domingo, 8 de novembro de 2009

Socialismo com liberdade e democracia

Baseando-se em Karl Marx, Friedrich Engels, Antonio Gramsci, e Palmiro Togliatti, surgiu na Itália o chamado "eurocomunismo", que afirma ser a democracia, um valor universal. Enrico Berlinguer, secretário geral do Partido Comunista Italiano entre 1972 e 1984, foi quem fundou essa vertente democrática do comunismo.

"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)

O "eurocomunismo" fez do PCI - Partido Comunista Italiano, o maior partido comunista do Ocidente, mobilizando o terror da extrema-direita fascista e da extrema-esquerda contra a possibilidade real dos comunistas chegarem ao poder pela via democrática, através do voto. Por isso o assassinato de Aldo Moro, um político centrista que estava buscando junto com os comunistas, construir uma aliança que unindo os democratas cristãos e o PCI, levasse a Itália ao progresso social e a plena democracia, abrindo caminho para a construção processual do socialismo.

Os eurocomunistas nunca chegaram ao poder, mas iniciaram uma nova cultura política na esquerda, não somente na Europa. Aqui na América Latina, o "eurocomunismo" foi uma das principais influências do PT - Partido dos Trabalhadores.

Aqui no Brasil, o filósofo Leandro Konder e o cientista político Carlos Nelson Coutinho, são os principais nomes do "eurocomunismo". Fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, são os principais responsáveis pela divulgação da obra de Gramsci aqui no Brasil.

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".

"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.

Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.

Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.

Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.
Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."

(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)


O socialismo no século XXI é radicalmente democrático e ecológico, fundamentando-se na democracia como valor universal e na defesa do desenvolvimento autossustentável.


A democracia como valor universal
Enrico Berlinguer
Tradução: Marco Mondaini

Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.

Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.

Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.

O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.

Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.

No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.

O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.

A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.

Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.

Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.

Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.

Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.


Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário