Qual socialismo?
Leandro Konder
A experiência histórica do movimento socialista, em suas formas cada vez mais variadas, ensina que o socialismo só avança quando consegue se renovar. E, atualmente, ela já ensina, também, que a reflexão socialista precisa de interlocutores “externos”, quer dizer, precisa ─ para renovar-se ─ do diálogo com linhas de pensamento não comprometidas com os projetos socialistas.
Renovar-se não é uma operação simples, automática; é um processo que passa por autocríticas intranqüilizadoras, freqüentemente dolorosas. Em sociedades politicamente complexas, os sujeitos empenhados em transformar as relações sociais precisam se criticar mutuamente, se reeducar, uns aos outros. A eficácia da autocrítica depende da liberdade de crítica assegurada aos outros. A verdadeira renovação passa a depender, cada vez mais, do pluralismo.
Por isso, a vanguarda do pensamento marxista está muito empenhada, hoje, numa revalorização do pluralismo. E os marxistas de vanguarda, na Itália, já se deram conta da extrema importância de um interlocutor como Noberto Bobbio.
Bobbio, pensador político, professor de filosofia do direito, é um homem de imensa cultura e estupenda honestidade intelectual. É um liberal que estudou Marx, conhece os meandros do pensamento marxista e não se sente nem um pouco constrangido em acolher tudo o que nele lhe parece bom. É exatamente essa abertura em face de Marx que lhe permite, por outro lado, questionar de maneira bastante despreconceituosa e fecunda uma série de aspectos da perspectiva filosófica e política do pensador alemão.
A história do século XX mostra que a conquista do poder, nas revoluções, não resolve o problema de como exercê-lo. Nenhuma revolução, até agora, enfrentou seriamente a questão das garantias contra os abusos do poder. A teoria da ditadura do proletariado deu no que deu. Bobbio, então, nos incita a refletir sobre a concepção do Estado em Marx: uma concepção que precisa de desenvolvimentos, complementações e ─ também ─ correções, revisões.
Não temos o direito de nos esquivar ao exame das questões relativas a como o poder se exerce. Os riscos de uma omissão, nas condições atuais, seriam enormes. A humanidade está duplamente ameaçada de extinção, diz Bobbio: pela guerra atômica e pelo esgotamento dos recursos do planeta. Seríamos sumamente insensatos se não nos dispuséssemos a aprender um pouco sobre as condições ─ não necessariamente mais humanas, porém menos ferozes ─ que podemos criar para o exercício do poder.
A tarefa é grave e delicada. Cumpre enfrentá-la com prudência. Bobbio sabe disso e evita se4 apresentar como “dono da verdade”. Seu método lembra o do velho Sócrates: ele aparece diante de nós como um arguto perguntador. Não é casual que todos os ensaios deste volume tenham títulos interrogativos. Qual Socialismo? ─ como notou Celso Láfer ─ contém perguntas “incisivas e bem formuladas”, relativas a temas para os quais Bobbio não pretende ter “respostas definitivas”.
[Texto de orelha de Leandro Konder In BOBBIO, Noberto. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Tradução de Iza de Salles Freaza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.]
Leandro Konder é filósofo marxista e escritor.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
domingo, 8 de novembro de 2009
Socialismo com liberdade e democracia
Baseando-se em Karl Marx, Friedrich Engels, Antonio Gramsci, e Palmiro Togliatti, surgiu na Itália o chamado "eurocomunismo", que afirma ser a democracia, um valor universal. Enrico Berlinguer, secretário geral do Partido Comunista Italiano entre 1972 e 1984, foi quem fundou essa vertente democrática do comunismo.
"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)
O "eurocomunismo" fez do PCI - Partido Comunista Italiano, o maior partido comunista do Ocidente, mobilizando o terror da extrema-direita fascista e da extrema-esquerda contra a possibilidade real dos comunistas chegarem ao poder pela via democrática, através do voto. Por isso o assassinato de Aldo Moro, um político centrista que estava buscando junto com os comunistas, construir uma aliança que unindo os democratas cristãos e o PCI, levasse a Itália ao progresso social e a plena democracia, abrindo caminho para a construção processual do socialismo.
Os eurocomunistas nunca chegaram ao poder, mas iniciaram uma nova cultura política na esquerda, não somente na Europa. Aqui na América Latina, o "eurocomunismo" foi uma das principais influências do PT - Partido dos Trabalhadores.
Aqui no Brasil, o filósofo Leandro Konder e o cientista político Carlos Nelson Coutinho, são os principais nomes do "eurocomunismo". Fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, são os principais responsáveis pela divulgação da obra de Gramsci aqui no Brasil.
O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".
"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.
Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.
Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.
Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.
Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."
(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)
O socialismo no século XXI é radicalmente democrático e ecológico, fundamentando-se na democracia como valor universal e na defesa do desenvolvimento autossustentável.
A democracia como valor universal
Enrico Berlinguer
Tradução: Marco Mondaini
Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.
Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.
Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.
O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.
Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.
No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.
O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.
A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.
Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.
Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.
Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.
Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.
Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.
"Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano de Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer (1922-1984) engajou-se, do início dos anos setenta até a sua morte em 1984, na defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socio-econômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX. Um momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) deu-se no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, quando, diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo, Berlinguer fala da necessidade de se pensar a "democracia como um valor universal". (Marco Mondaini)
O "eurocomunismo" fez do PCI - Partido Comunista Italiano, o maior partido comunista do Ocidente, mobilizando o terror da extrema-direita fascista e da extrema-esquerda contra a possibilidade real dos comunistas chegarem ao poder pela via democrática, através do voto. Por isso o assassinato de Aldo Moro, um político centrista que estava buscando junto com os comunistas, construir uma aliança que unindo os democratas cristãos e o PCI, levasse a Itália ao progresso social e a plena democracia, abrindo caminho para a construção processual do socialismo.
Os eurocomunistas nunca chegaram ao poder, mas iniciaram uma nova cultura política na esquerda, não somente na Europa. Aqui na América Latina, o "eurocomunismo" foi uma das principais influências do PT - Partido dos Trabalhadores.
Aqui no Brasil, o filósofo Leandro Konder e o cientista político Carlos Nelson Coutinho, são os principais nomes do "eurocomunismo". Fundadores do PSOL - Partido Socialismo e Liberdade, são os principais responsáveis pela divulgação da obra de Gramsci aqui no Brasil.
O cientista político Carlos Nelson Coutinho, professor da UFRJ, escreveu em 1979, o clássico "A Democracia Como Valor Universal".
"Em 1979 publiquei um artigo, A democracia como valor universal. Até hoje me fascina que aquele ensaio, primeiro, tenha provocado reações tão fortes. Mas, segundo, e mais preocupante, que tenha sido lido por muita gente de maneira tão equivocada. Em nenhum momento proponho lá substituir o socialismo pela democracia. Coloco a democracia como caminho para o socialismo. Nunca separei a democracia de socialismo e nem reduzi a democracia ao liberalismo. A democracia que nós, socialistas, queremos construir tem instituições que não fazem parte nem do arcabouço teórico nem da realidade dos regimes puramente liberais.
Hoje, se reescrevesse aquele ensaio, teria posto como título "A democratização como valor universal". O que é valor universal não são as formas concretas que a democracia assume institucionalmente em dado momento, mas o processo pelo qual a política se socializa e, progressivamente propõe novas formas de socialização do poder. Entendo democratização, no limite, como algo que implica a plena socialização do poder – o que, aliás, é um momento fundamental da concepção marxiana do socialismo. Não apenas socialização da propriedade, mas do poder. Exatamente aquilo que o "chamado socialismo real" não fez. E por isso, aliás, ele fracassou.
Vejo, na contra-reforma neoliberal de hoje, fortes tendências no sentido de reduzir a amplitude da democracia e a participação crescente no poder. Há toda uma corrente de pensamento político, numa linha que se inicia com Schumpeter, que reduz a democracia a um método de escolha: por meio de eleições periódicas você escolhe entre diferentes elites, mas quem faz política é a elite. Isso nada tem a ver com democracia. Democracia é algo substantivo, não só no terreno econômico-social, mas no sentido político, pois temos de construir mecanismos que permitam a participação crescente das massas organizadas na gestão do poder. Isso foi tornado possível pelo que eu chamo, com os marxistas italianos, de socialização da política. A socialização do poder tem como pressuposto a socialização da participação política. O fato de conseguirmos o sufrágio universal, de você se organizar em sindicatos, partidos, associações, nesse conjunto que forma a sociedade civil, é o que permite imaginar que, no lugar de um poder de cima para baixo, cada vez mais se coloquem, como efetivos instrumentos de poder, esses organismos constituídos no âmbito da sociedade civil, de baixo para cima.
Nesse sentido, a democracia no Brasil continua a ser, para nós, socialistas, um desafio e uma tarefa: embora seja evidente que elementos de democracia foram conquistados, há ainda muito por realizar. E, no horizonte, devemos ter claro que só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política.(...) Uma das tarefas fundamentais do socialismo do século XXI é recolocar essa clara dimensão democrática. Não há socialismo sem democracia, sem dúvida, mas tampouco há democracia sem socialismo.
Gramsci nos fornece instrumentos decisivos para que repensemos esse momento democrático, o momento de consenso, da hegemonia, como fundamental na construção do socialismo. Nossa tarefa é: onde está a coerção devemos colocar cada vez mais o consenso, participação livre e autônoma das pessoas. Onde está mercado, que é uma forma de coerção, colocar o planejamento econômico democrático, fundado no consenso. E onde está o Estado, entendido como poder coercitivo e autoritário, colocar a participação consensual, o autogoverno. Habermas não está errado quando propõe um espaço de comunicação livre de coerção. Está errado ao achar que isso pode ser feito no capitalismo. Comunicação livre só pode existir no comunismo, numa sociedade sem classes."
(Carlos Nelson Coutinho; em Teoria e Debate nº 51)
O socialismo no século XXI é radicalmente democrático e ecológico, fundamentando-se na democracia como valor universal e na defesa do desenvolvimento autossustentável.
A democracia como valor universal
Enrico Berlinguer
Tradução: Marco Mondaini
Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho — como disse o camarada Brejnev —, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.
Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.
Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.
O conjunto de forças revolucionárias e do progresso — partidos, movimentos, povos, Estados — tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.
Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.
No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.
O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.
A experiência realizada nos levou à conclusão — assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista — de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.
Eis por que a nossa luta unitária — que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental — está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.
Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.
Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar — na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho — a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.
Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.
Texto original em Berlinguer, Enrico. Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 28-30. Tradução brasileira em Mondaini, Marco. Direitos humanos. São Paulo: Contexto, 2006.
sábado, 7 de novembro de 2009
Biografia de Karl Marx
Quando fundaram o socialismo científico, os filósofos e revolucionários alemães Karl Marx e Friedrich Engels afirmaram que a história é movida pela luta de classes, e na atual sociedade capitalista, a luta do proletariado contra a burguesia levará a revolução socialista e a destruição do capitalismo. E segundo Marx e Engels, essa revolução será violenta.
Entretanto a história não é estatica, por isso a realidade apontada por Marx e Engels no Manifesto Comunista, publicado em fevereiro de 1848, já não era mais a mesma realidade existente nos anos 60 do século XIX. No Livro 1 de O Capital, publicado em 1867, Marx teorizou a respeito da progressiva passagem da exploração do trabalho através da mais-valia absoluta (da redução do salário e do aumento da jornada de trabalho) para a exploração através da mais-valia relativa (do aumento da produtividade), que alterou as condições em que se trava a luta de classes. Como resultado dessa alteração, o filósofo e revolucionário alemão Karl Marx, afirmou que era possível uma revolução socialista não violenta, com os comunistas chegando ao poder pelo voto.
Em seu discurso no Congresso de Haia, realizado em 1872, Marx afirmou que nos EUA, na Grã Bretanha, e talvez na Holanda, os trabalhadores poderiam atingir suas metas por meios pacíficos. A possibilidade da transição pacífica, segundo Marx, dependeria das diferentes correlações de força existentes no interior de cada país, do grau de consolidação das instituições e também da resistência oferecida pelas classes dominantes às transformações sociais. Marx sublinhou igualmente, que será a classe operária de cada país que deverá escolher os meios a serem utilizados.
Em 1895, Engels escreveu a Introdução para uma nova edição de Luta de Classes na França, de Marx.
