirigente comunista italiano Enrico Berlinguer, fundador do eurocomunismo, a democracia é um valor universal.

Em entrevista concedida pelo cientista político Carlos Nelson Coutinho, a revista Teoria e Debate nº 51, o entrevistador perguntou: "Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?"

Coutinho, professor da UFRJ e um dos principais intelectuais marxistas de nosso país, respondeu: "Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de ' Luta de Classes na França' de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus 'Cadernos do Cárcere' , quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de "sociedade civil" as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso."


A esquerda precisa romper com a herança autoritária do leninismo, ou seja, do bolchevismo. O totalitarismo stalinista foi resultado dos graves erros do modelo socialista desenvolvido por Vladimir Lenin e demais revolucionários russos do histórico Outubro de 1917, ou seja, foi resultado do bolchevismo, que deturpou o conceito marxista da ditadura do proletariado, transformando-a em ditadura do partido comunista. Como disse o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista")

O historiador marxista Jacob Gorender, critica duramente o modelo bolchevique, reconhecendo nele a origem do stalinismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43, onde fala sobre os temas abordados em "Marxismo sem utopia")


A esquerda precisa romper com toda herança oriunda da cultura bolchevique, resgatando o melhor do pensamento marxista, principalmente através do eurocomunismo, que ao lançar a tese da democracia como valor universal, resgatou a luta pelo socialismo com liberdade e democracia. A esquerda também precisa resgatar o melhor do pensamento de outras tradições socialistas, como por exemplo, o socialismo humanista de Jean Jaurès. Precisa inclusive recolher os aspectos positivos da tradição liberal-democrática.

"Devemos herdar do liberalismo a divisão entre público e privado. No socia­lismo, mesmo com um poder já inteiramente democratizado, deve haver uma limitação do poder da comunidade, que deve respeitar os limites da autonomia individual naquilo que não disser respeito ao interesse comum. Deve existir um espaço privado que o coletivo não poderá violar. Devemos herdar também o princípio da rotatividade no poder: o socialismo, tal como eu o imagino, deverá ter eleições periódicas e, portanto, poderá mudar o grupo político que exerce o poder. Deverá também recolher o princípio da tolerância, mas com a convicção de que não podemos tolerar o intolerante, de que há idéias que violam a própria idéia da tolerância. Se o sujeito é racista e quer matar todos os negros, não pode ser tolerado."
(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)


A esquerda também precisa abandonar o dogmatismo e rever o próprio marxismo, afinal o fracasso da experiência socialista na antiga URSS e no Leste Europeu acabou revelando falhas no próprio pensamento desenvolvido por Marx e por Engels, falhas que precisam ser corrigidas. Em seu "Marxismo sem utopia", o historiador Jacob Gorender deu inicio a essa discussão, e essa obra precisa ser leitura obrigatoria para todos aqueles que ainda acreditam no projeto socialista.

"A importância da contribuição de Marx ao pensamento moderno dificilmente pode ser contestada. Ele está na galeria de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, dos grandes pensadores que a humanidade já teve. Ele deu uma enorme contribuição ao conhecimento social, em especial à economia política (o que hoje se chama de ciência econômica), mas também à sociologia, ao que se denomina hoje ciência política, à teoria do Estado. E ainda, em primeiro lugar, a filosofia.

Mas se a contribuição de Marx me parece indiscutível e altíssima, o mesmo não se pode dizer do marxismo. É o marxismo como doutrina que hoje está em causa. O marxismo visava e visa fundamentar o objetivo socialista e abrange não só a obra de Marx como a de Engels e de seus sucessores - Lenin, Trotski, Bukharin, Gramsci, Kautsky, Lukács até pensadores mais recentes, como Marcuse e Althusser. Todos deram uma contribuição ao que se chama de marxismo.

Que o marxismo esteja em causa me parece bastante evidente. O mundo mudou muito neste século. A sociedade capitalista que hoje domina o planeta é muito diferente tanto com relação à época de Marx como com relação à primeira metade do século XX. Mudou também, notavelmente, a configuração da classe operária. Estes fatores questionam o marxismo como teoria que não avançou com as mutações da realidade histórica.

Há ainda outra questão: é impossível dissociar o marxismo do que aconteceu com a União Soviética e outros países que realizaram revoluções pretensamente socialistas. As transformações políticas, sociais e econômicas na União Soviética e nestes países foram fundamentadas com teses marxistas, por pessoas que se consideravam marxistas. Por mais que nos repugne, não é possível deixar de reconhecer que Stalin também era marxista, o que ele escreveu e fez se baseia no que considerava como marxismo. Não se pode, então, dissociar o marxismo desses fatos, que o desacreditaram diante da opinião mundial."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43; onde fala sobre os temas abordados em "Marxismo sem utopia")


Segundo Jacob Gorender, uma falha da filosofia marxista foi a defesa do desaparecimento do Estado. Ele aborda essa questão em "Marxismo sem utopia".

"Fui educado na idéia de que o Estado vai desaparecendo, não imediatamente como propunham os anarquistas, mas paulatinamente, após a tomada do poder pelo proletariado. Essa tese sempre foi para mim o que hoje chamam de "cláusulas pétreas", no caso da nossa Constituição. Mas a minha constatação é que em todas as sociedades em que houve uma revolução dita socialista, o Estado se fortaleceu tremendamente.

Nem Marx nem Engels escreveram que o desaparecimento do Estado significa o desaparecimento de qualquer administração central. Eles repetem a célebre tese de Saint-Simon, de que o governo dos homens será substituído pela administração das coisas. Sem dúvida, muita coisa que é hoje política - porque temos o governo dos homens - deixará de ser, porque se tornará meramente tecno-administrativa. Não serão eliminadas as funções técnicas e administrativas do Estado atual, mas só aquelas que dizem respeito à opressão política e social, à luta de classes.

