Qual socialismo?
Leandro Konder
A experiência histórica do movimento socialista, em suas formas cada vez mais variadas, ensina que o socialismo só avança quando consegue se renovar. E, atualmente, ela já ensina, também, que a reflexão socialista precisa de interlocutores “externos”, quer dizer, precisa ─ para renovar-se ─ do diálogo com linhas de pensamento não comprometidas com os projetos socialistas.
Renovar-se não é uma operação simples, automática; é um processo que passa por autocríticas intranqüilizadoras, freqüentemente dolorosas. Em sociedades politicamente complexas, os sujeitos empenhados em transformar as relações sociais precisam se criticar mutuamente, se reeducar, uns aos outros. A eficácia da autocrítica depende da liberdade de crítica assegurada aos outros. A verdadeira renovação passa a depender, cada vez mais, do pluralismo.
Por isso, a vanguarda do pensamento marxista está muito empenhada, hoje, numa revalorização do pluralismo. E os marxistas de vanguarda, na Itália, já se deram conta da extrema importância de um interlocutor como Noberto Bobbio.
Bobbio, pensador político, professor de filosofia do direito, é um homem de imensa cultura e estupenda honestidade intelectual. É um liberal que estudou Marx, conhece os meandros do pensamento marxista e não se sente nem um pouco constrangido em acolher tudo o que nele lhe parece bom. É exatamente essa abertura em face de Marx que lhe permite, por outro lado, questionar de maneira bastante despreconceituosa e fecunda uma série de aspectos da perspectiva filosófica e política do pensador alemão.
A história do século XX mostra que a conquista do poder, nas revoluções, não resolve o problema de como exercê-lo. Nenhuma revolução, até agora, enfrentou seriamente a questão das garantias contra os abusos do poder. A teoria da ditadura do proletariado deu no que deu. Bobbio, então, nos incita a refletir sobre a concepção do Estado em Marx: uma concepção que precisa de desenvolvimentos, complementações e ─ também ─ correções, revisões.
Não temos o direito de nos esquivar ao exame das questões relativas a como o poder se exerce. Os riscos de uma omissão, nas condições atuais, seriam enormes. A humanidade está duplamente ameaçada de extinção, diz Bobbio: pela guerra atômica e pelo esgotamento dos recursos do planeta. Seríamos sumamente insensatos se não nos dispuséssemos a aprender um pouco sobre as condições ─ não necessariamente mais humanas, porém menos ferozes ─ que podemos criar para o exercício do poder.
A tarefa é grave e delicada. Cumpre enfrentá-la com prudência. Bobbio sabe disso e evita se4 apresentar como “dono da verdade”. Seu método lembra o do velho Sócrates: ele aparece diante de nós como um arguto perguntador. Não é casual que todos os ensaios deste volume tenham títulos interrogativos. Qual Socialismo? ─ como notou Celso Láfer ─ contém perguntas “incisivas e bem formuladas”, relativas a temas para os quais Bobbio não pretende ter “respostas definitivas”.
[Texto de orelha de Leandro Konder In BOBBIO, Noberto. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Tradução de Iza de Salles Freaza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.]
Leandro Konder é filósofo marxista e escritor.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
domingo, 8 de novembro de 2009
Socialismo com liberdade e democracia
Baseando-se em Karl Marx, Friedrich Engels, Antonio Gramsci, e Palmiro Togliatti, surgiu na Itália o chamado "eurocomunismo", que afirma ser a democracia, um valor universal. Enrico Berlinguer, secretário geral do Partido Comunista Italiano entre 1972 e 1984, foi quem fundou essa vertente democrática do comunismo.
"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)
O "eurocomunismo" fez do PCI - Partido Comunista Italiano, o maior partido comunista do Ocidente, mobilizando o terror da extrema-direita fascista e da extrema-esquerda contra a possibilidade real dos comunistas chegarem ao poder pela via democrática, através do voto. Por isso o assassinato de Aldo Moro, um político centrista que estava buscando junto com os comunistas, construir uma aliança que unindo os democratas cristãos e o PCI, levasse a Itália ao progresso social e a plena democracia, abrindo caminho para a construção processual do socialismo.
Os eurocomunistas nunca chegaram ao poder, mas iniciaram uma nova cultura política na esquerda, não somente na Europa. Aqui na América Latina, o "eurocomunismo" foi uma das principais influências do PT - Partido dos Trabalhadores.
Aqui no Brasil, o filósofo Leandro Konder e o cientista político Carlos Nelson Coutinho, são os principais nomes do "eurocomunismo". Fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, são os principais responsáveis pela divulgação da obra de Gramsci aqui no Brasil.
O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".
"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.
Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.
Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.
Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.
Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."
(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)
O socialismo no século XXI é radicalmente democrático e ecológico, fundamentando-se na democracia como valor universal e na defesa do desenvolvimento autossustentável.
A democracia como valor universal
Enrico Berlinguer
Tradução: Marco Mondaini
Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.
Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.
Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.
O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.
Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.
No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.
O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.
A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.
Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.
Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.
Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.
Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.
Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.
"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)
O "eurocomunismo" fez do PCI - Partido Comunista Italiano, o maior partido comunista do Ocidente, mobilizando o terror da extrema-direita fascista e da extrema-esquerda contra a possibilidade real dos comunistas chegarem ao poder pela via democrática, através do voto. Por isso o assassinato de Aldo Moro, um político centrista que estava buscando junto com os comunistas, construir uma aliança que unindo os democratas cristãos e o PCI, levasse a Itália ao progresso social e a plena democracia, abrindo caminho para a construção processual do socialismo.
Os eurocomunistas nunca chegaram ao poder, mas iniciaram uma nova cultura política na esquerda, não somente na Europa. Aqui na América Latina, o "eurocomunismo" foi uma das principais influências do PT - Partido dos Trabalhadores.
Aqui no Brasil, o filósofo Leandro Konder e o cientista político Carlos Nelson Coutinho, são os principais nomes do "eurocomunismo". Fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, são os principais responsáveis pela divulgação da obra de Gramsci aqui no Brasil.
O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".
"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.
Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.
Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.
Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.
Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."
(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)
O socialismo no século XXI é radicalmente democrático e ecológico, fundamentando-se na democracia como valor universal e na defesa do desenvolvimento autossustentável.
A democracia como valor universal
Enrico Berlinguer
Tradução: Marco Mondaini
Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.
Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.
Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.
O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.
Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.
No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.
O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.
A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.
Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.
Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.
Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.
Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.
Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.
sábado, 7 de novembro de 2009
Biografia de Karl Marx
Quando fundaram o socialismo científico, os filósofos e revolucionários alemães Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram que a história é movida pela luta de classes, e na atual sociedade capitalista, a luta do proletariado contra a burguesia levará a revolução socialista e a destruição do capitalismo. E segundo Marx e Engels, essa revolução será violenta.
Entretanto a história não é estatica, por isso a realidade apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, publicado em fevereiro de 1848, já não era mais a mesma realidade existente nos anos 60 do século XIX. No Livro 1 de O Capital, publicado em 1867, Marx teorizou a respeito da progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade), que alterou as condições em que se trava a luta de classes. Como resultado dessa alteração, o filósofo e revolucionário alemão Karl Marx, afirmou que era possível uma revolução socialista não violenta, com os comunistas chegando ao poder pelo voto.
Em seu discurso no Congresso de Haia, realizado em 1872, Marx afirmou que nos EUA, na Grã Bretanha, e talvez na Holanda, os trabalhadores poderiam atingir suas metas por meios pacíficos. A possibilidade da transição pacífica, segundo Marx, dependeria das diferentes correlações de força existentes no interior de cada país, do grau de consolidação das instituições e também da resistência oferecida pelas classes dominantes às transformações sociais. Marx sublinhou igualmente, que será a classe operária de cada país que deverá escolher os meios a serem utilizados.
Em 1895, Engels escreveu a Introdução para uma nova edição de Luta de Classes na França, de Marx.
"Neste texto, por muitos considerado seu testamento político, Engels parte do reconhecimento de que, em 1848, quando rompeu o movimento revolucionário de fevereiro em Paris, ele e Marx estavam verdadeiramente "fascinados" com a experiência histórica das revoluções francesas anteriores, a de 1789 e 1830, que lhes haviam fornecido uma espécie de “modelo” com o qual representar a “marcha e o caráter da revolução do proletariado”. A história posterior, porém, “não só destruiu o erro em que nos encontrávamos, como também modificou de cima a baixo as condições de luta do proletariado”. Cinqüenta anos depois, ele constataria: “O método de luta de 1848 está hoje antiquado em todos os aspectos”. A história deixara patente que “o estado do desenvolvimento econômico não estava maduro para poder eliminar a produção capitalista”, que demonstrava “grande capacidade de extensão”. E o capitalismo, quanto mais se expandia, mais punha de manifesto as relações de classe que o sustentavam, “criando e fazendo passar ao primeiro plano uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado” e, desta forma, injetando inédita intensidade à luta entre as duas classes. Ao final do século, na visão de Engels, havia se organizado “um grande, único e poderoso exército do proletariado, o exército internacional dos socialistas” que, “longe de poder conquistar a vitória em um grande ataque decisivo, teria que avançar lentamente, de posição em posição, em uma luta tenaz e dura”. A época, agora, não era mais das “minorias revolucionárias”, mas das massas; não mais das “barricadas e das lutas de rua", mas das batalhas eleitorais. Engels enfatizaria que os operários alemães, “graças à inteligência com que souberam utilizar o sufrágio universal”, haviam conseguido viabilizar o “crescimento assombroso de seu partido”, que em 1871 obtivera 102.000 votos, passara a 550.000 votos em 1884 e alcançaria quase 2 milhões de votos nas eleições da primeira metade dos anos 90.
O sufrágio universal convertia-se, assim, em uma “arma nova e mais afiada”, posto que permitia aos operários “entrar em contato com as amplas massas do povo” e pôr em ação “um método de luta totalmente novo”, passando a perceber que “as instituições estatais nas quais se organizava a dominação da burguesia ofereciam, à classe operária, novas possibilidades de lutar contra essas mesmas instituições”. Em decorrência, concluiria Engels, os governos burgueses começariam a “temer muito mais a atuação legal do que a atuação ilegal do partido operário, mais os êxitos eleitorais do que os êxitos insurrecionais”. Não deixava de ser uma ironia: “nós, os ‘revolucionários’, os ‘elementos subversivos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com a subversão”, ao ponto dos partidos da ordem “exclamarem desesperados, juntamente com Odilon Barrot, que la légalité nous tue, a legalidade nos mata, ao passo que, da nossa parte, acabamos por adquirir, com esta legalidade, músculos vigorosos e faces coloridas, como se tivéssemos sido alcançados pelo sopro da eterna juventude”.
Engels, enfim, nesse texto verdadeiramente paradigmático, procurava atualizar a estratégia do movimento operário às novas determinações da realidade histórica e às mudanças que se processavam no próprio plano das lutas:
“Se se modificaram as condições da guerra entre as nações, do mesmo modo teriam que se modificar as condições da luta de classes. Acabou a época dos ataques de surpresa, das revoluções feitas por pequenas minorias conscientes que se punham à frente das massas inconscientes. Onde quer que se trate de realizar uma transformação completa da organização social, as massas têm de intervir diretamente, têm de já ter compreendido por si mesmas do que se trata e porque estão dando o sangue e a vida. E para que as massas compreendam o que deve ser feito, é preciso um trabalho longo e perseverante”.
Reiterava-se, assim, uma das grandes teses do marxismo clássico: as formas de luta (pacíficas ou violentas, legais ou ilegais) deveriam ser sempre uma resposta às situações históricas concretas, sendo por elas determinadas.
Tal transição verdadeiramente epocal alterava a qualidade mesma do Estado, que se transformava numa instituição efetivamente complexa, dilatada, invasiva. Fazia-se necessária, portanto, uma nova conceitualização, capaz de possibilitar a apreensão dos novos nexos que se estabeleciam no ampliado plano da atividade estatal. Com o Estado reforçado conectando-se com múltiplas associações particulares e incorporando-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova qualidade e o fato mesmo da dominação política era redefinido: a coerção, o “monopólio legítimo da violência”, ação típica da “sociedade política”, tinha de ser cada vez mais sintonizada com a busca de consensos."
(Marco Aurélio Nogueira; "GRAMSCI E OS DESAFIOS DE UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE ESQUERDA")
O revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci, a partir dessa concepção de Engels, desenvolveu a teoria da revolução socialista no mundo capitalista desenvolvido, ou seja, no ocidente, como uma revolução que "arde em fogo lento", onde a luta pela hegemonia é essencial para a vitória do proletariado. Assim, a luta de classes deixa de ser uma "guerra de movimento", como era descrita no Manifesto Comunista, e como foi na Rússia semi-feudal dos czares, e se torna uma "guerra de posição", pois o poder não está concentrado apenas nos palácios, e sim disperso na sociedade.
"[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base." (Antonio Gramsci)
Oras, se Engels reconhece que os tempos das revoluções realizadas por pequenas minorias chegou ao fim, chegando inclusive a afirmar que os revolucionários ganham mais atuando na legalidade e não fora dela, e se antes dele, Marx já reconhecia que os comunistas podiam chegar ao poder pelo voto, fica comprovado que a Revolução Russa de 1917 foi um fato histórico isolado, que só foi possível pelo fato daquele país ainda estar vivendo em uma realidade semi-feudal do começo do século XIX. Por isso Gramsci desenvolve a teoria da revolução no ocidente, afirmando a importância da luta pela hegemonia. Antes de ser dominante, a classe trabalhadora precisa ser dirigente.
E o mundo mudou ainda mais, com o desenvolvimento do Estado democrático e de direito, com os trabalhadores conquistando cidadania plena, assim como as mulheres, os negros, etc. Isso tudo demonstra que é absurdo continuar afirmando que a revolução socialista deve se basear na violência, que deve ser uma ruptura como foi a Revolução Russa.
O bolchevismo deve ser abandonado não somente por sua cultura autoritaria, responsável pelo surgimento da bestialidade stalinista. Mas também por ser completamente obsoleto, não cabendo mais com a realidade da luta de classes no século XXI.
O socialismo precisa ser construido processualmente, e não estabelecido por decreto
No texto intitulado "Abaixo o bolchevismo!!! Viva a luta pelo socialismo democrático!!!", eu havia dito que a primeira causa da burocratização do Estado soviético foi oriunda da ausência de democracia política. Pois bem, a segunda causa foi a completa estatização da economia, que rompendo a aliança operário-camponesa, possibilitou a expansão da burocracia já existente.
O socialismo não pode ser estabelecido por decreto, e os bolcheviques pareciam ter se dado conta disso ao aplicar a Nova Política Economica, sugerida por Lenin em março de 1921.
"Estamos tão arruinados, tão abalados pelo fardo da guerra, que não podemos dar ao camponês os produtos industriais em troca do trigo de que temos necessidade. [...]
A miséria e a ruína são tais que não podemos restabelecer a grande produção socialista, as grandes fábricas do Estado. [...] Por conseguinte, é necessário restabelecer a pequena indústria.
[...] Que resulta daí? Seguindo uma certa liberdade de comércio, renascem a pequena burguesia e o capitalismo. [...] O capitalismo privado pode ajudar ao desenvolvimento do socialismo. [...] Nada há de perigoso nisto enquanto o proletariado detiver firmemente o poder, enquanto detiver firmemente entre as suas mãos os transportes e a indústria pesada." (Vladimir Lenin)
A Nova Politica Economica foi considerada um recuo estratégico ao capitalismo, com objetivo de restabelecer a aliança operário-camponesa, que havia sido rompida durante a desastrosa política do "comunismo de guerra", e promover a recuperação da economia, arrasada não somente pela guerra civil, mas também pela desastrosa política que os bolcheviques haviam estabelecido em 1918, o chamado "comunismo de guerra". Desnacionalizaram-se as empresas com menos de 20 operários, suprimiu-se o trabalho obrigatório para estimular a produtividade, possibilitou aos camponeses a venda dos seus excedentes, permitiu a liberdade do comércio interno, e também permitiu o investimento estrangeiro para a reconstrução do país.
Os resultados práticos não demoraram a surtir efeito. Lentamente a produção agrícola foi sendo restabelecida; o sistema viário voltou a funcionar com maior regularidade e as pequena indústrias começaram a lançar seus produtos no mercado.
O sucesso dessa política levou o revolucionário Nikolai Bukharin defender que esse era o caminho para a construção do socialismo, posição também defendida pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci.
A Nova Política Economica demonstra que o socialismo precisa ser construido processualmente, a "passos de tartaruga", como disse o revolucionário Nikolai Bukharin. Ao invés da coerção, a busca do consenso.
Infelizmente essa política não foi para frente, em virtude da cultura autoritária do bolchevismo. Mas na atualidade, o governo cubano percebeu que essa experiência é o caminho para um socialismo sem burocracia, e começa a demonstrar que vai trilhar por esse caminho. A esquerda precisa apoiar as reformas que o governo Raúl Castro já promoveu e as que pretende promover a partir do 9º Congresso do Partido Comunista. E mais, precisa pressionar no sentido de que reformas sejam realizadas também na política, como o fim do regime de partido único, a promoção da liberdade sindical, da liberdade de imprensa, e a realização de eleições democráticas. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, e não o último bastião do "socialismo real".
O resgate de uma história
Pacto ou autoritarismo.
A visão de Bukharin
Daniel Aarão Reis *
Quase vinte anos depois de sua publicação, é oferecida aos leitores brasileiros a biografia política de Nikolai Ivanovitch Bukharin, por Stephen Cohen. Sobre esse revolucionário já havia sido traduzida, há dez anos, a pungente obra do historiador russo Roy Medvedev ( Os últimos anos de Bukharin)... Tratando-se da compreensão da trajetória do teórico que era, segundo Lenin, o "preferido do partido", já contamos, felizmente, em 1990, com a obra de Cohen e com a excelente antologia Bukharin, organizada por Jacob Gorender.
Stephen Cohen permaneceu à margem dos modismos e das correntes hegemônicas da historiografia sobre a Revolução Russa. Não se deixando aprisionar pelas luzes que focalizaram, durante décadas, os atores que estavam no centro da ribalta – Trotski e Stalin –, defende, convincentemente em paciente e minuciosa investigação, o papel decisivo assumido por Nikolai Bukharin, nas lutas políticas, que se travaram ao longo dos anos 20 na União Soviética, fundamentais para o processo de construção do socialismo e para o desfecho que hoje conhecemos como "socialismo realmente existente".
O interesse pela trajetória e propostas de Bukharin já se afirmara nos anos 50 e 60, sobretudo no decorrer do período de reformas, dirigido por Nikita Kruchev. Mas receberia formidável impulso, a partir de 1985, quando, no âmbito da perestroika, a referência à Nova Política Econômica (NEP), associada intimamente a Bukharin, passou a ser obrigatória nos discursos de Mikhail Gorbatchev, que nela se inspirou para seu ambicioso projeto reformista.
O que foi exatamente a NEP? Qual seu significado histórico? Em que sentido pode servir de referência para as reflexões atuais sobre o socialismo?
A NEP começou a ser formulada e implementada em 1920-1921, ao se consolidar, de fato, o governo revolucionário bolchevique. A Rússia de então estava literalmente arrasada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918) e pela Guerra Civil (1918-1921). Havia fome e epidemias por toda a parte, a indústria e os transportes estavam profundamente debilitados (alguns setores apresentavam índices equivalentes aos de fins do século XVIII), a agricultura paralisada, à espera de definições políticas, o descontentamento agitava a população urbana e provocava revoltas no campo. A expressão mais clara desta efervescência foi a insurreição dos marinheiros de Kronstadt contra os bolcheviques, aniquilada pelo exército vermelho em março de 1921.
A política dos bolcheviques durante a Guerra Civil, o chamado Comunismo de Guerra, revelara-se voluntarista, irrealista e desastroso. Semeara muitas ilusões sem abrir perspectivas. Impunha-se uma reviravolta. Por outro lado, a revolução internacional não acontecera e parecia muito claro que não adiantava sonhar com ela, pelo menos a curto prazo. A maioria, principalmente após a revolta de Kronstadt, compreendia a necessidade de mudanças. Elas tomariam a forma de uma Nova Política Econômica.
Segundo Cohen, ela começou "sub-repticiamente" e não como "plano predeterminado" (ps. 128 e 153). A principal novidade: garantia de liberdade de produção e de comércio para cerca de 25 milhões de pequenos camponeses, recém-convertidos em proprietários na revolução agrária. A intervenção do Estado se restringia à cobrança do imposto. Mais tarde, através de sucessivos decretos, as liberdades comerciais seriam ampliadas e consolidadas com a permissão de arrendar terras e tocar pequenas indústrias, mantendo assalariados etc. O Estado controlava os setores estratégicos: grandes empresas, indústria pesada, transportes, sistema bancário, comércio externo. Em fins de 1923, como observa Cohen, "estabelecera-se na Rússia Soviética um dos primeiros sistemas mistos da economia moderna" (p. 149).
A NEP era, sem dúvida, uma nova política, muito mais do que apenas "econômica". Mediante o afrouxamento dos controles econômicos, sobretudo no campo, dava uma trégua aos camponeses, desesperados e revoltados com as requisições forçadas e com as políticas coletivizantes do Comunismo de Guerra. Neste sentido, foi uma política de apaziguamento com o campesinato. Com a sua franqueza habitual, Lenin a apresentou como um "recuo" (p. 157). Assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político.
A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.
O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial (p. 188).
A pequena economia privada prosperava. Praticamente toda a produção agrícola estava sob controle camponês; 28% dos manufaturados e de 50% a 75% dos bens de consumo básico, eram produzidos por milhões de artesãos. O comércio estava, essencialmente, em mãos dos pequenos negociantes. Apesar das empresas estatais controlarem os centros dinâmicos da economia, mais de 80% da população "vivia e trabalhava sem estar sujeita ao controle do Partido Comunista ou do Estado" (ps. 301-302).
Os revolucionários reagiam ambiguamente à situação: satisfeitos com os resultados imediatos e com o afastamento dos perigos da fome e da revolta social, mas intranqüilos com a força ascendente da pequena economia privada. Afinal, a NEP era um triunfo dos bolcheviques ou dos "pequenos burgueses" em ascensão? Um triunfo da revolução ou da contra-revolução? Quem avançava, quem recuava? Mas, afinal, para que se fizera a revolução? Para isso tanto sacrifício? E o socialismo? E o comunismo? Como emancipar de fato a União Soviética do mercado internacional capitalista? Como fazer da URSS uma sociedade próspera e poderosa? Não se necessitava uma indústria pesada? Não era esta uma condição indispensável para um desenvolvimento econômico-social auto-sustentado? E também para garantir a soberania da "fortaleza do socialismo mundiall"? Os bolcheviques analisavam a conjuntura internacional, previam e temiam novas guerras imperialistas e não ignoravam que setores ponderáveis no mundo capitalista defendiam "cruzadas anticomunistas" radicais.
Os bolcheviques se dividiam nestas questões. Enquanto as luzes da ribalta clareavam os rostos crispados de Trotski, Stalin, Zinoviev, Kamenev, em luta pelo comando da sociedade, a polêmica central sobre os rumos do desenvolvimento social se polarizava em torno de Nicolai Bukharin e Eugeni Preobrajenski.
Os dois tinham sido partidários do Comunismo de Guerra e eram estreitamente ligados, já tendo inclusive elaborado em conjunto um manual de marxismo de grande sucesso na época: ABC do Comunismo. Mas viriam se tornar expoentes de propostas diversas.
Preobrajenski encarnaria a preocupação pelo desenvolvimento máximo das forças produtivas, pela construção prioritária de uma indústria de base. Para tal objetivo, fazia-se necessária uma "punção" no campesinato. Assim como o capitalismo passara por uma fase de "acumulação primitiva", o socialismo teria que obter os recursos para decolar. A Rússia revolucionária não podia contar com capitais internacionais. Restava-lhe como reserva, grande e inexplorada, o universo camponês. As teses de Preobrajenski eram relativamente cautelosas na previsão dos ritmos e da intensidade da intervenção sobre os camponeses, mas, certamente, tal política corresponderia ao abandono da NEP.
Bukharin trabalhou em sentido oposto. Defendia que a NEP deveria ser aprofundada e consolidada. Assim, deixaria de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes.
Tratava-se de mexer significativamente no núcleo do universo ideológico bolchevique. A viga-mestra do pensamento de Bukharin é a concepção da smychka, "colaboração na sociedade" (p. 230), ou, em outras palavras, aliança entre operários e camponeses. Esta aliança deveria ser mantida a qualquer preço: o poder revolucionário é proletário, dizia Bukharin, mas quem o sustenta são os mujiques.
Para garantir a industrialização, o financiamento viria dos lucros da indústria estatal, convidada a aumentar sua produtividade; do imposto de renda, que recairia prioritariamente sobre os camponeses mais abastados e os negociantes privados, da poupança voluntária, estimulada pela implementação de vários mecanismos.
Bukharin denunciava energicamente o emprego da violência nos métodos de coletivização no campo. Os camponeses deveriam ser persuadidos ao processo coletivo de produção por um longo e paciente trabalho de esclarecimento (p. 107). A forma intermediária definida entre a propriedade individual e a coletiva era a cooperativa, da qual, lenta e livremente, os camponeses iriam "ascender" para as formas coletivas de organização do trabalho.
Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias (p. 165). Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética: "Nossa economia existe para o consumidor, não o consumidor para a economia. O que faz a Nova Economia diferir da antiga é o fato de tomar como padrão as necessidades das massas" (P. 200).
A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas (p. 186), preservando interesses dos diversos setores sociais (p. 267), a paz civil, a legalidade, a moderação nos ritmos, a tolerância e a persuasão (p. 235).
A smychka tinha igualmente uma dimensão internacional. De fato, com o "adiamento" da revolução no Ocidente capitalista, os bolcheviques, desde o início dos anos 20, passaram a pensar na possibilidade de uma aliança da Revolução Russa com os povos coloniais. Lenin e o indiano Roy protagonizaram o primeiro grande debate sobre questão no 2º Congresso da Internacional Comunista.
Bukharin, desdobrando a reflexão, passará a falar do "campesinato mundial". A relação entre camponeses e operários, existente na URSS, refletia um fenômeno mundial, e era preciso fazer do poder soviético um defensor dos povos oprimidos e colonizados, da classe camponesa, da pequeno-burguesia (p. 174-175). Da mesma forma, as nações não russas deveriam receber toda consideração já que representavam, entre outras razões uma "ponte com os povos do Oriente" (p. 181).
Bukharin tinha críticas contundentes à alternativa defendida por Preobrajenski. Ela causaria um estatismo repressivo generalizado e sufocante. A supercentralização e a superburocratização desembocariam na "má administração organizada" (p. 36 1). Na melhor das hipóteses, propiciaria um ritmo máximo de crescimento em determinados setores, mas à custa de demandas da sociedade, da aliança operário-camponesa e da estabilidade do poder soviético. E desembocaria certamente no Estado-Leviatã, voraz e liberticida.
As novas concepções de Bukharin - sobre a aliança operário-camponesa como perspectiva estratégica e não como um expediente tático ou recuo - a idéia "evolucionária" de construção do socialismo -, o projeto de atingir o socialismo mediante o mercado controlado assim como suas propostas concretas sobre o desdobramento da NEP, conheceriam momentos de glória entre 1925 e 1927, sendo consagrados no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1927.
Neste período Bukharin é reconhecido como o teórico e principal formulador da NEP. Articula-se num tandem imbatível com Stalin (Bukharin formula e Stalin organiza) e destrói as oposições agrupadas em torno de Trotsk, Zinoviev e Kamenev.
Entretanto, já desde meados de 1927, acumulavam-se problemas para a NEP. Não se confirmavam as previsões estatais sobre os montantes de grãos para exportação e abastecimento das cidades. Os camponeses, descontentes por não encontrarem no mercado as manufaturas necessárias, simplesmente não escoavam sua produção.
Estocavam seus excedentes e começaram, inclusive, em certas regiões, a diminuir a área semeada. Noutras palavras, valiam-se da liberdade de comércio, inscrita na NEP. Assim, configuravam-se tensões significativas, entre Estado e camponeses.
Os problemas foram apenas aflorados no XV Congresso, já que a fração Bukharin-Stalin interessava-se mais em varrer a oposição do mapa do que em discutir a tempestade iminente.
Mas eram contradições demasiadas para ficar embaixo do tapete. Assim, em janeiro de 1928, o Bureau Político do PCUS, a mais alta instância dirigente do país, adota "medidas extraordinárias" para obrigar os camponeses a entregar os grãos de que o Estado necessitava. Voltava, portanto, a política das requisições forçadas, odiada pelos camponeses e formalmente rejeitada pela NEP.
Em fins de 1929, encerrando uma política de vaivém, de zigue-zagues estonteantes, que refletiam as hesitações do partido e, principalmente, a resistência de Bukharin e seus aliados (A. Rykov, chefe do Governo, e M. Tomski, presidente dos sindicatos russos), o Estado soviético e os comunistas caminharam para a decisão da coletivização à força, para a expropriação dos camponeses privados, ou seja, para a destruição da aliança operário-camponesa e para o abandono da NEP.
Doravante, o embate seria polarizado por Bukharin, de um lado, e por Stalin, de outro. As concepções e propostas de Preobrajenski, acerca da acumulação socialista primitiva, seriam retomadas por Stalin em escala alucinante - "caricatural", como diria Trotsk. Por ironia sinistra, o arquiinimigo de Trotski se tornava adepto da perspectiva da industrialização, para cuja implementação contaria com inúmeros ex-aliados do seu inimigo. Alguns, como o próprio Preobrajenski, seriam trazidos do exílio interno, em que se encontravam, para ajudar na execução dos famosos Planos Qüinqüenais.
Mesmo em desgraça, Bukharin ainda travará batalhas de retaguarda até ser expulso do PCUS, preso, condenado e assassinado (1937-1938). A rigor, lutará até o fim, transformando seu julgamento num derradeiro libelo contra o sistema triunfante e legando, com sua mulher antes de morrer, uma carta que, mais tarde, será divulgada.
A recuperação da trajetória de Bukharin, realizada brilhantemente por Cohen, até 1927, deixa em parte a desejar, quando o autor trata da luta entre Stalin e Bukharin, de 1927 a 1929, e, sobretudo, do período subseqüente até a morte do dirigente comunista.
A meu ver, não se esclareceram as razões políticas do triunfo de Stalin, nem, muito menos, os fundamentos históricos e sociais da derrota da linha de Bukharin. Em certos momentos, o autor é seduzido pela idéia, tão própria à historiografia trotskista, de que Stalin venceu porque soube dominar a máquina partidária. Nesta linha de argumentos, a estrutura orgânica se ergue como um espectro com vida própria, insolitamente despolitizado e que tritura as oposições de modo inapelável. Stalin é satanizado e, como um monstro de astúcia e frieza, de sabedoria incontestável, desembaraça-se de inimigos e ex-aliados. Um autêntico gênio do mal.
Porém, felizmente, o próprio autor reconhece que não "se pode exagerar o poder organizativo de Stalin em 19288" (p. 368). De outro lado, também reconhece que "era claramente perceptível que os grupos de opinião mais fortes do partido se mostravam cada vez menos pacientes em relação às prédicas cautelosas (de Bukharin) e cada vez mais receptivos ao culto (... ) à tradição heróica do bolchevismo" (p. 371).
Aqui o autor apenas aflora um fator crucial da derrota de Bukharin. Trata-se do universo ideológico dos bolcheviques, aliás, tributário em grande medida das tradições social-democratas anteriores à Grande Guerra.
Bukharin, apesar de suas propostas inovadoras, pertence a este universo. Dele fazem parte idéias messiânicas sobre a revolução, a classe operária e o partido de vanguarda (necessariamente único), desvalorização histórica e estrutural do papel dos camponeses na revolução, a concepção cientificista-produtivista da história e do desenvolvimento social. Com tal universo Bukharin não rompeu e nem teve, jamais, este propósito.
Quando Bukharin, entre 1927 e 1929, tenta se insurgir contra Stalin, encontra-se preso nas teias destas concepções e valores políticos. Na verdade, também ele havia cultivado atitudes e políticas autoritárias (ps. 230, 270 e 299). Também ele havia sido impiedoso com seus adversários políticos de fora e de dentro do Partido Comunista. Não realizam uma reflexão autocrítica efetiva, acerca das suas concepções, no período do Comunismo de Guerra, marcadamente catastróficas, obreiristas, autoritárias e messiânicas. E havia consentido recuos em 1925-1926 que iriam fortalecer os partidárias dos planos centralizados e superindustrializantes. Daí sua impressionante timidez em recorrer ao conjunto do partido e à sociedade, se deixando encurralar no interior do Bureau Político. Daí suas humilhantes e sucessivas retratações (ps. 378, 394 e 399) que enfraqueceram, Progressivamente, suas chances de apresentar uma alternativa ampla ao stalinismo.
Este retrospecto não tenciona desmerecer ou minimizar o papel de Bukharin, mas compreender algumas razões da sua derrota para Stalin. Este soube, de fato, encamar como ninguém a consciência média bolchevique, os valores hegemônicos no interior do partido, os frutos de um tempo duro de terríveis enfrentamentos. Por mais astuto e endemoninhado que fosse, com rabo, chifres e pés invertidos, Stalin não venceria esta formidável batalha política, se não contasse com maioria ampla do partido a seu favor.
O socialismo em um só país (defendido inclusive por Bukharin que, por sinal, foi o primeiro a falar nisto, como informa o próprio Cohen), a mitologia do partido único, o messianismo obreirista e a correspondente subestimação das outras classes, principalmente o campesinato, São valores fundamentais entre outros já referidos, enraizados na tradição bolchevique.
Bukharin formulou políticas e concepções que, uma vez aprofundadas, provavelmente, poriam em xeque tais valores. Mas não foi capaz, ou não teve ocasião histórica, de empreender tamanha tarefa. E se o fizesse é praticamente certo que seria derrotado de maneira ainda mais inapelável.
Entretanto, teve o mérito de representar uma alternativa ao modelo stalinista. E Stephen Cohen teve o grande mérito de ser um dos historiadores que resgatou do esquecimento esta história. Contribuiu, deste modo, para esclarecer as divergências reais da polêmica que sacudiu a URSS nos anos 20, como para desvendar os mitos que reservam um lugar central à polêmica entre Stalin e Trotski, obscurecendo o parentesco fundamental entre stalinismo e trotskismo.
* Daniel Aarão Reis é historiador
Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991
O socialismo não pode ser estabelecido por decreto, e os bolcheviques pareciam ter se dado conta disso ao aplicar a Nova Política Economica, sugerida por Lenin em março de 1921.
"Estamos tão arruinados, tão abalados pelo fardo da guerra, que não podemos dar ao camponês os produtos industriais em troca do trigo de que temos necessidade. [...]
A miséria e a ruína são tais que não podemos restabelecer a grande produção socialista, as grandes fábricas do Estado. [...] Por conseguinte, é necessário restabelecer a pequena indústria.
[...] Que resulta daí? Seguindo uma certa liberdade de comércio, renascem a pequena burguesia e o capitalismo. [...] O capitalismo privado pode ajudar ao desenvolvimento do socialismo. [...] Nada há de perigoso nisto enquanto o proletariado detiver firmemente o poder, enquanto detiver firmemente entre as suas mãos os transportes e a indústria pesada." (Vladimir Lenin)
A Nova Politica Economica foi considerada um recuo estratégico ao capitalismo, com objetivo de restabelecer a aliança operário-camponesa, que havia sido rompida durante a desastrosa política do "comunismo de guerra", e promover a recuperação da economia, arrasada não somente pela guerra civil, mas também pela desastrosa política que os bolcheviques haviam estabelecido em 1918, o chamado "comunismo de guerra". Desnacionalizaram-se as empresas com menos de 20 operários, suprimiu-se o trabalho obrigatório para estimular a produtividade, possibilitou aos camponeses a venda dos seus excedentes, permitiu a liberdade do comércio interno, e também permitiu o investimento estrangeiro para a reconstrução do país.
Os resultados práticos não demoraram a surtir efeito. Lentamente a produção agrícola foi sendo restabelecida; o sistema viário voltou a funcionar com maior regularidade e as pequena indústrias começaram a lançar seus produtos no mercado.
O sucesso dessa política levou o revolucionário Nikolai Bukharin defender que esse era o caminho para a construção do socialismo, posição também defendida pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci.
A Nova Política Economica demonstra que o socialismo precisa ser construido processualmente, a "passos de tartaruga", como disse o revolucionário Nikolai Bukharin. Ao invés da coerção, a busca do consenso.
Infelizmente essa política não foi para frente, em virtude da cultura autoritária do bolchevismo. Mas na atualidade, o governo cubano percebeu que essa experiência é o caminho para um socialismo sem burocracia, e começa a demonstrar que vai trilhar por esse caminho. A esquerda precisa apoiar as reformas que o governo Raúl Castro já promoveu e as que pretende promover a partir do 9º Congresso do Partido Comunista. E mais, precisa pressionar no sentido de que reformas sejam realizadas também na política, como o fim do regime de partido único, a promoção da liberdade sindical, da liberdade de imprensa, e a realização de eleições democráticas. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, e não o último bastião do "socialismo real".
O resgate de uma história
Pacto ou autoritarismo.
A visão de Bukharin
Daniel Aarão Reis *
Quase vinte anos depois de sua publicação, é oferecida aos leitores brasileiros a biografia política de Nikolai Ivanovitch Bukharin, por Stephen Cohen. Sobre esse revolucionário já havia sido traduzida, há dez anos, a pungente obra do historiador russo Roy Medvedev ( Os últimos anos de Bukharin)... Tratando-se da compreensão da trajetória do teórico que era, segundo Lenin, o "preferido do partido", já contamos, felizmente, em 1990, com a obra de Cohen e com a excelente antologia Bukharin, organizada por Jacob Gorender.
Stephen Cohen permaneceu à margem dos modismos e das correntes hegemônicas da historiografia sobre a Revolução Russa. Não se deixando aprisionar pelas luzes que focalizaram, durante décadas, os atores que estavam no centro da ribalta – Trotski e Stalin –, defende, convincentemente em paciente e minuciosa investigação, o papel decisivo assumido por Nikolai Bukharin, nas lutas políticas, que se travaram ao longo dos anos 20 na União Soviética, fundamentais para o processo de construção do socialismo e para o desfecho que hoje conhecemos como "socialismo realmente existente".
O interesse pela trajetória e propostas de Bukharin já se afirmara nos anos 50 e 60, sobretudo no decorrer do período de reformas, dirigido por Nikita Kruchev. Mas receberia formidável impulso, a partir de 1985, quando, no âmbito da perestroika, a referência à Nova Política Econômica (NEP), associada intimamente a Bukharin, passou a ser obrigatória nos discursos de Mikhail Gorbatchev, que nela se inspirou para seu ambicioso projeto reformista.
O que foi exatamente a NEP? Qual seu significado histórico? Em que sentido pode servir de referência para as reflexões atuais sobre o socialismo?
A NEP começou a ser formulada e implementada em 1920-1921, ao se consolidar, de fato, o governo revolucionário bolchevique. A Rússia de então estava literalmente arrasada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918) e pela Guerra Civil (1918-1921). Havia fome e epidemias por toda a parte, a indústria e os transportes estavam profundamente debilitados (alguns setores apresentavam índices equivalentes aos de fins do século XVIII), a agricultura paralisada, à espera de definições políticas, o descontentamento agitava a população urbana e provocava revoltas no campo. A expressão mais clara desta efervescência foi a insurreição dos marinheiros de Kronstadt contra os bolcheviques, aniquilada pelo exército vermelho em março de 1921.
A política dos bolcheviques durante a Guerra Civil, o chamado Comunismo de Guerra, revelara-se voluntarista, irrealista e desastroso. Semeara muitas ilusões sem abrir perspectivas. Impunha-se uma reviravolta. Por outro lado, a revolução internacional não acontecera e parecia muito claro que não adiantava sonhar com ela, pelo menos a curto prazo. A maioria, principalmente após a revolta de Kronstadt, compreendia a necessidade de mudanças. Elas tomariam a forma de uma Nova Política Econômica.
Segundo Cohen, ela começou "sub-repticiamente" e não como "plano predeterminado" (ps. 128 e 153). A principal novidade: garantia de liberdade de produção e de comércio para cerca de 25 milhões de pequenos camponeses, recém-convertidos em proprietários na revolução agrária. A intervenção do Estado se restringia à cobrança do imposto. Mais tarde, através de sucessivos decretos, as liberdades comerciais seriam ampliadas e consolidadas com a permissão de arrendar terras e tocar pequenas indústrias, mantendo assalariados etc. O Estado controlava os setores estratégicos: grandes empresas, indústria pesada, transportes, sistema bancário, comércio externo. Em fins de 1923, como observa Cohen, "estabelecera-se na Rússia Soviética um dos primeiros sistemas mistos da economia moderna" (p. 149).
A NEP era, sem dúvida, uma nova política, muito mais do que apenas "econômica". Mediante o afrouxamento dos controles econômicos, sobretudo no campo, dava uma trégua aos camponeses, desesperados e revoltados com as requisições forçadas e com as políticas coletivizantes do Comunismo de Guerra. Neste sentido, foi uma política de apaziguamento com o campesinato. Com a sua franqueza habitual, Lenin a apresentou como um "recuo" (p. 157). Assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político.
A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.
O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial (p. 188).
A pequena economia privada prosperava. Praticamente toda a produção agrícola estava sob controle camponês; 28% dos manufaturados e de 50% a 75% dos bens de consumo básico, eram produzidos por milhões de artesãos. O comércio estava, essencialmente, em mãos dos pequenos negociantes. Apesar das empresas estatais controlarem os centros dinâmicos da economia, mais de 80% da população "vivia e trabalhava sem estar sujeita ao controle do Partido Comunista ou do Estado" (ps. 301-302).
Os revolucionários reagiam ambiguamente à situação: satisfeitos com os resultados imediatos e com o afastamento dos perigos da fome e da revolta social, mas intranqüilos com a força ascendente da pequena economia privada. Afinal, a NEP era um triunfo dos bolcheviques ou dos "pequenos burgueses" em ascensão? Um triunfo da revolução ou da contra-revolução? Quem avançava, quem recuava? Mas, afinal, para que se fizera a revolução? Para isso tanto sacrifício? E o socialismo? E o comunismo? Como emancipar de fato a União Soviética do mercado internacional capitalista? Como fazer da URSS uma sociedade próspera e poderosa? Não se necessitava uma indústria pesada? Não era esta uma condição indispensável para um desenvolvimento econômico-social auto-sustentado? E também para garantir a soberania da "fortaleza do socialismo mundiall"? Os bolcheviques analisavam a conjuntura internacional, previam e temiam novas guerras imperialistas e não ignoravam que setores ponderáveis no mundo capitalista defendiam "cruzadas anticomunistas" radicais.
Os bolcheviques se dividiam nestas questões. Enquanto as luzes da ribalta clareavam os rostos crispados de Trotski, Stalin, Zinoviev, Kamenev, em luta pelo comando da sociedade, a polêmica central sobre os rumos do desenvolvimento social se polarizava em torno de Nicolai Bukharin e Eugeni Preobrajenski.
Os dois tinham sido partidários do Comunismo de Guerra e eram estreitamente ligados, já tendo inclusive elaborado em conjunto um manual de marxismo de grande sucesso na época: ABC do Comunismo. Mas viriam se tornar expoentes de propostas diversas.
Preobrajenski encarnaria a preocupação pelo desenvolvimento máximo das forças produtivas, pela construção prioritária de uma indústria de base. Para tal objetivo, fazia-se necessária uma "punção" no campesinato. Assim como o capitalismo passara por uma fase de "acumulação primitiva", o socialismo teria que obter os recursos para decolar. A Rússia revolucionária não podia contar com capitais internacionais. Restava-lhe como reserva, grande e inexplorada, o universo camponês. As teses de Preobrajenski eram relativamente cautelosas na previsão dos ritmos e da intensidade da intervenção sobre os camponeses, mas, certamente, tal política corresponderia ao abandono da NEP.
Bukharin trabalhou em sentido oposto. Defendia que a NEP deveria ser aprofundada e consolidada. Assim, deixaria de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes.
Tratava-se de mexer significativamente no núcleo do universo ideológico bolchevique. A viga-mestra do pensamento de Bukharin é a concepção da smychka, "colaboração na sociedade" (p. 230), ou, em outras palavras, aliança entre operários e camponeses. Esta aliança deveria ser mantida a qualquer preço: o poder revolucionário é proletário, dizia Bukharin, mas quem o sustenta são os mujiques.
Para garantir a industrialização, o financiamento viria dos lucros da indústria estatal, convidada a aumentar sua produtividade; do imposto de renda, que recairia prioritariamente sobre os camponeses mais abastados e os negociantes privados, da poupança voluntária, estimulada pela implementação de vários mecanismos.
Bukharin denunciava energicamente o emprego da violência nos métodos de coletivização no campo. Os camponeses deveriam ser persuadidos ao processo coletivo de produção por um longo e paciente trabalho de esclarecimento (p. 107). A forma intermediária definida entre a propriedade individual e a coletiva era a cooperativa, da qual, lenta e livremente, os camponeses iriam "ascender" para as formas coletivas de organização do trabalho.
Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias (p. 165). Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética: "Nossa economia existe para o consumidor, não o consumidor para a economia. O que faz a Nova Economia diferir da antiga é o fato de tomar como padrão as necessidades das massas" (P. 200).
A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas (p. 186), preservando interesses dos diversos setores sociais (p. 267), a paz civil, a legalidade, a moderação nos ritmos, a tolerância e a persuasão (p. 235).
A smychka tinha igualmente uma dimensão internacional. De fato, com o "adiamento" da revolução no Ocidente capitalista, os bolcheviques, desde o início dos anos 20, passaram a pensar na possibilidade de uma aliança da Revolução Russa com os povos coloniais. Lenin e o indiano Roy protagonizaram o primeiro grande debate sobre questão no 2º Congresso da Internacional Comunista.