"Neste texto, por muitos considerado seu testamento político, Engels parte do reconhecimento de que, em 1848, quando rompeu o movimento revolucionário de fevereiro em Paris, ele e Marx estavam verdadeiramente "fascinados" com a experiência histórica das revoluções francesas anteriores, a de 1789 e 1830, que lhes haviam fornecido uma espécie de “modelo” com o qual representar a “marcha e o caráter da revolução do proletariado”. A história posterior, porém, “não só destruiu o erro em que nos encontrávamos, como também modificou de cima a baixo as condições de luta do proletariado”. Cinqüenta anos depois, ele constataria: “O método de luta de 1848 está hoje antiquado em todos os aspectos”. A história deixara patente que “o estado do desenvolvimento econômico não estava maduro para poder eliminar a produção capitalista”, que demonstrava “grande capacidade de extensão”. E o capitalismo, quanto mais se expandia, mais punha de manifesto as relações de classe que o sustentavam, “criando e fazendo passar ao primeiro plano uma verdadeira burguesia e um verdadeiro proletariado” e, desta forma, injetando inédita intensidade à luta entre as duas classes. Ao final do século, na visão de Engels, havia se organizado “um grande, único e poderoso exército do proletariado, o exército internacional dos socialistas” que, “longe de poder conquistar a vitória em um grande ataque decisivo, teria que avançar lentamente, de posição em posição, em uma luta tenaz e dura”. A época, agora, não era mais das “minorias revolucionárias”, mas das massas; não mais das “barricadas e das lutas de rua", mas das batalhas eleitorais. Engels enfatizaria que os operários alemães, “graças à inteligência com que souberam utilizar o sufrágio universal”, haviam conseguido viabilizar o “crescimento assombroso de seu partido”, que em 1871 obtivera 102.000 votos, passara a 550.000 votos em 1884 e alcançaria quase 2 milhões de votos nas eleições da primeira metade dos anos 90.
O sufrágio universal convertia-se, assim, em uma “arma nova e mais afiada”, posto que permitia aos operários “entrar em contato com as amplas massas do povo” e pôr em ação “um método de luta totalmente novo”, passando a perceber que “as instituições estatais nas quais se organizava a dominação da burguesia ofereciam, à classe operária, novas possibilidades de lutar contra essas mesmas instituições”. Em decorrência, concluiria Engels, os governos burgueses começariam a “temer muito mais a atuação legal do que a atuação ilegal do partido operário, mais os êxitos eleitorais do que os êxitos insurrecionais”. Não deixava de ser uma ironia: “nós, os ‘revolucionários’, os ‘elementos subversivos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com a subversão”, ao ponto dos partidos da ordem “exclamarem desesperados, juntamente com Odilon Barrot, que la légalité nous tue, a legalidade nos mata, ao passo que, da nossa parte, acabamos por adquirir, com esta legalidade, músculos vigorosos e faces coloridas, como se tivéssemos sido alcançados pelo sopro da eterna juventude”.
Engels, enfim, nesse texto verdadeiramente paradigmático, procurava atualizar a estratégia do movimento operário às novas determinações da realidade histórica e às mudanças que se processavam no próprio plano das lutas:
“Se se modificaram as condições da guerra entre as nações, do mesmo modo teriam que se modificar as condições da luta de classes. Acabou a época dos ataques de surpresa, das revoluções feitas por pequenas minorias conscientes que se punham à frente das massas inconscientes. Onde quer que se trate de realizar uma transformação completa da organização social, as massas têm de intervir diretamente, têm de já ter compreendido por si mesmas do que se trata e porque estão dando o sangue e a vida. E para que as massas compreendam o que deve ser feito, é preciso um trabalho longo e perseverante”.
Reiterava-se, assim, uma das grandes teses do marxismo clássico: as formas de luta (pacíficas ou violentas, legais ou ilegais) deveriam ser sempre uma resposta às situações históricas concretas, sendo por elas determinadas.
Tal transição verdadeiramente epocal alterava a qualidade mesma do Estado, que se transformava numa instituição efetivamente complexa, dilatada, invasiva. Fazia-se necessária, portanto, uma nova conceitualização, capaz de possibilitar a apreensão dos novos nexos que se estabeleciam no ampliado plano da atividade estatal. Com o Estado reforçado conectando-se com múltiplas associações particulares e incorporando-as a si, todo o espaço estatal ganhava nova qualidade e o fato mesmo da dominação política era redefinido: a coerção, o “monopólio legítimo da violência”, ação típica da “sociedade política”, tinha de ser cada vez mais sintonizada com a busca de consensos."
(Marco Aurélio Nogueira; "GRAMSCI E OS DESAFIOS DE UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA DE ESQUERDA")
O revolucionário marxista italiano Antonio Gramsci, a partir dessa concepção de Engels, desenvolveu a teoria da revolução socialista no mundo capitalista desenvolvido, ou seja, no ocidente, como uma revolução que "arde em fogo lento", onde a luta pela hegemonia é essencial para a vitória do proletariado. Assim, a luta de classes deixa de ser uma "guerra de movimento", como era descrita no Manifesto Comunista, e como foi na Rússia semi-feudal dos czares, e se torna uma "guerra de posição", pois o poder não está concentrado apenas nos palácios, e sim disperso na sociedade.
"[...] no Ocidente, onde a 'sociedade civil' é extremamente articulada com a proteção do 'Estado político', a luta será longa, será uma enervante 'guerra de posição' [...]. É preciso aprender todos os métodos mais elaborados dos adversários, não deixar-se surpreender despreparados ou atrasados nessa revolução que arde em 'fogo lento', abandonar o primitivismo econômico e mecanicista precedente e desenvolver a capacidade de previsão e de guia dos acontecimentos, chamando os intelectuais para colaborar com tal empreendimento histórico e colmatando continuamente as distâncias que se formam entre as linhas estratégicas dos vértices e a capacidade de compreensão e de recepção da base." (Antonio Gramsci)
Oras, se Engels reconhece que os tempos das revoluções realizadas por pequenas minorias chegou ao fim, chegando inclusive a afirmar que os revolucionários ganham mais atuando na legalidade e não fora dela, e se antes dele, Marx já reconhecia que os comunistas podiam chegar ao poder pelo voto, fica comprovado que a Revolução Russa de 1917 foi um fato histórico isolado, que só foi possível pelo fato daquele país ainda estar vivendo em uma realidade semi-feudal do começo do século XIX. Por isso Gramsci desenvolve a teoria da revolução no ocidente, afirmando a importância da luta pela hegemonia. Antes de ser dominante, a classe trabalhadora precisa ser dirigente.
E o mundo mudou ainda mais, com o desenvolvimento do Estado democrático e de direito, com os trabalhadores conquistando cidadania plena, assim como as mulheres, os negros, etc. Isso tudo demonstra que é absurdo continuar afirmando que a revolução socialista deve se basear na violência, que deve ser uma ruptura como foi a Revolução Russa.
O bolchevismo deve ser abandonado não somente por sua cultura autoritaria, responsável pelo surgimento da bestialidade stalinista. Mas também por ser completamente obsoleto, não cabendo mais com a realidade da luta de classes no século XXI.
O socialismo precisa ser construido processualmente, e não estabelecido por decreto
No texto intitulado "Abaixo o bolchevismo!!! Viva a luta pelo socialismo democrático!!!", eu havia dito que a primeira causa da burocratização do Estado soviético foi oriunda da ausência de democracia política. Pois bem, a segunda causa foi a completa estatização da economia, que rompendo a aliança operário-camponesa, possibilitou a expansão da burocracia já existente.
O socialismo não pode ser estabelecido por decreto, e os bolcheviques pareciam ter se dado conta disso ao aplicar a Nova Política Economica, sugerida por Lenin em março de 1921.
"Estamos tão arruinados, tão abalados pelo fardo da guerra, que não podemos dar ao camponês os produtos industriais em troca do trigo de que temos necessidade. [...]
A miséria e a ruína são tais que não podemos restabelecer a grande produção socialista, as grandes fábricas do Estado. [...] Por conseguinte, é necessário restabelecer a pequena indústria.