Mas há outras questões novas e muito importantes no quadro atual, ignoradas por Marx e seus seguidores. Uma é a diferença de gerações. Hoje se vive em média 30 ou 40 anos mais do que na época de Marx e Engels, o que aumenta a diferença entre gerações. Há o problema dos idosos: o aparelho social, previdenciário e médico-sanitário não acompanhou o aumento na expectativa de vida. Temos, então, interesses diferenciados de gerações. Não se trata somente de uma questão administrativa. Ela envolve opções políticas. Temos também a ecologia: o que produzir, para quem produzir, em que medida. Novamente temos questões que exigem definição de prioridades. Isto significa política e conflitos. Não de classe, mas opções políticas. A própria idéia de que as forças produtivas não podem conhecer um desenvolvimento indefinido limita os recursos para resolver certas demandas. Marx só concebia um limite para as forças produtivas: o das relações de produção obsoletas. Uma vez eliminado este empecilho, as forças produtivas se desenvolveriam sem limites. Mas hoje sabemos que há limites ecológicos, recursos escassos, necessidade de preservar o meio ambiente etc. Esses fatos me levam à conclusão de que não há como se propor extinguir o Estado e as funções políticas.

Engels tem duas explicações sobre a origem do Estado: uma, segundo a qual o Estado surgiu para satisfazer certas funções e outra que surgiu da luta de classes. Se considerarmos válida a primeira explicação, pode-se conceber que certas funções serão permanentes e precisarão de um Estado político, o que soa como redundância. Daí eu afirmar que a extinção do Estado é uma tese anarquista, que Marx e Engels receberam e incorporaram a sua doutrina, ressalvando apenas que a extinção não poderia ser imediata, que teria de ser paulatina. Mas tal herança anarquista deve ser eliminada.

A mesma coisa com a famosa divisão do socialismo em duas etapas. Proponho que só deva existir aquilo que Marx chama a primeira etapa. A segunda etapa antevê um paraíso judaico-cristão. Não podemos pensar seriamente em uma sociedade em que todas as necessidades são sempre satisfeitas. Esta é uma concepção estática das necessidades. E sabemos que, dadas as limitações dos recursos acessíveis, certas necessidades não poderão ser satisfeitas para todos. Alguns poderão ter atendidas suas novas necessidades e outros precisarão esperar, porque haverá escassez."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43; onde fala sobre os temas abordados em "Marxismo sem utopia")


Ao fazer essa revisão, a esquerda precisa abandonar o fetichismo estatista e coletivista, reconhecendo a importância da propriedade privada e do mercado em uma futura sociedade socialista, principalmente em sua fase inicial. A bem sucedida experiência da NEP(sigla em inglês de Nova Política Economica) e principalmente do "socialismo de mercado" chinês e vietnamita, confirmam isso.

"Quando se começou a falar em socialismo de mercado, com a perestroika, uma grande quantidade de obras passou a tratar do tema. Os chineses são explícitos na tese de que o que existe na China é um socialismo de mercado. (...) Na minha opinião, uma vez constituído um poder socialista, com a dominação do bloco de assalariados sob a liderança dos assalariados intelectuais, em um Estado com objetivos socialistas, não se pode ir muito além do ponto a que chegou a própria economia da sociedade burguesa. Deve-se superar este ponto, avançar além do capital, como diz Mészáros, mas não pretender impor um projeto de planejamento total, como o que os dirigentes soviéticos pensaram efetivar. Na União Soviética, estatizaram toda a produção de bens de produção. E os bens de consumo adquiridos pela população ficaram submetidos a preços administrados. O mercado ali era ficção. Na agricultura, impôs-se a coletivização compulsória. Havia um espaço para a agricultura familiar, mas era marginal. O planejamento não só foi total, mas totalitário.

Penso que isso deve ser evitado, mesmo no caso de economias tão desenvolvidas como os Estados Unidos, o Japão ou a Alemanha. Lester Thurow escreve que as empresas multinacionais, ao contrário do que se pensa, não planejam sua perspectiva para vinte anos, mas sim para três a cinco anos. Isso é algo que o quitandeiro da esquina não pode fazer. Ora, três a cinco anos é praticamente o tempo dos planos qüinqüenais soviéticos. A socialização da produção já está avançada na própria sociedade capitalista, podemos dar alguns passos à frente, aumentar os prazos, mas não em excesso. Deve-se pensar em praticar um processo de tentativa e erro, porque senão vamos adotar de novo aquele tipo de planejamento soviético e caminhar, mais uma vez, para o desastre.

É neste ponto que entra a questão do mercado: o que ele é, quais são suas possibilidades. O mercado é a forma de divisão social do trabalho e da produção na economia mercantil simples e na economia capitalista. É um alocador de recursos, pelo jogo de oferta e procura, indica onde é que se deve investir, funcionando como mostrador de preços. Seus apologistas não levam em conta as crises cíclicas, as depressões, os desperdícios enormes que esta alocação implica e a tendência à centralização da produção, conduzindo à extorsão da população, que sofre com os preços dos cartéis e monopólios. Mas ainda não temos um mostrador alternativo melhor do que o mercado. Pode ser que, com os computadores, já se consiga inventar uma visibilidade dos preços, que não passe pelo mercado. Mas isso ainda não existe. Enquanto não houver um dispositivo alternativo, deveremos apelar em última instância para o mercado. Um mercado regulado pelo planejamento."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43; onde fala sobre os temas abordados em "Marxismo sem utopia")


O historiador Eric Hobsbawn, um dos maiores nomes do pensamento marxista em todo mundo, autor de "A Era dos Extremos", também defende o socialismo de mercado.

"Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. (...) A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado." (Eric Hobsbawn)

Recomendo a todos que defendem o socialismo, a leitura dessa obra genial do historiador Jacob Gorender, "Marxismo sem utopia", assim como também recomendo a leitura de "O Manifesto comunista 150 anos depois", organizado por Daniel Aarão Reis e publicado pela editora Fundação Perseu Abramo juntamente com a Contraponto, contendo textos de intelectuais marxistas da atualidade(Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, etc) e o próprio manifesto comunista escrito por Marx e por Engels em dezembro de 1847. Também recomendo a leitura de "Uma Revolução Perdida - A História do Socialismo Soviético" , do historiador marxista Daniel Aarão Reis, onde é relatada a experiência socialista pioneira que marcou a história do século XX.

É necessário construir um novo projeto socialista de conteúdo ético-humanista e cuja base teórico-filosófica atenda às enormes possibilidades criadoras do homem. Um socialismo radicalmente democrático, ecológico e humanista.

Na Itália, esse processo de refundação da esquerda e do socialismo está em curso. Os socialistas de Unire La Sinistra(http://www.unirelasinistra.net/), do Movimento per la Sinistra(http://www.movimentoperlasinistra.it/), e da Sinistra Democratica(http://www.sinistra-democratica.it/), se aliaram aos social-democratas do Partito Socialista(http://www.partitosocialista.it/), formando a coalizão Sinistra e Libertà(http://www.sinistraeliberta.it/)

Essa coalizão é o embrião de uma nova esquerda, radicalmente democrática, ecológica e humanista, que visa refundar o socialismo, consolidando assim o processo iniciado por Enrico Berlinguer ao lançar a tese da democracia como valor universal.

Sinistra e Libertà deve servir de exemplo para a esquerda brasileira.


MARXISMO SEM UTOPIA

O historiador marxista Jacob Gorender, autor, entre outras obras, de O escravismo colonial e Combate nas Trevas, nos fala de seu mais recente livro Marxismo sem utopia (São Paulo, Ática, 1999). Trata-se de um ambicioso esforço de, à luz da teoria e da prática marxistas ao longo de 150 anos, libertar o pensamento revolucionário daquelas concepções que representam uma ruptura incompleta de Marx com o socialismo utópico.

Por José Corrêa Leite*

Pergunta: Você acaba de lançar o livro Marxismo sem utopia, que é uma análise dos desafios enfrentados pelo pensamento marxista na presente situação histórica. Qual é, na sua opinião, o lugar que a obra de Marx ocupa hoje?

Resposta: A importância da contribuição de Marx ao pensamento moderno dificilmente pode ser contestada. Ele está na galeria de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Hegel, dos grandes pensadores que a humanidade já teve. Ele deu uma enorme contribuição ao conhecimento social, em especial à economia política (o que hoje se chama de ciência econômica), mas também à sociologia, ao que se denomina hoje ciência política, à teoria do Estado. E ainda, em primeiro lugar, a filosofia.

Mas se a contribuição de Marx me parece indiscutível e altíssima, o mesmo não se pode dizer do marxismo. É o marxismo como doutrina que hoje está em causa. O marxismo visava e visa fundamentar o objetivo socialista e abrange não só a obra de Marx como a de Engels e de seus sucessores - Lenin, Trotski, Bukharin, Gramsci, Kautsky, Lukács até pensadores mais recentes, como Marcuse e Althusser. Todos deram uma contribuição ao que se chama de marxismo.

Que o marxismo esteja em causa me parece bastante evidente. O mundo mudou muito neste século. A sociedade capitalista que hoje domina o planeta é muito diferente tanto com relação à época de Marx como com relação à primeira metade do século XX. Mudou também, notavelmente, a configuração da classe operária. Estes fatores questionam o marxismo como teoria que não avançou com as mutações da realidade histórica.

Há ainda outra questão: é impossível dissociar o marxismo do que aconteceu com a União Soviética e outros países que realizaram revoluções pretensamente socialistas. As transformações políticas, sociais e econômicas na União Soviética e nestes países foram fundamentadas com teses marxistas, por pessoas que se consideravam marxistas. Por mais que nos repugne, não é possível deixar de reconhecer que Stalin também era marxista, o que ele escreveu e fez se baseia no que considerava como marxismo. Não se pode, então, dissociar o marxismo desses fatos, que o desacreditaram diante da opinião mundial.

O que me propus a enfrentar foram alguns dos problemas que vieram com esse descrédito sofrido pelo marxismo.

Pergunta: Marx estabelece um campo teórico que hoje se encontra em crise. Sua obra é um esforço de repensar quais seriam as bases para voltar a dotar o marxismo de vitalidade, de condições para interpretar o mundo contemporâneo e projetar sua transformação rumo ao socialismo. Quais seriam os eixos dessa atualização do marxismo?

Resposta: Esforçando-me por abordar tema tão complexo e procurando, no que foi possível, reportar-me ao que havia de mais recente, constatei que o eixo da abordagem devia ser o percurso incompleto de Marx e Engels da utopia para a ciência. Eles ficaram no meio do trajeto, não foram até o fim, embora se propusessem a isso. Substituir a utopia pela ciência é o objetivo declarado com todas as letras no Manifesto Comunista. Engels também abordou o projeto em uma parte do Anti-Dühring, que se transformou na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico. E o propósito de Marx, ao dedicar seus maiores esforços a elaborar O capital, foi dar uma base científica à idéia do socialismo, tirá-la daquelas construções quiméricas de Fourier, Saint-Simon, Proudhon, dos anarquistas etc., e assentá-la no que ele considerava um fundamento científico.

Trata-se, pois, de libertar a teoria de Marx do que existe de incompleto na sua ruptura com o utopismo. Algumas idéias muito importantes do ambiente utópico, que Marx encontrou já formado quando se desprendeu de Hegel e de Feuerbach, transferiram-se para a obra que pretendia fosse plenamente científica. Mas ele não conseguiu se libertar completamente de tais idéias. Seus melhores seguidores (Lenin, Gramsci, Lukács e outros) modificaram muita coisa, cada um deu sua contribuição, porém as teses utópicas perduraram.