Bukharin, desdobrando a reflexão, passará a falar do "campesinato mundial". A relação entre camponeses e operários, existente na URSS, refletia um fenômeno mundial, e era preciso fazer do poder soviético um defensor dos povos oprimidos e colonizados, da classe camponesa, da pequeno-burguesia (p. 174-175). Da mesma forma, as nações não russas deveriam receber toda consideração já que representavam, entre outras razões uma "ponte com os povos do Oriente" (p. 181).
Bukharin tinha críticas contundentes à alternativa defendida por Preobrajenski. Ela causaria um estatismo repressivo generalizado e sufocante. A supercentralização e a superburocratização desembocariam na "má administração organizada" (p. 36 1). Na melhor das hipóteses, propiciaria um ritmo máximo de crescimento em determinados setores, mas à custa de demandas da sociedade, da aliança operário-camponesa e da estabilidade do poder soviético. E desembocaria certamente no Estado-Leviatã, voraz e liberticida.
As novas concepções de Bukharin - sobre a aliança operário-camponesa como perspectiva estratégica e não como um expediente tático ou recuo - a idéia "evolucionária" de construção do socialismo -, o projeto de atingir o socialismo mediante o mercado controlado assim como suas propostas concretas sobre o desdobramento da NEP, conheceriam momentos de glória entre 1925 e 1927, sendo consagrados no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1927.
Neste período Bukharin é reconhecido como o teórico e principal formulador da NEP. Articula-se num tandem imbatível com Stalin (Bukharin formula e Stalin organiza) e destrói as oposições agrupadas em torno de Trotsk, Zinoviev e Kamenev.
Entretanto, já desde meados de 1927, acumulavam-se problemas para a NEP. Não se confirmavam as previsões estatais sobre os montantes de grãos para exportação e abastecimento das cidades. Os camponeses, descontentes por não encontrarem no mercado as manufaturas necessárias, simplesmente não escoavam sua produção.
Estocavam seus excedentes e começaram, inclusive, em certas regiões, a diminuir a área semeada. Noutras palavras, valiam-se da liberdade de comércio, inscrita na NEP. Assim, configuravam-se tensões significativas, entre Estado e camponeses.
Os problemas foram apenas aflorados no XV Congresso, já que a fração Bukharin-Stalin interessava-se mais em varrer a oposição do mapa do que em discutir a tempestade iminente.
Mas eram contradições demasiadas para ficar embaixo do tapete. Assim, em janeiro de 1928, o Bureau Político do PCUS, a mais alta instância dirigente do país, adota "medidas extraordinárias" para obrigar os camponeses a entregar os grãos de que o Estado necessitava. Voltava, portanto, a política das requisições forçadas, odiada pelos camponeses e formalmente rejeitada pela NEP.
Em fins de 1929, encerrando uma política de vaivém, de zigue-zagues estonteantes, que refletiam as hesitações do partido e, principalmente, a resistência de Bukharin e seus aliados (A. Rykov, chefe do Governo, e M. Tomski, presidente dos sindicatos russos), o Estado soviético e os comunistas caminharam para a decisão da coletivização à força, para a expropriação dos camponeses privados, ou seja, para a destruição da aliança operário-camponesa e para o abandono da NEP.
Doravante, o embate seria polarizado por Bukharin, de um lado, e por Stalin, de outro. As concepções e propostas de Preobrajenski, acerca da acumulação socialista primitiva, seriam retomadas por Stalin em escala alucinante - "caricatural", como diria Trotsk. Por ironia sinistra, o arquiinimigo de Trotski se tornava adepto da perspectiva da industrialização, para cuja implementação contaria com inúmeros ex-aliados do seu inimigo. Alguns, como o próprio Preobrajenski, seriam trazidos do exílio interno, em que se encontravam, para ajudar na execução dos famosos Planos Qüinqüenais.
Mesmo em desgraça, Bukharin ainda travará batalhas de retaguarda até ser expulso do PCUS, preso, condenado e assassinado (1937-1938). A rigor, lutará até o fim, transformando seu julgamento num derradeiro libelo contra o sistema triunfante e legando, com sua mulher antes de morrer, uma carta que, mais tarde, será divulgada.
A recuperação da trajetória de Bukharin, realizada brilhantemente por Cohen, até 1927, deixa em parte a desejar, quando o autor trata da luta entre Stalin e Bukharin, de 1927 a 1929, e, sobretudo, do período subseqüente até a morte do dirigente comunista.
A meu ver, não se esclareceram as razões políticas do triunfo de Stalin, nem, muito menos, os fundamentos históricos e sociais da derrota da linha de Bukharin. Em certos momentos, o autor é seduzido pela idéia, tão própria à historiografia trotskista, de que Stalin venceu porque soube dominar a máquina partidária. Nesta linha de argumentos, a estrutura orgânica se ergue como um espectro com vida própria, insolitamente despolitizado e que tritura as oposições de modo inapelável. Stalin é satanizado e, como um monstro de astúcia e frieza, de sabedoria incontestável, desembaraça-se de inimigos e ex-aliados. Um autêntico gênio do mal.
Porém, felizmente, o próprio autor reconhece que não "se pode exagerar o poder organizativo de Stalin em 19288" (p. 368). De outro lado, também reconhece que "era claramente perceptível que os grupos de opinião mais fortes do partido se mostravam cada vez menos pacientes em relação às prédicas cautelosas (de Bukharin) e cada vez mais receptivos ao culto (... ) à tradição heróica do bolchevismo" (p. 371).
Aqui o autor apenas aflora um fator crucial da derrota de Bukharin. Trata-se do universo ideológico dos bolcheviques, aliás, tributário em grande medida das tradições social-democratas anteriores à Grande Guerra.
Bukharin, apesar de suas propostas inovadoras, pertence a este universo. Dele fazem parte idéias messiânicas sobre a revolução, a classe operária e o partido de vanguarda (necessariamente único), desvalorização histórica e estrutural do papel dos camponeses na revolução, a concepção cientificista-produtivista da história e do desenvolvimento social. Com tal universo Bukharin não rompeu e nem teve, jamais, este propósito.
Quando Bukharin, entre 1927 e 1929, tenta se insurgir contra Stalin, encontra-se preso nas teias destas concepções e valores políticos. Na verdade, também ele havia cultivado atitudes e políticas autoritárias (ps. 230, 270 e 299). Também ele havia sido impiedoso com seus adversários políticos de fora e de dentro do Partido Comunista. Não realizam uma reflexão autocrítica efetiva, acerca das suas concepções, no período do Comunismo de Guerra, marcadamente catastróficas, obreiristas, autoritárias e messiânicas. E havia consentido recuos em 1925-1926 que iriam fortalecer os partidárias dos planos centralizados e superindustrializantes. Daí sua impressionante timidez em recorrer ao conjunto do partido e à sociedade, se deixando encurralar no interior do Bureau Político. Daí suas humilhantes e sucessivas retratações (ps. 378, 394 e 399) que enfraqueceram, Progressivamente, suas chances de apresentar uma alternativa ampla ao stalinismo.
Este retrospecto não tenciona desmerecer ou minimizar o papel de Bukharin, mas compreender algumas razões da sua derrota para Stalin. Este soube, de fato, encamar como ninguém a consciência média bolchevique, os valores hegemônicos no interior do partido, os frutos de um tempo duro de terríveis enfrentamentos. Por mais astuto e endemoninhado que fosse, com rabo, chifres e pés invertidos, Stalin não venceria esta formidável batalha política, se não contasse com maioria ampla do partido a seu favor.
O socialismo em um só país (defendido inclusive por Bukharin que, por sinal, foi o primeiro a falar nisto, como informa o próprio Cohen), a mitologia do partido único, o messianismo obreirista e a correspondente subestimação das outras classes, principalmente o campesinato, São valores fundamentais entre outros já referidos, enraizados na tradição bolchevique.
Bukharin formulou políticas e concepções que, uma vez aprofundadas, provavelmente, poriam em xeque tais valores. Mas não foi capaz, ou não teve ocasião histórica, de empreender tamanha tarefa. E se o fizesse é praticamente certo que seria derrotado de maneira ainda mais inapelável.
Entretanto, teve o mérito de representar uma alternativa ao modelo stalinista. E Stephen Cohen teve o grande mérito de ser um dos historiadores que resgatou do esquecimento esta história. Contribuiu, deste modo, para esclarecer as divergências reais da polêmica que sacudiu a URSS nos anos 20, como para desvendar os mitos que reservam um lugar central à polêmica entre Stalin e Trotski, obscurecendo o parentesco fundamental entre stalinismo e trotskismo.
* Daniel Aarão Reis é historiador
Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991
Abaixo o bolchevismo!!! Viva a luta pelo socialismo democrático!!!
A URSS e seus satélites eram Estados operários degenerados, onde a a burocracia, na condição de “camada social privilegiada e dominante”, conseguiu expropriar politicamente o proletariado. É errado afirmar que o chamado "socialismo real" se tratava de uma forma de capitalismo de Estado, pois não havia propriedade privada dos meios de produção, distribuição e troca, muito menos mercado. Como disse Trotsky, a burocracia, ao contrário da burguesia, não podia dispor dos meios de produção enquanto propriedade privada. Portanto é burrice falar em capitalismo de Estado em relação ao "socialismo real". O filósofo István Mészáros afirma que eram “sociedades pós-revolucionárias”, possuindo traços anticapitalistas, inicialmente voltadas ao socialismo, mas com regressões e acomodações ao sistema produtor de mercadorias em escala internacional.
Mészáros diferencia capital de capitalismo e defende que o sistema soviético não poderia ser caracterizado enquanto “capitalismo de Estado”, mas como uma sociedade dominada pelo capital: permanece intactas a divisão do trabalho e a estrutura de comando do capital.
Pois bem, como se deu a burocratização que degenerou o socialismo, possibilitando a essas sociedades superarem o capitalismo, mas não a lógica do capital? Em primeiro lugar, foi a ausência de democracia política, pois Lenin ao reinterpretar a ditadura do proletariado como ditadura do partido comunista, estabeleceu um regime onde os trabalhadores não possuiam direito algum, a não ser o de obedecer o partido como se fosse rebanho. Em "A Revolução Russa", a revolucionária marxista Rosa Luxemburgo constatou esse fato:
"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Rosa Luxemburgo também deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos que seja obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.
"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe".
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")
Rosa deixa claro que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto, não pode ser uma receita pronta que o partido comunista tira do bolso e a aplica com energia.
“A teoria da ditadura, segundo Lenin-Trotsky, admite tacitamente que a transformação socialista é uma coisa para o qual o partido da revolução tem no bolso uma receita inteiramente pronta e que se trata senão de aplicá-la com energia. Infelizmente – ou felizmente, se quiserem – não é assim. Bem longe de ser uma soma de prescrições feitas, que não teriam mais do que ser aplicadas, a realização prática do socialismo como sistema econômico, jurídico e social é algo que fica completamente envolvido nas brumas do futuro. O que temos agora em nosso programa não são mais do que alguns marcos orientadores que indicam a direção geral a seguir – indicações aliás, de um caráter sobretudo negativo. Sabemos mais ou menos o que preliminarmente devemos suprimir no sentido de deixar o caminho livre para a economia socialista. Ao contrário, nenhum programa de partido, nenhum manual de socialismo pode indicar de que espécie são as milhares de grandes e pequenas medidas concretas que têm em vista introduzir os princípios socialistas na economia, no direito, em todas as relações sociais.”
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Os bolcheviques formaram um governo exclusivo, onde havia apenas uma pequena parcela de socialistas revolucionários de esquerda, que mesmo assim romperam com o governo em virtude do Tratado de Brest-Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial. E diga-se de passagem, Lenin e os bolcheviques haviam prometido uma paz sem anexações, mas não foi o que fizeram, portanto os socialistas revolucionários de esquerda não estavam tão errados ao critica-los. E mais, como excluir os mencheviques, em especial sua ala internacionalista?? Martov havia se oposto a Primeira Guerra Mundial, havia lutado para que os mencheviques rompessem com o governo provisório, conquistou a maioria durante a Revolução de Outubro, mas foi tratado como se fosse "lixo da história". É isso a ditadura do proletariado??? Os bolcheviques eram donos da verdade????
Em junho de 1918, os socialistas revolucionários de esquerda promoveram uma rebelião, que não era contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz em relação a Alemanha. Essa rebelião fracassou, felizmente, pois era loucura querer retomar a guerra contra os alemães, mas isso era motivo para os bolcheviques os perseguirem como se fossem contra-revolucionários? E pior, era motivo para proibir todos os partidos, com excessão do deles??? Os sovietes e os sindicatos já vinham se tornando correias de transmissão do Partido Bolchevique, isso consolidou esse processo. E mais, não vamos nos esquecer do golpe contra a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918, que havia sido eleita democraticamente e nada tinha de burguesa, até porque os socialistas revolucionários haviam conquistado 41% dos votos, e os bolcheviques conquistaram 25% dos votos. Somente nisso já era uma maioria de 66% para a esquerda socialista, se somar os votos de mencheviques, anarquistas e outros grupos de esquerda, se percebe que os liberais tiveram menos de 5% dos votos. Portanto essa assembléia, que não era burguesa, pois era fruto de uma reinvindição antiga dos trabalhadores russos(inclusive dos bolcheviques), ainda tinha a seu favor o fatop de ser majoritariamente dominada pelos socialistas. Entretanto, como os bolcheviques não tinham essa maioria, foi natural que Lenin e os bolcheviques a dissolvessem. Eles não estabeleceram a ditadura do proletariado, até porque Lenin não acreditava na capacidade do proletariado exercer o poder após a revolução. Eles estabeleceram a ditadura do partido comunista, o partido é que devia possuir o poder. Por isso após dissolver a Assembléia Constituinte, não propuseram nenhuma alternativa democrática a ela, mas apenas os sovietes, que estavam sendo transformados em correias de transmissão do Partido Bolchevique, processo que se consolidou com a proibição dos outros partidos, incluindo aqueles que eram socialistas.
"Os sovietes funcionaram com alguma liberdade só até junho de 1918. Os jornais socialistas de oposição não duram muito mais do que isso. Os campos de trabalho forçado existem desde 1918-1919. Em 1918, e depois em 1920-1921, há greves importantes, reprimidas violentamente pelo regime."
(Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)
O historiador marxista Jacob Gorender, fundador do PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, preso e torturado durante a ditadura militar, figura destacada da esquerda petista, autor de "O Escravismo Colonial", não pode em hipótese alguma ser considerado um reformista, revisionista, centrista pequeno-burguês ou idiotices afins que os adeptos do bolchevismo usam para desqualificar quem não segue a cartilha dogmatica deles. Em "Marxismo Sem Utopia", Jacob Gorender afirma tudo o que escrevi:
"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.
O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)
A burocracia nasceu com a própria Revolução de Outubro, com o próprio modelo de socialismo estabelecido por Lenin e seus "camaradas" bolcheviques. Era já nasceu condenada a se degenerar, pois deturpando o marxismo, fizeram tudo aquilo que uma ditadura burguesa também iria fazer. Os bolcheviques chegaram ao extremo do absurdo ao promover o "terror vermelho", e não adianta vir com a babaquice que se tratava da violência revolucionária contra o opressor capitalista, pois é mentira. Era terrorismo puro e simples, como alias nos diz o filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano e hoje filiado a Refundação Comunista.
"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. Tal como ocorreu, precisamente, em Budapeste, em 1956. E não só. Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos. Os tanques na Hungria nos abriam os olhos para uma violência que devíamos recusar, e no entanto foi apregoada e inscrita nas nossas bandeiras. (...)
Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã."
(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])
O caráter anti-democrático do bolchevismo pode ser constatado nas palavras de Leon Trotsky, um dos principais revolucionários bolcheviques.
“A verdade é que, em regime socialista, não haverá aparelho de coerção, não haverá Estado. O Estado se dissolverá na comuna de produção e de consumo. Entretanto, o caminho do socialismo passa pela tensão mais alta da estatização. E é exatamente este período que atravessamos. Assim como um lampião, antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, a forma mais impiedosa de governo que existe, um governo que envolve, de maneira autoritária, a vida de todos os cidadãos. É essa bagatela, esse pequeno grau na história que [...] o menchevismo não viu, e foi isto o que lhe fez tropeçar”
(Leon Trotsky; "Terrorismo e Comunismo")
Ao afirmar que a ditadura do proletariado é a forma mais impiedosa de governo que existe, Trotsky está legitimando os crimes hediondos do "terror vermelho" e pior, dando sinal verde para o terror ainda mais criminoso, hediondo e desumano da era stalinista, até porque para voltar à imagem, e se o lampião em vez de se apagar não só continuasse aceso mas pusesse fogo no mundo? Foi o que aconteceu com o stalinismo.
Os anarquistas não eram contra-revolucionários, muito pelo contrário, os guerrilheiros anarquistas do Exército Negro, liderado por Nestor Makhno, foram fundamentais para a derrota dos contra-revolucionários brancos comandados pelo general Denikin e pelo Barão Wangrel, no sul da Ucrânia. E mesmo assim foram massacrados pelo Exército Vermelho. Em março de 1921, os marinheiros do soviete de Kronstadt(revolucionários de primeira hora, que lutaram como vermelhos durante a guerra civil), se rebelaram contra a ditadura bolchevique. Mas ao contrário do que a propaganda comunista afirma, os revoltosos eram revolucionários que exigiam o estabelecimento de uma democracia socialista, com a legalização de todos os partidos socialistas, eleições livres, liberdade de imprensa, sindicatos independentes e com o poder sendo exercido pelos sovietes e não por nenhum partido. O Exército Vermelho reprimiu brutalmente essa rebelião.
"Muitos dizem que o episódio de Kronstadt tinha de ser reprimido, visto que a Rússia estava cercada. Mas o fato é que Kronstadt era a vanguarda da revolução e fornecia a guarda pessoal para o palácio de Lênin, depois de 1917. Kronstadt desejava o quê? Desejava sovietes independentes do partido e do Estado, no sentido original da idéia de soviet: uma autoridade suprema que não se subordina a ninguém. A repressão aos radicais de esquerda na Revolução Russa está ligada a outro processo, que é o surgimento de uma política sem ética, a institucionalização da calúnia como arma política. Na época, Makhno fora acusado de anti-semita, perseguidor de judeus; os marinheiros de Kronstadt, de agentes do capitalismo ocidental. Mentira. Basta conhecer os Izvestia de Kronstadt, jornais publicados no Ocidente, para constatar que as reivindicações eram pró-socialismo – com liberdade política – e contra a ditadura do partido único e seu fetichismo."
(MAURÍCIO TRAGTENBERG; em "Rosa Luxemburgo e a Crítica aos Fenomênos Burocráticos")
Em 1920-21, a "Oposição Operária" denunciou a burocratização no partido e no Estado soviético, mas foram calados por Lenin, Trotsky e cia, quando no X Congresso do partido, foram proibidas as frações sobre o risco de expulsão. A proibição de frações e a repressão à rebelião de Kronstadt são exemplos de opções políticas que fortaleceram a centralização e a burocracia.
Portanto é hipocrisia os trotskistas ficarem afirmando que a URSS e demais Estados socialistas eram Estados operários degenerados, como se não defendessem justamente aquilo que promoveu essa degeneração. E pior, Trotsky não somente defendeu as deturpações que Lenin promoveu, mas defendeu muitas das políticas degeneradas que Stalin realizou, como a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos.
"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos, a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP, propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo, recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado, subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."
(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a Revolução")
Entre 1920 e 1921, Trotsky assume uma posição "ultra-bolchevique", defendendo a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos. O projeto de militarização do trabalho, Trotsky começou a pôr em prática no setor dos transportes, de que se tornara o responsável. Quanto a discussão sobre os sindicatos. Trotsky queria integrar os sindicatos ao Estado e fazer com que eles realizem aquilo que era a "sua verdadeira vocação" no interior do "Estado operário", isto é, pôr-se a serviço da produção. Por isso mesmo, ele é favorável às nomeações, em lugar de eleições, para o postos sindicais. "No Estado operário – afirma Trotsky – (...) a existência paralela de organismos econômicos e de grupos sindicais não pode ser tolerada senão a título transitório (...) É preciso que os pensamentos e as energias do partido communista, dos sindicatos e dos organismos governamentais tendam a amalgamar os organismos econômicos e os sindicatos num futuro mais ou menos imediato" (Leonard Shapiro; in "Les Origines de l'Absolutisme Communiste, les bolcheviks et l'opposition, 1917-1922", p. 231).
Lenin se opõe a Trotsky tanto a propósito de um ponto como do outro, embora, no primeiro caso, não imediatamente. A propósito da pretensa função essencialmente "produtiva" dos sindicatos no interior do "Estado operário", Lenin objeta com bastante lucidez : "(...) Um Estado operário é uma abstração. Na realidade, temos um Estado operário, primeiro com a particularidade de que é a população camponesa e não operária que predomina no país e, segundo, que é um Estado operário com uma deformação burocrática" (Pierre Broué; in "Trotsky, democracy and totalitarianism", p. 286). Mas não nos iludamos com o democratismo de Lenin. Se ele se opôs ao "ultra-bolchevismo" de Trotsky, a diferença entre os dois não era tão grande. Se o que afirma Leonard Shapiro é verdade (e não há razão para duvidar disso) nem Lenin e nem mesmo a chamada "Oposição Operária" propunham "dar aos operários o direito de eleger livremente os seus representantes e, em consequência, escolhê-los entre os partidos que desejassem" ( Leonard Shapiro; in "Les Origines de l'Absolutisme Communiste, les bolcheviks et l'opposition, 1917-1922", p. 237 - 238). A disputa não era entre sindicatos livremente eleitos e o Partido, mas entre a direção do partido e a sua fração sindical. Por isso, a vitória da posição de Lenin não significou muito. De resto, como já afirmei, no final do X congresso do Partido, que se reune no momento da revolta de Kronstadt, Lenin apresenta duas moções, que foram aprovadas, uma condenando um "desvio sindicalista e anarquista" (referência à "Oposição Operária") e outra proibindo as frações e plataformas particulares no interior do partido, sob pena de exclusão.
O regime bolchevique já era burocratico, e com essa cultura autoritária e estatista, era natural que essa burocratização assumisse as proporções que assumiu com o stalinismo. Superaram o capitalismo, mas não a lógica do capital, e nem poderiam faze-lo diante de todos esses fatos. O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)
Portanto não basta ser anti-stalinista, é preciso ser anti-bolchevique. A esquerda precisa reconhecer os seus erros, condenar os seus crimes, é rompendo com o dogmatismo, refundar o socialismo, resgatando o melhor do pensamento marxista e da tradição do movimento operário. Fazer autocritica, corrigir os erros, romper com o dogmatismo, refundando o socialismo segundo a realidade do século XXI, é um dever de todo marxista.
"Os gulags não foram uma fábula, mas não vejo por que hoje deveria assumi-los no meu patrimônio, no meu sentimento de comunista, agora que não tenho nem mesmo o álibi de ‘não saber’. Ao lado desta derivação, o movimento comunista no século XX arrastou classes sociais inteiras para a luta política e social, e grande parte do crescimento da democracia, pelo menos na Europa, está ligada a esta participação, a esta batalha. Por que não deveria revisitar e reexaminar nossa história, ver as luzes e as sombras? Enfraqueço-me? Penso exatamente o contrário: a autocrítica me reforça. O arrependimento é uma palavra que não pertence à minha linguagem, tem um sabor de sacristia. Mas, se arrepender-se significa reconhecer os erros, então não tenho medo desta palavra. Tentar compreender onde erramos me ajuda a viver, a me sentir mais forte, a olhar para a frente. A reconstruir o passado para dar uma indicação sobre o futuro: pode-se aprender com os erros. E no horizonte futuro resta a necessidade de uma resposta às exigências, decisivas, de sentido da vida, de horizonte, num mundo vergado como então, como em todo o século XX, pela maldição de uma guerra. Passei uma vida batendo-me por coisas essenciais: o direito de se alimentar, crescer, se instruir, se cuidar, ser criativo no próprio trabalho. O movimento operário, no curso de um século, cresceu no contexto da reivindicação de necessidades fundamentais, a começar pelo grande tema do resgate do trabalho, e da exigência destas coisas nasceu a ideologia comunista, com seus erros, suas culpas, seus delitos. A violência armada, infelizmente, teve um lugar na história e na ideologia do movimento comunista. Em nome desta violência, o homem foi posto sob cadeias, quando nós o queríamos livre. Nossa derrota nasceu também daqui. Mas aquelas exigências permanecem presentes, continuam a ser atuais, e alguém terá de responder a elas..."
(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
Vamos acertar o ponto. 40 horas já!
Vamos acertar o ponto. 40 horas já!
Carlos Grana
O grande desenvolvimento da ciência e do pensamento da humanidade acelerou o tempo das transformações tecnológicas. O mundo nunca viu tantas evoluções, tantas transformações, como hoje se vê. O ser humano parece invencível, chegou à Lua, codificou o Genoma, navegou todos os mares e o ultrapassou a velocidade do som.
A automação tem sido um grande fator do aumento da produtividade e se impôs como norma para o desenvolvimento das indústrias. Há empresas em que o departamento de pesquisa e desenvolvimento tem orçamentos maiores que a produção.
Como efeito, ao longo dos anos, o investimento em inovação tecnológica e organizacional tem como um dos seus resultados a liberação do tempo de trabalho. E como esse ganho de tempo é dividido em nossa sociedade? Do lado dos trabalhadores sabemos: com o desemprego de uns e a sobrecarga de trabalho de outros.
Desde 1998 até o ano de 2008 a produtividade do trabalho cresceu cerca de 80% e esse ganho não foi repartido com os trabalhadores ou com a sociedade. E por outro lado, apesar do crescimento da Taxa de Ocupados durante o governo Lula, ainda há um contingente de 3,29 milhões de desempregados (PED/DIEESE).
A Confederação Nacional dos Metalúrgicos e a Central Única dos Trabalhadores defendem a redução da jornada como uma grande estratégia de distribuição de renda, de aumento dos postos de trabalho e da elevação da qualidade de vida para todos os brasileiros. É uma forma de gerar desenvolvimento, combatendo a pobreza e a concentração de riqueza onde todos ganham, trabalhadores e empresários. Mais que isso, a redução da jornada de trabalho é uma questão de justiça social no Brasil, país que tem uma das maiores concentrações de renda do mundo.
A Confederação Nacional da Indústria contabiliza que o custo médio da mão de obra para a produção é de 22%, isto quer dizer que de todos os gastos com a fabricação de um bem, pouco mais de um quinto representa os gastos com os trabalhadores. Porém, uma redução de 9,09% da jornada (de 44h para 40h) - representaria uma ampliação de apenas 1,99% do custo das empresas. Ao passo que o aumento do emprego formal representa aumento da arrecadação do Estado e aumento do mercado consumidor, pode-se dizer que este custo seria um investimento de médio e longo prazo, que retornaria em crescimento do mercado interno brasileiro.
Do ponto de vista do trabalhador a redução da jornada de trabalho está longe de ser um luxo, já que ela é uma das maiores do mundo - 44h semanais ou 2.112 horas/ano. Por exemplo, na Alemanha a jornada é de 1.428 horas/ano, no Japão são 1809 horas/ano, na Itália 1619 horas/ano e na Espanha 1807 horas/ano (OCDE, 2003). Isto demonstra que a redução da jornada não implica em perda de competitividade, já que estes países detêm economias desenvolvidas, dinâmicas e altamente competitivas.
Os baixos salários no Brasil elevam ainda mais a carga horária de trabalho, já que algo entre 40% e 60% de trabalhadores realizam horas extra com o objetivo de complementarem suas remunerações (PED/DIEESE). A legislação que regula a hora extra no Brasil é insuficiente e a simples limitação dessa prática tem um potencial de geração de 1 milhão de postos de trabalho.
Apesar disso, o movimento que tem ocorrido no Brasil é o contrário: o tempo de trabalho total além de aumentar em função da hora extra e da flexibilização ocorrida principalmente na década de 90, está cada vez mais intenso em função das diversas inovações técnico-organizacionais implementadas pelas empresas como a polivalência, o just-in-time, a concorrência entre os grupos de trabalho, as metas e a redução das pausas.
A intensificação da jornada de trabalho tem cada vez mais acometido os trabalhadores com doenças como estresse, depressão e lesão por esforços repetitivos, custo com o qual a sociedade tem que arcar. Do ponto de vista social, a redução da jornada de trabalho possibilitaria aos trabalhadores mais tempo para o convívio familiar, para o lazer e para o descanso.
Num contexto de crescente demanda dos empregadores para que os trabalhadores se qualifiquem, a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários, em muito contribuiria para esse aumento da qualificação, pois o trabalhador estaria mais descansado e teria mais tempo para essa "segunda" jornada.
A combinação dos fatores positivos que essa medida pode proporcionar possibilitaria a geração de um círculo virtuoso na economia: diminuição no desemprego - aumento da demandada - aumento da produtividade do trabalho - aumento da competitividade - diminuição dos gastos sociais - aumento da arrecadação tributaria - crescimento econômico - melhoria da distribuição de renda - redução dos acidentes e doenças do trabalho - aumento da qualificação do trabalhador.
E finalmente, além da geração de empregos e da melhoria da qualidade da mão de obra brasileira, a redução da jornada de trabalho possibilita ao trabalhador - produtor das riquezas do Brasil e do mundo - trabalhar menos e viver mais. Há de fundo nesta discussão um debate sobre o tipo de sociedade, de economia e trabalho que queremos.
Carlos Grana é presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT).
Carlos Grana
O grande desenvolvimento da ciência e do pensamento da humanidade acelerou o tempo das transformações tecnológicas. O mundo nunca viu tantas evoluções, tantas transformações, como hoje se vê. O ser humano parece invencível, chegou à Lua, codificou o Genoma, navegou todos os mares e o ultrapassou a velocidade do som.
A automação tem sido um grande fator do aumento da produtividade e se impôs como norma para o desenvolvimento das indústrias. Há empresas em que o departamento de pesquisa e desenvolvimento tem orçamentos maiores que a produção.
Como efeito, ao longo dos anos, o investimento em inovação tecnológica e organizacional tem como um dos seus resultados a liberação do tempo de trabalho. E como esse ganho de tempo é dividido em nossa sociedade? Do lado dos trabalhadores sabemos: com o desemprego de uns e a sobrecarga de trabalho de outros.
Desde 1998 até o ano de 2008 a produtividade do trabalho cresceu cerca de 80% e esse ganho não foi repartido com os trabalhadores ou com a sociedade. E por outro lado, apesar do crescimento da Taxa de Ocupados durante o governo Lula, ainda há um contingente de 3,29 milhões de desempregados (PED/DIEESE).
A Confederação Nacional dos Metalúrgicos e a Central Única dos Trabalhadores defendem a redução da jornada como uma grande estratégia de distribuição de renda, de aumento dos postos de trabalho e da elevação da qualidade de vida para todos os brasileiros. É uma forma de gerar desenvolvimento, combatendo a pobreza e a concentração de riqueza onde todos ganham, trabalhadores e empresários. Mais que isso, a redução da jornada de trabalho é uma questão de justiça social no Brasil, país que tem uma das maiores concentrações de renda do mundo.
A Confederação Nacional da Indústria contabiliza que o custo médio da mão de obra para a produção é de 22%, isto quer dizer que de todos os gastos com a fabricação de um bem, pouco mais de um quinto representa os gastos com os trabalhadores. Porém, uma redução de 9,09% da jornada (de 44h para 40h) - representaria uma ampliação de apenas 1,99% do custo das empresas. Ao passo que o aumento do emprego formal representa aumento da arrecadação do Estado e aumento do mercado consumidor, pode-se dizer que este custo seria um investimento de médio e longo prazo, que retornaria em crescimento do mercado interno brasileiro.
Do ponto de vista do trabalhador a redução da jornada de trabalho está longe de ser um luxo, já que ela é uma das maiores do mundo - 44h semanais ou 2.112 horas/ano. Por exemplo, na Alemanha a jornada é de 1.428 horas/ano, no Japão são 1809 horas/ano, na Itália 1619 horas/ano e na Espanha 1807 horas/ano (OCDE, 2003). Isto demonstra que a redução da jornada não implica em perda de competitividade, já que estes países detêm economias desenvolvidas, dinâmicas e altamente competitivas.
Os baixos salários no Brasil elevam ainda mais a carga horária de trabalho, já que algo entre 40% e 60% de trabalhadores realizam horas extra com o objetivo de complementarem suas remunerações (PED/DIEESE). A legislação que regula a hora extra no Brasil é insuficiente e a simples limitação dessa prática tem um potencial de geração de 1 milhão de postos de trabalho.
Apesar disso, o movimento que tem ocorrido no Brasil é o contrário: o tempo de trabalho total além de aumentar em função da hora extra e da flexibilização ocorrida principalmente na década de 90, está cada vez mais intenso em função das diversas inovações técnico-organizacionais implementadas pelas empresas como a polivalência, o just-in-time, a concorrência entre os grupos de trabalho, as metas e a redução das pausas.
A intensificação da jornada de trabalho tem cada vez mais acometido os trabalhadores com doenças como estresse, depressão e lesão por esforços repetitivos, custo com o qual a sociedade tem que arcar. Do ponto de vista social, a redução da jornada de trabalho possibilitaria aos trabalhadores mais tempo para o convívio familiar, para o lazer e para o descanso.
Num contexto de crescente demanda dos empregadores para que os trabalhadores se qualifiquem, a redução da jornada de trabalho sem redução dos salários, em muito contribuiria para esse aumento da qualificação, pois o trabalhador estaria mais descansado e teria mais tempo para essa "segunda" jornada.
A combinação dos fatores positivos que essa medida pode proporcionar possibilitaria a geração de um círculo virtuoso na economia: diminuição no desemprego - aumento da demandada - aumento da produtividade do trabalho - aumento da competitividade - diminuição dos gastos sociais - aumento da arrecadação tributaria - crescimento econômico - melhoria da distribuição de renda - redução dos acidentes e doenças do trabalho - aumento da qualificação do trabalhador.
E finalmente, além da geração de empregos e da melhoria da qualidade da mão de obra brasileira, a redução da jornada de trabalho possibilita ao trabalhador - produtor das riquezas do Brasil e do mundo - trabalhar menos e viver mais. Há de fundo nesta discussão um debate sobre o tipo de sociedade, de economia e trabalho que queremos.
Carlos Grana é presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT).
Ecos da violência
Ecos da violência
Valtenir Pereira*
O noticiário deste fim de semana foi marcado pela violência no Rio de Janeiro, que resultou em 25 mortes e a queda de um helicóptero da Polícia Militar. Todo o conflito ocorreu em virtude de um ataque de facções rivais no Morro do Macaco, oriundas das favelas Tabajaras, Morro São João, Mangueira, Jacarezinho e Alemão. O que parece estar distante e localizado nos grandes centros tem origem e solução no nosso próprio “quintal”.
Na noite de terça-feira (20), a Polícia Rodoviária Federal apreendeu em Primavera do Leste (MT) cinco fuzis 762, dois fuzis M1 calibre 30, 20 carregadores de fuzis e cinco mil munições para esses armamentos. Gravações da Polícia Civil do Rio de Janeiro comprovam a entrada de armas no país, sem nenhuma dificuldade, originarias da Bolívia, com destino às quadrilhas cariocas.
Todo o carregamento estava escondido na fuselagem de uma caminhonete F-100. O motorista, Vanderlei de Souza, afirmou à polícia que receberia R$ 10 mil para entregar o armamento a membros de uma facção criminosa no Rio.
Em minha atuação como parlamentar, sempre lutei para que nossa região fosse mais bem atendida, por servir justamente de “porta de entrada” para o tráfico de drogas e armas para outras regiões brasileiras. Só em Mato Grosso, existe uma fronteira “seca” de 700 quilômetros.
Como membro da Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados convoquei audiência pública para debater a fragilidade das fronteiras brasileiras, em especial, de Mato Grosso com a Bolívia, ocasião em que diversas autoridades nacionais tomaram, mais uma vez, conhecimento dos problemas oriundos do descaso com a segurança em nossas fronteiras. Na Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional apresentei, para 2009, uma emenda de comissão, apoiada pelo relator,senador Delcídio Amaral (PT-MS) no valor de R$ 15 milhões que foram contingenciados em virtude da crise econômica. Infelizmente, e não por nossa culpa, o contingenciamento impediu que o dinheiro fosse liberado na totalidade.
Os recursos deveriam ser usados na compra de helicópteros para fiscalização das fronteiras de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, entre outras ações de segurança e combate ao tráfico de drogas e armas. Dada a urgência da situação, continuamos lutando para reaver esses R$ 14 milhões junto ao Ministério da Justiça. Chegamos a uma situação limite, pois a segurança pública tem que ser encarada como prioridade. Investir na segurança da região de fronteira é a principal estratégia para o combate ao crime organizado.
Outra questão levantada por essa onda de violência no Rio de Janeiro diz respeito ao traficante Fabiano Atanásio, que liderou a invasão ao Morro do Macaco. Condenado por crime hediondo, em 2002, sob o argumento de apresentar bom comportamento, o traficante foi beneficiado com a progressão de regime para sair da cadeia, trabalhar e voltar para a prisão. Porém, ele fugiu. Hoje existem 14 mandados de prisão contra Fabiano.
Não é a primeira vez que criminosos, considerados de alta periculosidade, são beneficiados com o regime de progressão de pena. O caso do garoto Kaytto Guilherme, em Mato Grosso, demonstra o quanto a sociedade está vulnerável aos condenados por crimes hediondos que provoca grande repulsa social. Kaytto foi violentado e morto por Edson Delfino, pedófilo que foi beneficiado pelo regime semi-aberto. Colocado em liberdade, Delfino praticou o mesmo crime pelo qual foi condenado.
É urgente a mudança da legislação para evitar que novos crimes hediondos continuem a chocar a sociedade. Por essa razão, apresentei a Proposta de Emenda à Constituição número 364/2009, que ficou conhecida como “PEC Kaytto”. Essa proposição já está pronta para ser apreciada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal, com parecer favorável do deputado federal Ciro Nogueira (PP-PI).
A sociedade tem que demonstrar sua indignação e combater essa situação de violência que atinge a todas as classes sociais. Temos que concentrar os esforços para combater as organizações criminosas e toda a forma de violência que fere as famílias brasileiras.
(*)Valtenir Pereira é Defensor Público Licenciado e Deputado Federal (PSB/MT)
O DESENCANTO DE RUY BARBOSA
O DESENCANTO DE RUY BARBOSA
*Silvio Mendonça
Em 1914, em célebre discurso proferido no Senado da República, Ruy Barbosa proclamou o seu desencanto com a maioria dos políticos desta terra brasileira: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."
Passado quase um século, eu acompanho pela imprensa a seqüência de absolvições dos deputados envolvidos no escândalo do "mensalão", e volta mais uma vez em mim esse teimoso sentimento de desencanto de que falou o nosso notável Ruy. É uma sensação dolorosa, porque as esperanças definham e os sonhos se desvanecem nessa aridez de bons valores; e o homem sem sonhos e sem esperanças torna-se a figura triste de quem traz a alma acabrunhada, desiludida. Por isso temos que logo afastar esse tipo sentimento, e mantermos a luta serena e perseverante na trincheira de nossos valores éticos.
Mas é preciso romper essa estrutura que domina o Brasil, desde os tempos de Ruy! E precisamos fazê-lo em sua raiz, ou seja, no íntimo de cada um de nós, dando o exemplo da conduta reta e honesta; tendo orgulho de não se entregar à maré das vantagens fáceis porque sabe que, sobre o patrimônio material, ergue-se sempre o caráter forjado nas árduas batalhas em defesa da dignidade e das virtudes.
Cada um de nós deve cultivar o "bom pensamento", porque do pensamento é que nascem os "desejos", e destes é que resultam as "ações". As ações que se repetem formam "hábitos", e é o conjunto desses vários hábitos que forma o nosso "caráter". E no caráter, nesta marca indelével que se finca na nossa própria personalidade, repousa o inexorável caminho que traçamos para o nosso "destino", na obrigatória colheita do que plantamos.
Então, se o destino deve ser redirecionado, liberto de suas mazelas, mudemos antes de tudo a nossa maneira de pensar; olhemos mais as dores alheias, busquemos alívio ao sofrimento dos inocentes e puros, deixemos um pouco de lado as nossas intermináveis querências e desejos materiais. Aí teremos chance de começar a mudar a nossa sociedade, os nossos políticos (que nós elegemos!) e o destino do nosso País.
*Silvio Mendonça é juiz de direito aposentado, foi professor de Economia Política e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Unisantos. Atualmente é Conselheiro Fiscal do Diretório Nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
*Silvio Mendonça
Em 1914, em célebre discurso proferido no Senado da República, Ruy Barbosa proclamou o seu desencanto com a maioria dos políticos desta terra brasileira: "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."
Passado quase um século, eu acompanho pela imprensa a seqüência de absolvições dos deputados envolvidos no escândalo do "mensalão", e volta mais uma vez em mim esse teimoso sentimento de desencanto de que falou o nosso notável Ruy. É uma sensação dolorosa, porque as esperanças definham e os sonhos se desvanecem nessa aridez de bons valores; e o homem sem sonhos e sem esperanças torna-se a figura triste de quem traz a alma acabrunhada, desiludida. Por isso temos que logo afastar esse tipo sentimento, e mantermos a luta serena e perseverante na trincheira de nossos valores éticos.
Mas é preciso romper essa estrutura que domina o Brasil, desde os tempos de Ruy! E precisamos fazê-lo em sua raiz, ou seja, no íntimo de cada um de nós, dando o exemplo da conduta reta e honesta; tendo orgulho de não se entregar à maré das vantagens fáceis porque sabe que, sobre o patrimônio material, ergue-se sempre o caráter forjado nas árduas batalhas em defesa da dignidade e das virtudes.
Cada um de nós deve cultivar o "bom pensamento", porque do pensamento é que nascem os "desejos", e destes é que resultam as "ações". As ações que se repetem formam "hábitos", e é o conjunto desses vários hábitos que forma o nosso "caráter". E no caráter, nesta marca indelével que se finca na nossa própria personalidade, repousa o inexorável caminho que traçamos para o nosso "destino", na obrigatória colheita do que plantamos.
Então, se o destino deve ser redirecionado, liberto de suas mazelas, mudemos antes de tudo a nossa maneira de pensar; olhemos mais as dores alheias, busquemos alívio ao sofrimento dos inocentes e puros, deixemos um pouco de lado as nossas intermináveis querências e desejos materiais. Aí teremos chance de começar a mudar a nossa sociedade, os nossos políticos (que nós elegemos!) e o destino do nosso País.
*Silvio Mendonça é juiz de direito aposentado, foi professor de Economia Política e Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Unisantos. Atualmente é Conselheiro Fiscal do Diretório Nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB).
A CAVERNA DE PLATÃO
A CAVERNA DE PLATÃO
Frei Betto *
No livro VII de A República, Platão narra que Sócrates propôs a seus ouvintes imaginarem um grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar. Lá fora há uma fogueira, cujas chamas projetam dentro da caverna as sombras de quem passa diante da entrada. Os prisioneiros, que nunca viram o mundo exterior, julgam que as sombras e o eco das vozes são reais.
O capitalismo, em seus primórdios, produzia em função das necessidades humanas. Não se investia em algo que o consumidor julgasse desnecessário. A superprodução inventou a publicidade de modo a inverter o processo, já não é o consumidor que busca o produto, é o produto que se impõe ao consumidor.
O avanço tecnológico e o designer tornam a mercadoria descartável. Não basta ter um rádio. É preciso ter o novo rádio, de linhas arrojadas, formado menor, capaz de funcionar a pilha. Assim, graças à publicidade o supérfluo torna-se necessário.
Nessa sua fase neoliberal, em pleno advento da pós-modernidade, o capitalismo introduz o mercado como paradigma supremo. Se no período medieval o paradigma foi teocêntrico, e a fé figurava como rainha do saber; se no período moderno o paradigma antropocêntrico fez a fé ceder lugar à razão; agora o mercado não se interessa pelo homem religioso ou racional, interessa-se pelo consumista. E quanto menos razão, mais emoção, o que induz o consumidor a contemplar, embevecido, um novo computador ou os veículos expostos no Salão do Automóvel. Assim, o capitalismo alcança o nosso inconsciente.
Agora, de costas à concretude da existência e indiferentes à sua historicidade, tomamos as sombras por realidades. O sentido da vida desloca-se da fé (coração) e dos ideais (razão) para centrar-se nos objetos possuídos. Vive-se em função de bens finitos. Mesmo para o jovem morador da favela, o tênis de marca é mais importante que a escolaridade e a formação profissional.
A pessoa é o quem tem e ostenta, e não os valores e propósitos que assume. As aparências contam mais que o ser, e ainda que isso não seja verdade há o socorro miraculoso do marketing para convencer-nos de que faz bem à saúde o refrigerante descalcificador; imprime sedução a cerveja que alcooliza; concede status o carro luxuoso. Vale a pena votar no político safado revestido de ética!
Se os bens finitos superam os infinitos, e o desejo converge para o absurdo, e não para o Absoluto, não é de se estranhar que as frustrações sejam proporcionais às ambições. Todos invejam o alpinismo de seus ídolos incensados pela mídia, embora deles conheçamos apenas as sombras projetadas na tela da TV e das revistas, pois estamos irremediavelmente de costas para a porta da rua, convencidos de que o personagem representado por aqueles que exibem fama, poder e riqueza é mais real que as pessoas deles.
*Frei Betto é frei dominicano. Escritor, é autor de "Típicos tipos - perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.
Frei Betto *
No livro VII de A República, Platão narra que Sócrates propôs a seus ouvintes imaginarem um grupo de prisioneiros acorrentados numa caverna, sem nunca poder se virar. Lá fora há uma fogueira, cujas chamas projetam dentro da caverna as sombras de quem passa diante da entrada. Os prisioneiros, que nunca viram o mundo exterior, julgam que as sombras e o eco das vozes são reais.