[...] Que resulta daí? Seguindo uma certa liberdade de comércio, renascem a pequena burguesia e o capitalismo. [...] O capitalismo privado pode ajudar ao desenvolvimento do socialismo. [...] Nada há de perigoso nisto enquanto o proletariado detiver firmemente o poder, enquanto detiver firmemente entre as suas mãos os transportes e a indústria pesada." (Vladimir Lenin)
A Nova Politica Economica foi considerada um recuo estratégico ao capitalismo, com objetivo de restabelecer a aliança operário-camponesa, que havia sido rompida durante a desastrosa política do "comunismo de guerra", e promover a recuperação da economia, arrasada não somente pela guerra civil, mas também pela desastrosa política que os bolcheviques haviam estabelecido em 1918, o chamado "comunismo de guerra". Desnacionalizaram-se as empresas com menos de 20 operários, suprimiu-se o trabalho obrigatório para estimular a produtividade, possibilitou aos camponeses a venda dos seus excedentes, permitiu a liberdade do comércio interno, e também permitiu o investimento estrangeiro para a reconstrução do país.
Os resultados práticos não demoraram a surtir efeito. Lentamente a produção agrícola foi sendo restabelecida; o sistema viário voltou a funcionar com maior regularidade e as pequena indústrias começaram a lançar seus produtos no mercado.
O sucesso dessa política levou o revolucionário Nikolai Bukharin defender que esse era o caminho para a construção do socialismo, posição também defendida pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci.
A Nova Política Economica demonstra que o socialismo precisa ser construido processualmente, a "passos de tartaruga", como disse o revolucionário Nikolai Bukharin. Ao invés da coerção, a busca do consenso.
Infelizmente essa política não foi para frente, em virtude da cultura autoritária do bolchevismo. Mas na atualidade, o governo cubano percebeu que essa experiência é o caminho para um socialismo sem burocracia, e começa a demonstrar que vai trilhar por esse caminho. A esquerda precisa apoiar as reformas que o governo Raúl Castro já promoveu e as que pretende promover a partir do 9º Congresso do Partido Comunista. E mais, precisa pressionar no sentido de que reformas sejam realizadas também na política, como o fim do regime de partido único, a promoção da liberdade sindical, da liberdade de imprensa, e a realização de eleições democráticas. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, e não o último bastião do "socialismo real".
O resgate de uma história
Pacto ou autoritarismo.
A visão de Bukharin
Daniel Aarão Reis *
Quase vinte anos depois de sua publicação, é oferecida aos leitores brasileiros a biografia política de Nikolai Ivanovitch Bukharin, por Stephen Cohen. Sobre esse revolucionário já havia sido traduzida, há dez anos, a pungente obra do historiador russo Roy Medvedev ( Os últimos anos de Bukharin)... Tratando-se da compreensão da trajetória do teórico que era, segundo Lenin, o "preferido do partido", já contamos, felizmente, em 1990, com a obra de Cohen e com a excelente antologia Bukharin, organizada por Jacob Gorender.
Stephen Cohen permaneceu à margem dos modismos e das correntes hegemônicas da historiografia sobre a Revolução Russa. Não se deixando aprisionar pelas luzes que focalizaram, durante décadas, os atores que estavam no centro da ribalta – Trotski e Stalin –, defende, convincentemente em paciente e minuciosa investigação, o papel decisivo assumido por Nikolai Bukharin, nas lutas políticas, que se travaram ao longo dos anos 20 na União Soviética, fundamentais para o processo de construção do socialismo e para o desfecho que hoje conhecemos como "socialismo realmente existente".
O interesse pela trajetória e propostas de Bukharin já se afirmara nos anos 50 e 60, sobretudo no decorrer do período de reformas, dirigido por Nikita Kruchev. Mas receberia formidável impulso, a partir de 1985, quando, no âmbito da perestroika, a referência à Nova Política Econômica (NEP), associada intimamente a Bukharin, passou a ser obrigatória nos discursos de Mikhail Gorbatchev, que nela se inspirou para seu ambicioso projeto reformista.
O que foi exatamente a NEP? Qual seu significado histórico? Em que sentido pode servir de referência para as reflexões atuais sobre o socialismo?
A NEP começou a ser formulada e implementada em 1920-1921, ao se consolidar, de fato, o governo revolucionário bolchevique. A Rússia de então estava literalmente arrasada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918) e pela Guerra Civil (1918-1921). Havia fome e epidemias por toda a parte, a indústria e os transportes estavam profundamente debilitados (alguns setores apresentavam índices equivalentes aos de fins do século XVIII), a agricultura paralisada, à espera de definições políticas, o descontentamento agitava a população urbana e provocava revoltas no campo. A expressão mais clara desta efervescência foi a insurreição dos marinheiros de Kronstadt contra os bolcheviques, aniquilada pelo exército vermelho em março de 1921.
A política dos bolcheviques durante a Guerra Civil, o chamado Comunismo de Guerra, revelara-se voluntarista, irrealista e desastroso. Semeara muitas ilusões sem abrir perspectivas. Impunha-se uma reviravolta. Por outro lado, a revolução internacional não acontecera e parecia muito claro que não adiantava sonhar com ela, pelo menos a curto prazo. A maioria, principalmente após a revolta de Kronstadt, compreendia a necessidade de mudanças. Elas tomariam a forma de uma Nova Política Econômica.
Segundo Cohen, ela começou "sub-repticiamente" e não como "plano predeterminado" (ps. 128 e 153). A principal novidade: garantia de liberdade de produção e de comércio para cerca de 25 milhões de pequenos camponeses, recém-convertidos em proprietários na revolução agrária. A intervenção do Estado se restringia à cobrança do imposto. Mais tarde, através de sucessivos decretos, as liberdades comerciais seriam ampliadas e consolidadas com a permissão de arrendar terras e tocar pequenas indústrias, mantendo assalariados etc. O Estado controlava os setores estratégicos: grandes empresas, indústria pesada, transportes, sistema bancário, comércio externo. Em fins de 1923, como observa Cohen, "estabelecera-se na Rússia Soviética um dos primeiros sistemas mistos da economia moderna" (p. 149).
A NEP era, sem dúvida, uma nova política, muito mais do que apenas "econômica". Mediante o afrouxamento dos controles econômicos, sobretudo no campo, dava uma trégua aos camponeses, desesperados e revoltados com as requisições forçadas e com as políticas coletivizantes do Comunismo de Guerra. Neste sentido, foi uma política de apaziguamento com o campesinato. Com a sua franqueza habitual, Lenin a apresentou como um "recuo" (p. 157). Assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político.
A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.
O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial (p. 188).
A pequena economia privada prosperava. Praticamente toda a produção agrícola estava sob controle camponês; 28% dos manufaturados e de 50% a 75% dos bens de consumo básico, eram produzidos por milhões de artesãos. O comércio estava, essencialmente, em mãos dos pequenos negociantes. Apesar das empresas estatais controlarem os centros dinâmicos da economia, mais de 80% da população "vivia e trabalhava sem estar sujeita ao controle do Partido Comunista ou do Estado" (ps. 301-302).
Os revolucionários reagiam ambiguamente à situação: satisfeitos com os resultados imediatos e com o afastamento dos perigos da fome e da revolta social, mas intranqüilos com a força ascendente da pequena economia privada. Afinal, a NEP era um triunfo dos bolcheviques ou dos "pequenos burgueses" em ascensão? Um triunfo da revolução ou da contra-revolução? Quem avançava, quem recuava? Mas, afinal, para que se fizera a revolução? Para isso tanto sacrifício? E o socialismo? E o comunismo? Como emancipar de fato a União Soviética do mercado internacional capitalista? Como fazer da URSS uma sociedade próspera e poderosa? Não se necessitava uma indústria pesada? Não era esta uma condição indispensável para um desenvolvimento econômico-social auto-sustentado? E também para garantir a soberania da "fortaleza do socialismo mundiall"? Os bolcheviques analisavam a conjuntura internacional, previam e temiam novas guerras imperialistas e não ignoravam que setores ponderáveis no mundo capitalista defendiam "cruzadas anticomunistas" radicais.
Os bolcheviques se dividiam nestas questões. Enquanto as luzes da ribalta clareavam os rostos crispados de Trotski, Stalin, Zinoviev, Kamenev, em luta pelo comando da sociedade, a polêmica central sobre os rumos do desenvolvimento social se polarizava em torno de Nicolai Bukharin e Eugeni Preobrajenski.
Os dois tinham sido partidários do Comunismo de Guerra e eram estreitamente ligados, já tendo inclusive elaborado em conjunto um manual de marxismo de grande sucesso na época: ABC do Comunismo. Mas viriam se tornar expoentes de propostas diversas.