Foi isso que procurei abordar de maneira sucinta no livro Marxismo sem utopia. Examinei os elos lógicos e históricos do pensamento de Marx e depois como isso foi tomando desvios à medida que era implementado com Kautsky, Lenin, Bukharin, Trotski etc. Cada um enfrentava obstáculos concretos e dava uma contribuição que, de certo modo, desviava da linha em que vinha a teoria, até este corpus teórico chegar aos nossos dias. Esta análise me permitiu tirar conclusões a respeito daquelas teses que deveriam ser filtradas, porque já não são compatíveis com os acontecimentos históricos e com as conclusões lógicas que se deve tirar da própria doutrina.

Pergunta: Duas dessas teses utópicas são a idéia de que o proletariado constitui-se num sujeito revolucionário imanente à história da humanidade e a de que existiria uma história dotada em si mesma de um sentido. Trata-se, pois, de uma crítica aos elementos deterministas e teleológicos presentes no pensamento marxista...

Resposta: Eu queria, antes, colocar uma outra questão, fruto da minha percepção de algumas evoluções das ciências exatas dessa segunda metade do século XX. O que me levou à questão da indeterminação, da incerteza e da chamada teoria do caos, hoje bastante conhecida. Marx era dialético e não tinha uma concepção fatalista da história. A história era, também para ele, cheia de acasos; ele não considerava que tivesse um rumo prefixado, a ser desvendado pela teoria. Mas constatei que suas referências à indeterminação foram feitas sempre em textos menores e em cartas. Já O capital é uma fábrica de certezas sobre o advento do socialismo. Eu o li assim; ele me imbuiu desta certeza, quando era muito jovem, e de outra maneira seria incompreensível a minha militância. Quando Gramsci chamou a Revolução Russa de "revolução contra O capital" também estava refletindo interpretação idêntica da magna obra de Marx. Obra genial, sem dúvida, mas dirigida à produção da certeza de que o comunismo é inevitável.

Penso, por isso, que o elemento de incerteza e indeterminação na obra de Marx não é suficiente. Pode-se dizer que ele existe, mas é fraco. Não tem a força que tem "a determinação", "o inevitável", "a férrea necessidade", expressões do próprio Marx. Por isso me preocupei em escrever um capítulo especial sobre o assunto e voltar a ele várias vezes no curso da argumentação.

Pergunta: O capítulo "Sistema, estrutura e incerteza: o acaso e suas maravilhas"?

Resposta: Exatamente. Eu me apoiei em cientistas como Ilya Prigogine, David Ruelle, Niels Bohr, Werner Heisenberg, Jacques Monod, e outros cientistas que trabalharam a questão. Claro que com os limites da minha fraca preparação nas ciências exatas. O pensamento desses cientistas é importantíssimo para o marxismo, que deve incorporar os paradigmas da indeterminação e do caos na sua concepção da história.

Pergunta: Manuel Sacristan e Daniel Bensaid apontaram a existência de uma tensão, na obra de Marx, entre uma visão positivista de ciência, dominante no século XIX, e uma visão dialética, o que ele chamava de ciência alemã contraposta à inglesa, na qual a análise da sociedade não está desligada da questão do sentido, não há a dualidade sujeito-objeto, as conseqüências da ação humana não são passíveis de pré-determinação. Esta tensão percorre o conjunto da obra de Marx. Se O capital tem todo este viés determinista, por outro lado, os textos escritos na década de 1840, em uma conjuntura revolucionária e que constituíram o marxismo como visão de mundo e sistema teórico, são muito mais marcados por esta visão dialética. Não seria, talvez, dar um peso desproporcional ao elemento determinista na visão de Marx enfatizar tanto o papel de O capital?

Resposta: Eu jamais pensaria em depreciar esta obra. Ninguém estudou uma formação social de maneira tão completa, tão holística, como fez Marx em O capital. Não se trata de uma obra só de economia, mas nela existe a análise mais profunda da estrutura e da dinâmica da sociedade moderna. Mas o sentido dela, o que Marx quis e o que está realmente expresso na obra, foi produzir a certeza, primeiro, de que o capitalismo é um sistema profundamente explorador, opressivo e injusto para a grande maioria da sociedade e, depois, difundir a certeza de que isso pode ser superado e o será por uma sociedade socialista. Esta é a idéia que tenho a respeito d'O capital. Obra que foi, sem dúvida, o fundamento do marxismo, dando ao movimento socialista certezas apoiadas no peso dos seus argumentos científicos: a sociedade burguesa não é harmônica, é dividida em classes antagônicas, há uma minoria que explora a grande maioria produtora da riqueza, o trabalho é a origem do capital, que se nutre da produção de mais-valia, da apropriação do sobreproduto do trabalho. Estas teses constituíram o fundamento do que se chama marxismo e continuam atuais.

Mas a questão que se segue das perguntas que você fez é que Marx tirou daí uma conclusão que não tem força lógica. O proletariado é a classe explorada específica do sistema capitalista, porém isso não significa que seja uma classe revolucionária, que também queira e possa se propor o objetivo de transformação socialista da sociedade, para tornar-se classe dominante. Tal conclusão não é uma conseqüência necessária. O proletariado pode ser uma classe explorada e ser, como afirmo, ontologicamente reformista.

Pergunta: Henry Maler diz que a utopia necessária compromete a utopia desejada; a promessa de que o socialismo virá de uma maneira inevitável acaba por comprometer a idéia de que trata de lutar pelo socialismo...

Resposta: Isso sempre me atormentou. Se o socialismo é inevitável, se ele vem necessariamente das contradições objetivas, então que papel tem o meu sacrifício e o de tantos outros? Eu nunca consegui uma resposta teórica. Este livro é resultado de tormentos íntimos que vêm de muitos anos e que, de certo modo, fui postergando. Mas a história avançou de tal maneira que não pude mais postergar o enfrentamento destas questões.