O capitalismo, em seus primórdios, produzia em função das necessidades humanas. Não se investia em algo que o consumidor julgasse desnecessário. A superprodução inventou a publicidade de modo a inverter o processo, já não é o consumidor que busca o produto, é o produto que se impõe ao consumidor.
O avanço tecnológico e o designer tornam a mercadoria descartável. Não basta ter um rádio. É preciso ter o novo rádio, de linhas arrojadas, formado menor, capaz de funcionar a pilha. Assim, graças à publicidade o supérfluo torna-se necessário.
Nessa sua fase neoliberal, em pleno advento da pós-modernidade, o capitalismo introduz o mercado como paradigma supremo. Se no período medieval o paradigma foi teocêntrico, e a fé figurava como rainha do saber; se no período moderno o paradigma antropocêntrico fez a fé ceder lugar à razão; agora o mercado não se interessa pelo homem religioso ou racional, interessa-se pelo consumista. E quanto menos razão, mais emoção, o que induz o consumidor a contemplar, embevecido, um novo computador ou os veículos expostos no Salão do Automóvel. Assim, o capitalismo alcança o nosso inconsciente.
Agora, de costas à concretude da existência e indiferentes à sua historicidade, tomamos as sombras por realidades. O sentido da vida desloca-se da fé (coração) e dos ideais (razão) para centrar-se nos objetos possuídos. Vive-se em função de bens finitos. Mesmo para o jovem morador da favela, o tênis de marca é mais importante que a escolaridade e a formação profissional.
A pessoa é o quem tem e ostenta, e não os valores e propósitos que assume. As aparências contam mais que o ser, e ainda que isso não seja verdade há o socorro miraculoso do marketing para convencer-nos de que faz bem à saúde o refrigerante descalcificador; imprime sedução a cerveja que alcooliza; concede status o carro luxuoso. Vale a pena votar no político safado revestido de ética!
Se os bens finitos superam os infinitos, e o desejo converge para o absurdo, e não para o Absoluto, não é de se estranhar que as frustrações sejam proporcionais às ambições. Todos invejam o alpinismo de seus ídolos incensados pela mídia, embora deles conheçamos apenas as sombras projetadas na tela da TV e das revistas, pois estamos irremediavelmente de costas para a porta da rua, convencidos de que o personagem representado por aqueles que exibem fama, poder e riqueza é mais real que as pessoas deles.
*Frei Betto é frei dominicano. Escritor, é autor de "Típicos tipos - perfis literários" (A Girafa), entre outros livros.
Ruy Fausto
Declaração de Ruy Fausto, filósofo marxista, professor emérito da USP, na Conferência Caio Prado Jr, realizada nos dias 17,18 e 19 de agosto de 2007 em Brasília-DF
Em defesa de um projeto socialista e democrático
"Que perspectivas poderiam ter hoje, no Brasil, os projetos radicais revolucionários? Claro que as previsões históricas são difíceis, e a definição de objetivos vem sempre afetada por um certo grau de incerteza. Mas, se julgarmos pelo que se viu no século XX, colocar hoje suas fichas na revolução violenta é uma aposta altamente arriscada. As três revoluções "socialistas" mais importantes do século XX - a russa, a chinesa e a cubana - levaram aos piores resultados. Em primeiro lugar, elas custaram muito sangue e sofrimento. Para a primeira: coletivização forçada - mais ou menos 7 milhões de mortos -, terror e Goulag, mais uns 4 milhões ou 5 milhões de mortos, pelo menos etc.; para a segunda, além dos massacres dentro e fora do partido que começaram muito antes da vitória final, houve o chamado "grande salto para frente", que custou de 20 milhões a 30 milhões de mortos, a "revolução cultural", mais ou menos 1 milhão etc.; para a terceira: exílio de mais de 10% da população, repressão brutal de toda opinião dissidente, assassinatos políticos etc.
E tudo isso para desembocar em um capitalismo selvagem (China) ou mafioso (Rússia) ou em uma situação de miséria e colapso econômico (Cuba), que prenuncia também, a médio prazo, um retorno ao capitalismo. A acrescentar, nos três exemplos, a liquidação de todo movimento socialista-democrático e a desmoralização da idéia geral de "socialismo".
Porém os intelectuais que enveredam por essa via não se dispõem a extrair lições dessas experiências. Sua fé no "progresso social" é, à sua maneira, absoluta. Essa situação tem um contexto mais amplo, embora seja difícil dizer se se tratam de causas ou de efeitos. A melhor e mais importante literatura histórico-crítica sobre os "socialismos" do século XX nunca foi traduzida para o português, e os originais, em francês, inglês ou espanhol, pouco são vistos - e, menos ainda, lidos - no Brasil. Só para dar alguns exemplos: por que nenhum editor brasileiro se dispõe a publicar (pelo menos o final) "Cuba: The Pursuit of Freedom", de Hugh Thomas, o livro mais importante sobre a história de Cuba do século 18 à atualidade? Por que não se traduz a extraordinária autobiografia de Huber Matos, o quarto homem cubano da revolução, que passou 20 anos nas prisões de Fidel? Sobre a China, há 30 anos, sinólogos franceses e anglo-americanos aliam uma alta competência técnica a uma formidável lucidez na leitura da história chinesa do século 20. Por que nunca se traduziu -que eu saiba- nenhum dos seus livros (a começar, na ordem do tempo, pelos textos de Simon Leys)? Sobre a Rússia, traduziu-se mais. Penso, principalmente, no excelente "A Tragédia de um Povo", de Orlando Figes. Porém, quantos leram esse livro? Os leitores de Figes não são certamente tão numerosos quanto os dos ícones do pensamento terceiro-mundista, os da literatura gauchista -às vezes interessante, mas insuficiente - sobre o capitalismo ou os dos representantes nacionais do radicalismo revolucionário. O resultado se vê.
A relativa consolidação de Chávez na Venezuela (deixemos de lado, por ora, o caso Morales) não é motivo para modificar o julgamento crítico sobre os populismos e os totalitarismos. Há novidade, mas ela está em que os fatos mostram o que não é de modo algum uma boa notícia -que, na América Latina (em termos de força, simplesmente), as possibilidades do populismo não estão esgotadas; e revelam também, o que, em boa parte, é uma conseqüência, que o poder totalitário em Cuba terá, provavelmente, uma sobrevida maior do que se previa.
Convém lembrar que por trás da vitória dessas duas formas de autoritarismo está quase sempre a desmoralização dos poderes democráticos (democrático-capitalistas, embora) pela corrupção desenfreada da chamada "classe" política. Nesse sentido, para o conjunto da América Latina, incluindo o Brasil, as perspectivas são, de algum modo, inquietantes. A menos que a vitória de Bachelet no Chile incline a balança da esquerda latino-americana para outra direção.
Concluindo. Para além do modelo revolucionário e do modelo petista em plena crise, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático no Brasil, no contexto de uma política de esquerda antitotalitária para todo o continente. Apesar dos descaminhos de parte da social-democracia - mas não se trata de uma simples retomada da política social-democrata, mesmo nas suas melhores versões (sem falar em uma certa legenda nacional, que de social-democrata tem apenas o nome) -, o projeto socialista democrático está mais vivo do que se supõe."
(Ruy Fausto; em "A esquerda e o país". Artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 12/03/2006)
E tudo isso para desembocar em um capitalismo selvagem (China) ou mafioso (Rússia) ou em uma situação de miséria e colapso econômico (Cuba), que prenuncia também, a médio prazo, um retorno ao capitalismo. A acrescentar, nos três exemplos, a liquidação de todo movimento socialista-democrático e a desmoralização da idéia geral de "socialismo".
Porém os intelectuais que enveredam por essa via não se dispõem a extrair lições dessas experiências. Sua fé no "progresso social" é, à sua maneira, absoluta. Essa situação tem um contexto mais amplo, embora seja difícil dizer se se tratam de causas ou de efeitos. A melhor e mais importante literatura histórico-crítica sobre os "socialismos" do século XX nunca foi traduzida para o português, e os originais, em francês, inglês ou espanhol, pouco são vistos - e, menos ainda, lidos - no Brasil. Só para dar alguns exemplos: por que nenhum editor brasileiro se dispõe a publicar (pelo menos o final) "Cuba: The Pursuit of Freedom", de Hugh Thomas, o livro mais importante sobre a história de Cuba do século 18 à atualidade? Por que não se traduz a extraordinária autobiografia de Huber Matos, o quarto homem cubano da revolução, que passou 20 anos nas prisões de Fidel? Sobre a China, há 30 anos, sinólogos franceses e anglo-americanos aliam uma alta competência técnica a uma formidável lucidez na leitura da história chinesa do século 20. Por que nunca se traduziu -que eu saiba- nenhum dos seus livros (a começar, na ordem do tempo, pelos textos de Simon Leys)? Sobre a Rússia, traduziu-se mais. Penso, principalmente, no excelente "A Tragédia de um Povo", de Orlando Figes. Porém, quantos leram esse livro? Os leitores de Figes não são certamente tão numerosos quanto os dos ícones do pensamento terceiro-mundista, os da literatura gauchista -às vezes interessante, mas insuficiente - sobre o capitalismo ou os dos representantes nacionais do radicalismo revolucionário. O resultado se vê.
A relativa consolidação de Chávez na Venezuela (deixemos de lado, por ora, o caso Morales) não é motivo para modificar o julgamento crítico sobre os populismos e os totalitarismos. Há novidade, mas ela está em que os fatos mostram o que não é de modo algum uma boa notícia -que, na América Latina (em termos de força, simplesmente), as possibilidades do populismo não estão esgotadas; e revelam também, o que, em boa parte, é uma conseqüência, que o poder totalitário em Cuba terá, provavelmente, uma sobrevida maior do que se previa.
Convém lembrar que por trás da vitória dessas duas formas de autoritarismo está quase sempre a desmoralização dos poderes democráticos (democrático-capitalistas, embora) pela corrupção desenfreada da chamada "classe" política. Nesse sentido, para o conjunto da América Latina, incluindo o Brasil, as perspectivas são, de algum modo, inquietantes. A menos que a vitória de Bachelet no Chile incline a balança da esquerda latino-americana para outra direção.
Concluindo. Para além do modelo revolucionário e do modelo petista em plena crise, fica o projeto de reconstrução de um movimento socialista democrático no Brasil, no contexto de uma política de esquerda antitotalitária para todo o continente. Apesar dos descaminhos de parte da social-democracia - mas não se trata de uma simples retomada da política social-democrata, mesmo nas suas melhores versões (sem falar em uma certa legenda nacional, que de social-democrata tem apenas o nome) -, o projeto socialista democrático está mais vivo do que se supõe."
(Ruy Fausto; em "A esquerda e o país". Artigo publicado na Folha de S. Paulo, edição de 12/03/2006)
Os 50 anos da Revolução Cubana
Cuba era uma colônia espanhola, mas foi conquistada pelos EUA em 1898, quando os estadunidenses derrotaram os espanhois na Guerra Hispanico-Americana. Cuba permaneceu ocupada pelos EUA até 1902, sendo liberada depois da aprovação de uma emenda à Constituição cubana que dava o direito, aos EUA, de invadir Cuba a qualquer momento em que os interesses econômicos dos EUA fossem ameaçados. A chamada Emenda Platt permaneceu mantendo Cuba um protetorado estadunidense até 1933.
Fulgêncio Batista, um militar mulato, assumiu o poder após liderar um golpe militar em 1933, e governou o país até 1944. A corrupção tomava conta de Cuba, e o capital proveniente do submundo ítalo-americano (a máfia dos EUA) financiava grande parte da economia cubana. Em 1952, o general Fulgêncio Batista liderou um novo golpe militar e reassumiu o poder, estabelecendo uma ditadura que era submissa aos interesses estadunidenses, inclusive 40% da produção açucareira da ilha era controlado diretamente pelo capital yankee. Isso gerou um grande sentimento de anti-americanismo na população cubana, e no dia 26 de julho de 1953, Fidel Castro - um advogado membro do Partido Ortodoxo - liderou um ataque ao quartel de Moncada. Frustada a tentativa, os rebeldes foram para a prisão e, em maio de 1955, depois de anistiados, foram para o exílio no México.
Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA, inclusive em 1958, havia um total de 500 prostitutas em Havana, sendo a indústria da prostituição a mais rentável da ilha. A prostituição, a corrupção e negociatas caracterizaram a era Batista, e, pouco a pouco, a classe média afastou-se do regime.
Fora de Cuba, Fidel e seu irmão, Raul Castro, conheceram o médico argentino Ernesto "Che" Guevara, e juntos organizaram o movimento 26 de julho, com o claro objetivo de voltar a Cuba a derrubar a ditadura de Batista. Compraram o iate Granma, que partindo do México com cerca de 80 revolucionários, dirigiu-se a Cuba para iniciar a revolução em 2/12/1956.
O desembarque dos revolucionários do iate Granma estava sendo esperado pelas tropas de Fulgênio Batista(o ditador cubano que era "capacho" dos EUA), e marcou-se por uma sangrenta luta que levou à morte a maior parte dos integrantes do movimento.
Fidel, Raul e "Che" conseguiram chegar à Sierra Maestra, de onde passaram a organizar os camponeses para a luta armada. Ao mesmo tempo, os rebeldes buscavam o apoio de setores da burguesia contrário à ditadura de Fulgêncio Batista e que acreditavam em um projeto nacionalista para Cuba, dentro do respeito à propriedade privada. Era assinado, então, o Manifesto de Sierra Maestra, que no ano seguinte, 1958, foi ampliado pela formação da Frente Cívico-Revolucionária Democrática, no qual a burguesia cubana concordava com a luta armada para depor Fulgêncio Batista.
Em outubro de 1958 teve início a "Marcha sobre Havana", que cai em mãos dos rebeldes em 1º de janeiro de 1959. Com a fuga do ditador, montou-se o Governo Provisório, tendo à frente o presidente Manuel Urrutia e o primeiro-ministro Miró Cardona, que no início era apenas reformista. O comandante Fidel Castro substituiu Miró Cardona no cargo de primeiro-ministro em 16 de fevereiro de 1959, e Miró Cardona tornou-se o embaixador de Cuba na Espanha.
São nacionalizadas empresas norte-americanas de petróleo e transporte, reformuladas as políticas de educação e saúde pública, suprimidos os latifúndios e realizada a reforma agrária.
A tensão entre a burguesia e as camadas populares se ampliam na medida em que essas consideravam as reformas precárias em relação às suas necessidades. Logo, o presidente Manuel Urrutia é substituído por Osvaldo Dorticós, o que levou à preponderância dos anseios populares.
As medidas reformistas foram suficientes para provocar o descontentamento norte-americano, que foi impondo uma série de medidas restritivas - como por exemplo o boicote ao açúcar cubano. No final de 1960, Miró Cardona e os setores da burguesia que haviam apoiado a revolução, se unem aos americanos no objetivo de derrubar o governo Fidel Castro. Os anticastristas liderados por Cardona são armados e treinados pela CIA(agência de inteligencia americana), e realizam em abril de 1961, a tentativa de invasão ao território cubano no malogrado desembarque à Baía dos Porcos.
As pressões norte-americanas, em meio à Guerra Fria, culminaram com a expulsão de Cuba da OEA, em 1962. Desse episódio, a URSS aproveita-se para enfraquecer as posições dos Estados Unidos e prometem instalar uma base de mísseis em Cuba, gerando um dos episódios mais tensos da Guerra Fria, quando navios americanos impedem a frota russa de chegar à ilha, em outubro de 1962.