Aí entra o elemento da incerteza, que é fundamental na prática, e a célebre frase de Gramsci, que coloquei até sem citá-lo: "de certo, só temos a luta, não seus resultados". Vamos ter que lutar, sim! O proletariado reformista luta, procurei frisar. Ele não é uma classe apática, passiva, que deixa cooptar. Ele é combativo, mas de modo reformista.

A idéia de reformismo ontológico causa certa surpresa, parece forte demais, é possível, mas não é nova. Creio, por exemplo, que Lenin, apoiando-se em Kautsky, atinou para isso quando disse que o proletariado espontaneamente só atinge a consciência sindical, que é a consciência reformista... A consciência revolucionária teria que ser introduzida de fora, por ser uma realização teórica da intelectualidade. Mas Lenin não concluiu daí que o proletariado seja uma classe, como afirmo, ontologicamente reformista, embora se trate de uma conclusão lógica necessária.

Com o Estado do bem-estar social, nos anos 50 e 60, proliferaram teses que afirmavam ser o proletariado uma classe cooptada pela burguesia. O Estado do bem-estar social tinha propiciado tamanhas prerrogativas e vantagens que a classe operária não tinha mais por que lutar pela transformação social radical. Naquela época me opus a tais teses, não conseguia aceitar que tivessem curso no Brasil. Hoje, devo modificar minha apreciação. Não é um problema só do Estado do bem-estar social, é um problema mais geral. Não é que o proletariado não seja combativo, torno a frisar, mas o impulso dele se dá no sentido de obter benefícios dentro do sistema capitalista e não fora dele. Sendo assim, o Estado do bem-estar social - o Welfare state - foi não só cooptação, mas conquista do proletariado, a mais alta por ele alcançada na história do capitalismo.

Como, então, explicar a Coluna de Paris e a Revolução Russa? A explicação está exatamente em que são dois fatos casuais, irrepetíveis. Duas conjunturas excepcionais de gravíssimas derrotas na guerra, daí decorrendo que o Estado burguês ficou impotente, esfacelado. No caso francês, os trabalhadores parisienses fizeram o que a burguesia ficou incapaz de fazer: tomaram o poder e passaram a administrar a cidade. No entanto, um episódio efêmero. O caso russo também veio com a conjunção de uma burguesia impotente e desprestigiada, uma derrota terrível na guerra (mesma situação da Comuna) e um partido talentoso, com gente de grande disposição e capaz de propor aquilo que a massa do povo russo, particularmente a enorme massa camponesa, queria vitalmente: a paz e a terra. Os bolcheviques decidiram lutar pelo que as massas queriam, o que lhes deu enorme prestígio. As conseqüências se desdobraram por setenta anos, até completar um ciclo histórico.

Pergunta: Não existe nenhum sujeito revolucionário imanente na sociedade, o que há são forças políticas que podem ser capazes de mudar a sociedade e que têm que levar em conta as contradições sociais. Mas estas forças são construções políticas e não dados "objetivos"...

Resposta: Creio que esta é uma parte bastante polêmica do que escrevi em Marxismo sem utopia. Reconheço! Outra foi a proposição de abandonar a tese da ditadura do proletariado. O conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele. Sugiro que a transformação social pode ser obra de um bloco de assalariados sob a hegemonia dos assalariados intelectuais. Nos países capitalistas desenvolvidos, 75 a 90% da população vivem de salário. Mas este conjunto de assalariados é muito heterogêneo e o bloco, ao qual me refiro, deve ser delimitado àqueles assalariados que vivem somente do seu trabalho, sem auferir rendas de patrimônio.

Constatei o crescimento explosivo que está tendo o segmento dos assalariados intelectuais. A questão da intelectualidade se torna, então, mais ampla. Não é mais a intelligentsia, no sentido russo, não são somente os formadores de opinião - escritores, jornalistas, artistas, professores. Trata-se agora de gente que está inserida no processo direto da produção.

A produção capitalista exige hoje a participação de um número crescente de assalariados intelectuais. Dois setores são mais evidentes: primeiro, o de pesquisa e desenvolvimento, com a enorme expansão dos laboratórios e das instituições de pesquisa, tanto em universidades e entidades públicas, como nas grandes empresas privadas. Segundo, o trabalho propriamente intelectual, geralmente chamado de software, que tem um peso cada vez maior no processo direto da produção. Marx conseguiu decifrar o processo de organização do trabalho de seu tempo, mas este processo mudou muito desde então. A nova configuração da organização do trabalho deve ser tema da maior significação para a teoria socialista.

Pergunta: Lenin respondeu às contradições que o marxismo enfrentava na questão do sujeito revolucionário promovendo o agenciamento político do proletariado pelo partido. Seu livro aponta para uma revalorização da autonomia do político e, portanto, para o papel central das instituições políticas na constituição do sujeito revolucionário. Sob que forma se dá a organização do bloco histórico que você propõe?

Resposta: Sem dúvida, a luta e a transformação sociais exigem agentes que sejam capazes de liderar essa luta. Eu não proponho nenhuma receita nem a adesão a algum partido existente. O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornaram o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado. Agora, como fazer, não tenho receita.

Quando o PT surgiu, criou a esperança de que produziria uma superação eficaz do modelo bolchevique e seria capaz de implementar uma nova prática revolucionária no Brasil. Infelizmente, isto não se deu. O PT foi capaz de manter a esperança transformadora até a campanha de 1989, mas depois se desviou cada vez mais para um modelo francamente social-democrata. O que, em parte, é resultado de uma conjuntura mundial de refluxo da esquerda socialista e das idéias marxistas e a partir de 1990, conseqüência do início no Brasil do processo de reestruturação produtiva, que provocou um grande desemprego estrutural e uma crise ainda não sanada no movimento sindical. Tudo isto influi no PT. Se o partido se mostrar fiel a compromissos característicos da social-democracia combativa, que produziu o Estado de bem-estar social, será algo que podemos até mesmo considerar um ganho político. Mas se ele se vincular à atual social-democracia da terceira via, será realmente um desastre para o movimento socialista brasileiro.

Pergunta: Uma das teses centrais do utopismo de Marx, que seu livro critica, é a idéia do desaparecimento do Estado. Mas como pensar a construção de uma sociedade efetivamente democrática mantendo a dicotomia entre governantes e governados, que é justamente o que caracteriza o Estado?

Resposta: Esta é também uma questão que me atormentou por muito tempo. Fui educado na idéia de que o Estado vai desaparecendo, não imediatamente como propunham os anarquistas, mas paulatinamente, após a tomada do poder pelo proletariado. Essa tese sempre foi para mim o que hoje chamam de "cláusulas pétreas", no caso da nossa Constituição. Mas a minha constatação é que em todas as sociedades em que houve uma revolução dita socialista, o Estado se fortaleceu tremendamente.

Nem Marx nem Engels escreveram que o desaparecimento do Estado significa o desaparecimento de qualquer administração central. Eles repetem a célebre tese de Saint-Simon, de que o governo dos homens será substituído pela administração das coisas. Sem dúvida, muita coisa que é hoje política - porque temos o governo dos homens - deixará de ser, porque se tornará meramente tecno-administrativa. Não serão eliminadas as funções técnicas e administrativas do Estado atual, mas só aquelas que dizem respeito à opressão política e social, à luta de classes.

Mas há outras questões novas e muito importantes no quadro atual, ignoradas por Marx e seus seguidores. Uma é a diferença de gerações. Hoje se vive em média 30 ou 40 anos mais do que na época de Marx e Engels, o que aumenta a diferença entre gerações. Há o problema dos idosos: o aparelho social, previdenciário e médico-sanitário não acompanhou o aumento na expectativa de vida. Temos, então, interesses diferenciados de gerações. Não se trata somente de uma questão administrativa. Ela envolve opções políticas. Temos também a ecologia: o que produzir, para quem produzir, em que medida. Novamente temos questões que exigem definição de prioridades. Isto significa política e conflitos. Não de classe, mas opções políticas. A própria idéia de que as forças produtivas não podem conhecer um desenvolvimento indefinido limita os recursos para resolver certas demandas. Marx só concebia um limite para as forças produtivas: o das relações de produção obsoletas. Uma vez eliminado este empecilho, as forças produtivas se desenvolveriam sem limites. Mas hoje sabemos que há limites ecológicos, recursos escassos, necessidade de preservar o meio ambiente etc. Esses fatos me levam à conclusão de que não há como se propor extinguir o Estado e as funções políticas.

Engels tem duas explicações sobre a origem do Estado: uma, segundo a qual o Estado surgiu para satisfazer certas funções e outra que surgiu da luta de classes. Se considerarmos válida a primeira explicação, pode-se conceber que certas funções serão permanentes e precisarão de um Estado político, o que soa como redundância. Daí eu afirmar que a extinção do Estado é uma tese anarquista, que Marx e Engels receberam e incorporaram a sua doutrina, ressalvando apenas que a extinção não poderia ser imediata, que teria de ser paulatina. Mas tal herança anarquista deve ser eliminada.

A mesma coisa com a famosa divisão do socialismo em duas etapas. Proponho que só deva existir aquilo que Marx chama a primeira etapa. A segunda etapa antevê um paraíso judaico-cristão. Não podemos pensar seriamente em uma sociedade em que todas as necessidades são sempre satisfeitas. Esta é uma concepção estática das necessidades. E sabemos que, dadas as limitações dos recursos acessíveis, certas necessidades não poderão ser satisfeitas para todos. Alguns poderão ter atendidas suas novas necessidades e outros precisarão esperar, porque haverá escassez.

Pergunta: Se existir poder político, existirão aqueles que vão exercer as atividades políticas de maneira mais permanente. Como pensar uma sociedade não-capitalista democrática e a relação, nela, entre governantes e governados? Como pensar o exercício do poder no socialismo e sua relação com a atividade política especializada?

Resposta: Algumas idéias me parecem importantes. Uma delas é que nossa sociedade está muito mais aparelhada materialmente para o exercício da democracia direta do que qualquer outra do passado; as possibilidades de comunicação hoje são formidáveis. O problema é que os meios de comunicação constituem propriedade privada e estão centralizados em grandes organizações empresariais, o que restringe ou anula o seu aproveitamento democrático. Mas, uma vez socializados os meios de comunicação, penso que a democracia direta pode vir a ser uma realidade praticada sem hora marcada, a toda hora. O futuro dirá como isso vai ser feito.

Destaco ainda a existência de uma experiência de organização da sociedade civil bem maior que no passado, com uma multiplicidade de entidades, instituições, organizações maiores e menores em todos os meios sociais. Isso nos dá indicação do que pode ser, no futuro, a organização democrática da sociedade e a relação, também democrática, do Estado com a sociedade civil.

Outra questão que me parece importantíssima é a da garantia dos direitos individuais, do Estado de direito, como se diz hoje. O fato de os indivíduos terem certos direitos diante do Estado e diante da sociedade - que não se dissolvem nela - é algo fundamental. Este é um elemento da doutrina liberal que devemos incorporar em nossa visão e levar à prática,com muito mais conseqüência do que faz a sociedade burguesa.