Em troca de pretensa paz mundial, Estados Unidos e URSS assinam um acordo em que a URSS se compromete a não instalar bases de mísseis em Cuba e os Estados Unidos a não tentar invadir novamente a ilha. A partir de então, Cuba passa a vivenciar a primeira experiência socialista da América Latina.
Em 1963, foi criado o Partido Unificado da Revolução Socialista que, em 1965, foi substituído pelo Partido Comunista Cubano.
As conquistas sociais da revolução
A educação é controlada pelo Estado e a Constituição de Cuba determina que o ensino fundamental, médio e superior devem ser gratuitos a todos os cidadãos cubanos.
Em 1958, antes do triunfo da revolução, 23,6% da população cubana era analfabeta e, entre a população rural, os analfabetos eram 41,7%. Após a vitória da revolução, se realiza uma campanha nacional para alfabetizar a população e Cuba torna-se o primeiro país do mundo a erradicar o analfabetismo (Segundo dados do próprio governo). Hoje não há mais analfabetos em Cuba. Segundo o The World Factbook 2007 (1), publicado pela CIA, 99.8% da população cubana, acima de 15 anos, sabe ler e escrever. De acordo com os resultados obtidos nos testes de avaliação de estudantes latino-americanos, conduzidos pelo painel da Unesco, Cuba lidera, por larga margem de vantagem, nos resultados obtidos pelas terceiras e quartas séries em matemática e compreensão de linguagem. "Mesmo os integrantes do quartil mais baixo dentre os estudantes cubanos se desempenharam acima da média regional", disse o painel (2).
Em Cuba a prestação de serviços relacionados à saúde é totalmente gratuito, o que se espelha em seus indicadores padrão. A taxa de mortalidade infantil abaixo de 5 (probaliblidade de morrer antes dos 5 anos) em Cuba é 7, (índice só superado nas Américas pelo Canadá, onde é de 6; nos Estados Unidos é 8, e no Brasil é 33) (3) . A expectativa de vida ao nascer em Cuba é de 75 anos para os homens e de 79 para as mulheres; nos Estados Unidos é de 75/80 (4).
(1) The World Factbook — Cuba
(2) MARQUIS, Christofer. Cuba Leads Latin America in Primary Education, Study Finds. The New York Times, 14 de dezembro de 2001
(3) Probability of dying (per 1 000 live births) under five years of age (under-5 mortality rate) , 2005. Organização Mundial da Saúde
(4) Life expectancy at birth (years), 2005. Organização Mundial da Saúde
Entretanto é preciso lembrar que essas conquistas sociais da revolução não podem servir de máscara para esconder que em Cuba existe uma ditadura burocratica de partido único. Em Cuba não existe liberdade de expressão, e muito menos liberdade de imprensa. Quem pensa diferente do governo castrista pode perder o emprego e pior, ser preso. Se não bastasse isso, o regime castrista executa quem tenta fugir do país(como ocorreu em 2003, quando três sequestradores de um barco que tentavam fugir para os EUA, foram executados apenas duas semanas após serem presos. Mesmo dentro do capitalismo não se condenam seqüestradores à morte, especialmente se não houve mortes, e os prazos de defesa em geral são maiores).
Mesmo na educação, onde Cuba consegue indices invejados por nós, como ter erradicado o analfabetismo e garantir um ensino gratuito e de qualidade do nível fundamental ao nível superior, a discriminação educativa por razões políticas é um fato que ainda se mantém e deve ser condenado.
O historiador marxista Jacob Gorender, um dos mais importantes intelectuais da esquerda brasileira, deixa claro sua oposição ao regime de partido unico em Cuba.
"O regime ideal para Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 16)
Ditadura de partido unico, regimes totalitarios e burocratizados, não fazem parte daquilo que a filosofia marxista defende. Essas aberrações são oriundas do leninismo, também conhecido como bolchevismo, ou seja, são oriundas da concepção socialista desenvolvida por V.Lenin e demais revolucionários russos do histórico "Outubro de 1917", que deu inicio a degeneração do marxismo e abriu caminho para o surgimento da bestialidade stalinista, originando o finado "socialismo real", do qual a ditadura castrista é herdeira.
Sou defensor de um socialismo renovado, um socialismo com liberdade e democracia, por isso me oponho a ditadura castrista em Cuba. Me oponho aqueles que defendem acriticamente o regime castrista, confundindo a defesa da Revolução Cubana com a defesa do regime liderado por Fidel e seu irmão, Raúl Castro.
A esquerda precisa apoiar com todo empenho a Revolução Cubana, a sua luta contra o imperialismo, as suas conquistas sociais, sem contudo confundir isso com apoio a ditadura de partido unico existente em Cuba.
A renúncia de Fidel Castro em fevereiro de 2008, abriu claras perspectivas de reforma no socialismo cubano. No dia 28/02/08, o ministro das Relações Exteriores de Cuba, Felipe Pérez Roque, assinou na sede da ONU, em Nova York, dois tratados internacionais que ampliam as garantias de respeito aos direitos humanos no país. O governo de Raúl Castro suspendeu a proibição da venda de diversos artigos eletrônicos na ilha, como computadores e aparelhos de DVD, além de ter liberado o acesso a telefonia celular. Além disso, na Assembléia Nacional de Cuba está em discussão um projeto de lei que estabelece os direitos civis para homossexuais, bissexuais e transgenêros.
O governo cubano também decidiu ceder terras estatais ociosas a cooperativas e produtores privados, em medida destinada a impulsionar a produção de alimentos, café e fumo. Além disso, o governo cubano anunciou, no começo de junho de 2008, o prazo para a eliminação do igualitarismo salarial e a substituição do atual sistema por uma gestão na qual o pagamento é feito com base no rendimento e produtividade.
BBC Brasil - 31 julho, 2008
Raúl Castro marca dois anos no poder com reformas em Cuba
O presidente Raúl Castro completa dois anos à frente do governo de Cuba, um período que começou com o irmão do líder Fidel Castro conseguindo manter a estabilidade no país.
Raúl assumiu o cargo em 31 de agosto de 2006 e foi eleito pela Assembléia Nacional do Poder Popular (o Parlamento cubano) no dia 24 de fevereiro deste ano, assumindo oficialmente o cargo de presidente.
Entretanto, desde agosto de 2006, Raúl Castro conseguiu manter os rumos políticos do país, a população tranqüila no momento de transição, os americanos quietos com uma proposta de diálogo com os Estados Unidos e o próprio país funcionando.
Para conseguir tudo isto, Raúl Castro contou com o apoio de seu irmão e com sua própria habilidade para dividir responsabilidades.
Bases
Ao compreender que sua permanência no cargo de presidente não seria temporária, Raúl Castro começou a lançar as bases de seu governo.
O primeiro passo foi pedir aos secretários provinciais do Partido Comunista Cubano (PCC) a aos dirigentes de grandes empresas que enviassem suas críticas ao funcionamento do sistema em suas respectivas áreas de trabalho. E propostas concretas para a solução destes problemas.
Castro recebeu de volta uma avalanche de opiniões que refletiam as incoerências de um sistema econômico dirigido por critérios políticos, estruturado sobre a base de um modelo ideológico.
As mudanças teriam que ser profundas e, no dia 26 de julho de 2007, Castro fez o anúncio destas mudanças, pouco antes de iniciar um debate nacional que tornou públicas as críticas da população e proporcionou o apoio político que precisava para iniciar as transformações.
Mesmo com os mais ortodoxos tentando limitar o debate, Castro foi à televisão para avisar que não havia tema proibido.
A partir daí, toda a população começou a pedir mudanças. Surgiram protestos contra salários baixos, problemas de transportes, falta de moradias e a necessidade de centros de lazer.
No total, Raúl Castro recebeu 1,2 milhão de críticas, a maioria pedindo reformas econômicas que poderiam ser feitas dentro de um socialismo reformulado.
Reformas
Assim, Raúl Castro chegou ao dia 24 de fevereiro de 2008, quando foi eleito à Presidência pelo Parlamento, pronto para fazer as mudanças pedidas pelo povo: reforma agrária, melhorias salariais e a eliminação das proibições.
A reforma de maior alcance será a agrária. O plano é distribuir entre os cubanos 50% das terras cultiváveis e também haverá a mudança na estrutura da organização agrária do país.
Até hoje esta estrutura é baseada em propriedades estatais e 80% das terras cultiváveis de Cuba estão nas mãos destas propriedades.
Quando o processo de reforma chegar ao ponto máximo, 70% do total das terras estarão nas mãos de cooperativas e pequenos agricultores, alguns proprietários e outros usufruindo gratuitamente.
Além da entrega de terras, agências de notícias de outros países também relatam que foram abertas linhas de crédito para o início, ampliação ou continuidade da semeadura de lavouras.
E, com o fim da igualdade salarial - princípio pelo qual, por mais que se trabalhasse, o empregado não poderia ganhar mais - deve começar a recuperação do poder aquisitivo dos salários.
Redefinição
A justiça social que se pretendia com a política de teto salarial acabou diminuindo os incentivos ao trabalhador e, segundo Raúl Castro, beneficiou os "preguiçosos".
"Socialismo é igualdade de direitos e de oportunidades, não de renda", disse Castro.
Com este reconhecimento das diferenças, Castro desencadeou também outra medida: a eliminação de proibições como posse de celulares e eletrodomésticos, e de estadias em hotéis. Com isso, milhares de celulares, motos e aparelhos de DVD foram vendidos e 10 mil quartos de hotel foram reservados.
Isto significa mais renda para o Estado, que pode utilizar no setor de habitação e transportes.
E o transporte é o setor em que o governo conseguiu sua grande vitória. Centenas de novos ônibus foram comprados apenas para Havana, aumentando o número de passageiros diários de 450 mil para 846 mil.
Burocracia
Para todas estas reformas, Raúl Castro deve tentar neutralizar seus piores inimigos no momento: burocracia e ortodoxia.
O próximo grande passo - planejado para 2009 - deve ser o Congresso do PCC que, em sua qualidade constitucional de "órgão governante da sociedade", deverá avaliar e, portanto, institucionalizar, as reformas.
Além disso, Raúl Castro também enfrenta outros problemas como a apatia crescente da população e a imigração de jovens profissionais. E Cuba também está sendo prejudicada pelo aumento mundial no preço dos alimentos.
Sejam quais forem as soluções, deverão ser aplicadas com rapidez, para que a expectativa do povo não se transforme em desânimo.
"Se há algo que aprendemos bem é que o tempo passa depressa. Desperdiçá-lo com inércia ou indecisão é uma negligência imperdoável", disse Castro.
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/07/080731_raulcastrodoisanosfn.shtml
A esquerda socialista e democrática precisa apoiar essas reformas, fazendo pressão para que sejam ampliadas e promovam uma renovação completa do socialismo cubano, uma renovação que promova o estabelecimento de um Estado democrático e socialista de direito, com pluripartidarismo, sindicatos livres, direito de greve, imprensa livre, eleições livres, maior liberdade religiosa, etc. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, afinal, como disse a revolucionária Rosa Luxemburgo:
"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês [...]". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Leia o texto abaixo e reflita
As prisões de Cuba
Pietro Ingrao - Abril 2003
As notícias que chegam de Cuba são alarmantes e não permitem o silêncio. Em 3 de abril, ocorreram em diversos lugares da ilha processos contra 78 "dissidentes" ou — para usar palavras mais diretas — opositores do regime castrista. Somando as várias condenações infligidas a estes opositores, chega-se a centenas e centenas de anos de cárcere. São cifras espantosas. E, no caso destes processos, falar de rito sumário é um eufemismo um pouco ridículo.
Também não podemos nos enganar: é impossível que, nestes verdadeiros processos-relâmpago, tenham sido garantidos direitos de defesa elementares e tenha havido aquela prudência elementar, necessária, que, no entanto, é o tempero obrigatório quando se decide sobre a liberdade ou o encarceramento dos indivíduos e dos grupos.
Eram os acusados opositores do regime castrista e até — usemos a palavra forte — conspiravam contra o regime? E o que mais podiam fazer, visto que em Cuba faltam direitos essenciais de palavra, de organização, de luta política pública e reconhecida? E isso ainda hoje, quarenta anos depois da insurreição armada e da emergência revolucionária. E, além disso, onde está escrito que, até mesmo aos conspiradores algemados — quando não estão em condições de causar danos —, não devam ser concedidos elementares direitos e instrumentos de defesa? A justiça — esta palavra tão nobre e solene — carece, como do pão, do contraditório público e prolongado. Sem isso, o recinto do tribunal se torna uma farsa, um engano feroz.
Ainda no início de abril — numa conexão alucinante —, realizou-se em Cuba um outro processo, que levou à condenação à morte de três jovens que haviam seqüestrado uma balsa para alcançar o litoral dos Estados Unidos. Quem escreve aprendeu, em sua vida, a odiar a condenação à morte — este assombroso poder de matar aquele que já está algemado e confinado nas paredes de um cárcere. Mas aquela condenação à morte que se consuma e se realiza quase como um raio, e não permite apelação, e recusa até um momento de hesitação na hora de matar o indefeso — é verdadeiramente algo repugnante. E é enganosa: tem-se a ilusão de cancelar, com a mão do carrasco, os problemas políticos e humanos que não se sabe resolver.
Dir-se-á: tudo isso é necessário a Fidel para se proteger dos complôs americanos. Eu receio, ao contrário, que isso ajude Bush a dizer: vejam como é indispensável a superpotência americana...
Este é o quadro amargo. Eu não esqueço aquilo que, da insurreição cubana, veio como esperança e símbolo para um terceiro mundo sufocado pelo imperialismo e até para a difícil luta da esquerda anticapitalista no Ocidente avançado. Embora, pessoalmente, tenha tido dúvidas, muitas, realmente muitas — desde o início —, naquela segunda metade do século XX, quando pusemos o retrato do "Che" sobre um móvel da casa e cantamos nas manifestações a canção inesquecível. E acredito perceber, compreender o quanto ainda hoje Cuba represente uma esperança: antes de mais nada, para o continente centro-americano em busca de resgate, e também para outros lugares. Tanto mais agora, quando a superpotência americana proclamou — diante do mundo — o advento da era da "guerra preventiva".
Mas, se a questão agora é esta — como se vê na prática —, menos ainda podemos ter a ilusão de superar tal desafio com processos sumários e fuzilamentos fulminantes. Sinto repulsa por aqueles novíssimos cárceres de Guantânamo, nos quais não mais existe sequer a proteção, o recolhimento em si mesmo que a escuridão da cela propicia. Mas como posso combater as alucinações de Guantânamo se recorro à pena capital contra fugitivos recapturados e já com os pulsos algemados?
A batalha contra Bush e contra a doutrina da "guerra preventiva" pede outros caminhos: novos e diferentes. E se nutre de pacifismo, não de cárceres e algemas até absurdas, e de carrascos manchados de sangue.
Um intelectual, grande amigo de Cuba — o Nobel Saramago —, declarou a sua discordância. É uma escolha que reclama a coragem da verdade, e só Deus sabe se é preciso coragem diante dos desafios abertos no mundo.
Autor: Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano, escreveu este texto para Il Manifesto , 15 abr. 2003. Um dos seus livros está disponível em português — As massas e o poder (Trad. Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980) — e é momento fundamental da reflexão sobre democracia política e socialismo.
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