É isto que vai dar concretude à democracia, que deve ser pluralista. O central para que a democracia exista é o direito à divergência; a maioria tem o direito de dirigir, mas a minoria deve ter a segurança de ser respeitada, se organizar, fazer proselitismo, expressar suas opiniões. Para mim, isso é o fundamental, condição sine qua non da democracia. Não devemos adotar uma visão formalista de que pelo fato de haver eleições periódicas, estamos numa democracia. Inúmeras eleições são pura farsa. Nos países ditos socialistas, 99% dos eleitores apoiavam o governo. Não dava para levar a sério. Nos países burgueses, uma infinidade de meios, em particular a força tremenda que a mídia tem hoje, é usada para manipular o pensamento das grandes massas no sentido de que seja favorável à burguesia. Não sou, evidentemente, contra a escolha dos dirigentes por via eleitoral democrática. Sou contra a conclusão de que pelo mero fato de que existem eleições, já temos democracia.

Carlos Nelson Coutinho, a quem eu prezo muito, afirma que a democracia é um valor universal. Estou de acordo com a tese. É um valor universal, não só para hoje, mas também para amanhã, no regime socialista. Mas ele estende a tese ao postular que a luta pela conquista do socialismo deve ser, igualmente, democrática. Aí eu já não posso concordar. Podemos conjecturar sobre uma transição democrática e pacífica para o socialismo. Mas se trata de uma perspectiva condicional. Depende de que o adversário respeite as regras do jogo.

Pergunta: A atividade política no quadro de superação do capitalismo pode também ser potencializada pelas transformações tecnológicas que promovam a redução substancial da jornada de trabalho e as condições para uma vida liberada da opressão...

Resposta: A redução da jornada de trabalho é uma tendência histórica concreta. Há cem anos se trabalhava duas vezes mais do que hoje. A produtividade do trabalho aumentou enormemente. E não parece que essa tendência tenha chegado ao fim. Há os limites ecológicos, mas a tecnologia ainda tem muito chão para se desenvolver.

Mas por que a jornada de trabalho não está diminuindo agora? Porque o capital não quer e os trabalhadores não têm tido força para se contrapor às imposições do capital. Os trabalhadores estão na defensiva, sofrendo com o desemprego estrutural e todos os fenômenos da reestruturação capitalista. Os assalariados intelectuais ainda são elementos de legitimação da ordem existente, não passaram para o lado do socialismo, continuam, como classe, defendendo a ordem existente. Nestas condições, está difícil conseguir uma nova redução mundial da jornada de trabalho.

As possibilidades tecnológicas não levam, todavia, à eliminação do trabalho. Em alguma medida, sempre se trabalhará. Tudo aponta, porém, para uma situação em que o trabalho virá a ser um momento secundário na vida das pessoas. Hoje, o trabalho continua central, mas ele pode não ser central no futuro. E não é parte do objetivo do socialismo a idéia de que trabalhar "é o nosso destino e que isso é formidável". Isso não está certo. O trabalho continuará existindo, mas o tempo livre será muito mais extenso e dará novas possibilidades à realização humana - no campo das relações afetivas, da escolha de atividades culturais superiores, do aprendizado voluntário, do lazer não comercializado e degradado, mil e uma coisas que hoje só estão ao alcance de quem é rico.

Pergunta: O penúltimo capítulo do seu livro tem como título "Uma escolha a ser feita". Essa escolha é a do engajamento pela transformação da sociedade ou não, a aceitação ou não do sistema que está posto. A concepção que permeia o livro é uma crítica da história como progresso fatal, como destino inelutável, como algo com tendência inscrita ou necessidade inevitável...

Resposta: Sem dúvida! Esforcei-me por superar essa concepção de história. A idéia de que o capitalismo vai ser inevitavelmente sucedido pelo socialismo não é sustentável. Eu apresento um argumento que pode parecer simplista, mas que não é: hoje os homens podem se auto-exterminar como espécie, o meio para isso existe! Houve infinitos massacres na história, mas nunca esta possibilidade de auto-extermínio total. Só por isso, devemos ser prudentes em nossas afirmações. É só retrospectivamente que há alguma coisa de lógico na seqüência de formações sociais. Supor o capitalismo antes do feudalismo não parece lógico, mas a verdade é que a seqüência institucionalizada nos famosos manuais marxistas-leninistas é cheia de exceções. Houve um modo de produção asiático, a escravidão só ocorreu em uma área restrita da bacia do Mediterrâneo e, modernamente, ressurgiu nas Américas. Tantas exceções fazem com que a tese geral não se sustente.

Pergunta: Você vê algum sentido de progresso na história humana?

Resposta: Há quem diga que ocorreu progresso material, mas que, do ponto de vista ético, das relações propriamente humanas, houve até regressão. Penso que há aí uma lirificação do passado, das pequenas comunidades e das sociedades patriarcais. Não penso que o progresso seja inevitável nem que seja ilimitado. Creio que pode haver muitas regressões, porém que a humanidade tem conseguido avançar. Custou muito. Este século conheceu duas guerras mundiais terrivelmente destrutivas e desde então estamos a todo momento com alguma guerra local em curso. Mas foi possível avançar, ainda que a um custo tremendo. E o que aconteceu pelo menos nos dá a visão de um caminho que pode ser percorrido no sentido do socialismo, nos dá uma perspectiva de futuro. A história não se fechou, ao contrário do que disse Fukuyama, para citar um autor que já está fora das citações. Fukuyama, sim, fechou a história. Para ele, com o capitalismo liberal se atingiu o máximo. Mas a história não chegou ao fim, embora hoje o capitalismo domine o planeta.

Pergunta: A questão do mercado no marxismo também é objeto de um tratamento crítico na sua obra?

Resposta: Sem dúvida. Quando se começou a falar em socialismo de mercado, com a perestroika, uma grande quantidade de obras passou a tratar do tema. Os chineses são explícitos na tese de que o que existe na China é um socialismo de mercado. Eu me lembro de que Mandel protestou contra esta tese, afirmou que mercado e organização socialista da produção não se coadunam, não é possível compatibilizar teoricamente uma coisa com a outra. Aí entra também uma experiência de planejamento central, que não deve ser desprezada. A experiência soviética é a primeira na história mundial de uma sociedade complexa, com as forças produtivas modernas, em que houve um projeto de planejamento centralizado, na verdade um planejamento total. Procurei examinar as questões principais desse planejamento, os impasses em que incorreu e que depois resultaram em um desastre não superado. Tentaram injetar elementos de livre iniciativa privada para atenuar a rigidez do planejamento, mas não adiantou.

Na minha opinião, uma vez constituído um poder socialista, com a dominação do bloco de assalariados sob a liderança dos assalariados intelectuais, em um Estado com objetivos socialistas, não se pode ir muito além do ponto a que chegou a própria economia da sociedade burguesa. Deve-se superar este ponto, avançar além do capital, como diz Mészáros, mas não pretender impor um projeto de planejamento total, como o que os dirigentes soviéticos pensaram efetivar. Na União Soviética, estatizaram toda a produção de bens de produção. E os bens de consumo adquiridos pela população ficaram submetidos a preços administrados. O mercado ali era ficção. Na agricultura, impôs-se a coletivização compulsória. Havia um espaço para a agricultura familiar, mas era marginal. O planejamento não só foi total, mas totalitário.

Penso que isso deve ser evitado, mesmo no caso de economias tão desenvolvidas como os Estados Unidos, o Japão ou a Alemanha. Lester Thurow escreve que as empresas multinacionais, ao contrário do que se pensa, não planejam sua perspectiva para vinte anos, mas sim para três a cinco anos. Isso é algo que o quitandeiro da esquina não pode fazer. Ora, três a cinco anos é praticamente o tempo dos planos qüinqüenais soviéticos. A socialização da produção já está avançada na própria sociedade capitalista, podemos dar alguns passos à frente, aumentar os prazos, mas não em excesso. Deve-se pensar em praticar um processo de tentativa e erro, porque senão vamos adotar de novo aquele tipo de planejamento soviético e caminhar, mais uma vez, para o desastre.

É neste ponto que entra a questão do mercado: o que ele é, quais são suas possibilidades. O mercado é a forma de divisão social do trabalho e da produção na economia mercantil simples e na economia capitalista. É um alocador de recursos, pelo jogo de oferta e procura, indica onde é que se deve investir, funcionando como mostrador de preços. Seus apologistas não levam em conta as crises cíclicas, as depressões, os desperdícios enormes que esta alocação implica e a tendência à centralização da produção, conduzindo à extorsão da população, que sofre com os preços dos cartéis e monopólios. Mas ainda não temos um mostrador alternativo melhor do que o mercado. Pode ser que, com os computadores, já se consiga inventar uma visibilidade dos preços, que não passe pelo mercado. Mas isso ainda não existe. Enquanto não houver um dispositivo alternativo, deveremos apelar em última instância para o mercado. Um mercado regulado pelo planejamento.

Pergunta: Uma série de obras de Marx e Engels e do marxismo faz uma contraposição entre um socialismo quimérico, utópico, projetos que não têm fundamentação nas condições de vida e em forças sociais, e o que seria um socialismo formulado a partir de uma análise científica da sociedade. No entanto, toda uma corrente de pensadores marxistas, desde Ernst Bloch, vai destacar que a esperança é um elemento constitutivo da condição humana e os seres humanos sempre projetam perspectivas de melhorias, o que, em escala da sociedade, são projetos utópicos, de realidades que não existem. Depois, parece-me necessário, ao apontar a luta por uma sociedade socialista, sermos mais precisos do que foram Marx e Engels ao descreverem as características desta sociedade, porque já temos um acúmulo de experiências, positivas e negativas. Podemos não chamar isso de utopia, mas trata-se de uma sociedade que ainda não existe e pode nunca existir, que queremos construir e que não é simplesmente uma projeção científica. Neste sentido, embora concorde com todo o seu trabalho de crítica dos elementos utópicos, no sentido de quiméricos, presentes no pensamento marxista, não me parece que possamos pensar uma política de transformação da sociedade sem o alimento da utopia...

Resposta: Tenho ouvido o argumento que você coloca, de que não é possível viver e lutar sem utopia, de que abrir mão da utopia seria um conformismo tremendo. É preciso ter uma visão de algo que não existe hoje, que pode ser até fantasioso, porém que nos dá impulso e incentiva na luta social. Não desconheço este impulso que uma idéia utópica pode fornecer. Não pretendi, no meu livro, fazer uma exposição de tudo que já se falou sobre utopia. Nem sequer me referi a Karl Mannheim, com sua obra Ideologia e utopia. Mas coloco uma outra questão: a idéia de que precisamos encontrar motivadores socializantes é indispensável. Sem isso não há impulso transformador. Mas podemos dispensar a utopia. O nosso processo de luta sempre implicará tentativa e erro, correção do erro e nova tentativa. Poderemos, no entanto, avançar sem cair no realismo míope da engenharia social de Karl Popper. Rejeito a idéia de só inovar aquilo que puder ser revertido. Não, uma revolução produz também o irreversível. Mas coloco uma outra questão, levantada por adversários do marxismo, em particular Isaiah Berlin: os partidários de utopias, quando chegam ao poder, como aconteceu exatamente nos países ditos socialistas, querem que a sociedade se enquadre nas suas concepções e fazem delas um leito de Procusto. Se não se enquadra, então que se mutile o organismo para que caiba no leito. Isto é exatamente perigoso. Stalin foi o utopista do socialismo num só país, e Pol Pot praticou o genocídio em nome de uma sociedade igualitária absoluta. Essas utopias produziram as tragédias que conhecemos. A meu ver, podemos e devemos encontrar na própria realidade social os objetivos concretos, possíveis e viáveis, para transformá-la. A revolução socialista sempre implicará luta e sacrifícios, Porém não precisará terminar tragicamente, como aconteceu no século XX.

*José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate


Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 43 - janeiro/fevereiro/março de 2000