Preobrajenski encarnaria a preocupação pelo desenvolvimento máximo das forças produtivas, pela construção prioritária de uma indústria de base. Para tal objetivo, fazia-se necessária uma "punção" no campesinato. Assim como o capitalismo passara por uma fase de "acumulação primitiva", o socialismo teria que obter os recursos para decolar. A Rússia revolucionária não podia contar com capitais internacionais. Restava-lhe como reserva, grande e inexplorada, o universo camponês. As teses de Preobrajenski eram relativamente cautelosas na previsão dos ritmos e da intensidade da intervenção sobre os camponeses, mas, certamente, tal política corresponderia ao abandono da NEP.
Bukharin trabalhou em sentido oposto. Defendia que a NEP deveria ser aprofundada e consolidada. Assim, deixaria de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes.
Tratava-se de mexer significativamente no núcleo do universo ideológico bolchevique. A viga-mestra do pensamento de Bukharin é a concepção da smychka, "colaboração na sociedade" (p. 230), ou, em outras palavras, aliança entre operários e camponeses. Esta aliança deveria ser mantida a qualquer preço: o poder revolucionário é proletário, dizia Bukharin, mas quem o sustenta são os mujiques.
Para garantir a industrialização, o financiamento viria dos lucros da indústria estatal, convidada a aumentar sua produtividade; do imposto de renda, que recairia prioritariamente sobre os camponeses mais abastados e os negociantes privados, da poupança voluntária, estimulada pela implementação de vários mecanismos.
Bukharin denunciava energicamente o emprego da violência nos métodos de coletivização no campo. Os camponeses deveriam ser persuadidos ao processo coletivo de produção por um longo e paciente trabalho de esclarecimento (p. 107). A forma intermediária definida entre a propriedade individual e a coletiva era a cooperativa, da qual, lenta e livremente, os camponeses iriam "ascender" para as formas coletivas de organização do trabalho.
Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias (p. 165). Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética: "Nossa economia existe para o consumidor, não o consumidor para a economia. O que faz a Nova Economia diferir da antiga é o fato de tomar como padrão as necessidades das massas" (P. 200).
A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas (p. 186), preservando interesses dos diversos setores sociais (p. 267), a paz civil, a legalidade, a moderação nos ritmos, a tolerância e a persuasão (p. 235).
A smychka tinha igualmente uma dimensão internacional. De fato, com o "adiamento" da revolução no Ocidente capitalista, os bolcheviques, desde o início dos anos 20, passaram a pensar na possibilidade de uma aliança da Revolução Russa com os povos coloniais. Lenin e o indiano Roy protagonizaram o primeiro grande debate sobre questão no 2º Congresso da Internacional Comunista.
Bukharin, desdobrando a reflexão, passará a falar do "campesinato mundial". A relação entre camponeses e operários, existente na URSS, refletia um fenômeno mundial, e era preciso fazer do poder soviético um defensor dos povos oprimidos e colonizados, da classe camponesa, da pequeno-burguesia (p. 174-175). Da mesma forma, as nações não russas deveriam receber toda consideração já que representavam, entre outras razões uma "ponte com os povos do Oriente" (p. 181).
Bukharin tinha críticas contundentes à alternativa defendida por Preobrajenski. Ela causaria um estatismo repressivo generalizado e sufocante. A supercentralização e a superburocratização desembocariam na "má administração organizada" (p. 36 1). Na melhor das hipóteses, propiciaria um ritmo máximo de crescimento em determinados setores, mas à custa de demandas da sociedade, da aliança operário-camponesa e da estabilidade do poder soviético. E desembocaria certamente no Estado-Leviatã, voraz e liberticida.
As novas concepções de Bukharin - sobre a aliança operário-camponesa como perspectiva estratégica e não como um expediente tático ou recuo - a idéia "evolucionária" de construção do socialismo -, o projeto de atingir o socialismo mediante o mercado controlado assim como suas propostas concretas sobre o desdobramento da NEP, conheceriam momentos de glória entre 1925 e 1927, sendo consagrados no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1927.
Neste período Bukharin é reconhecido como o teórico e principal formulador da NEP. Articula-se num tandem imbatível com Stalin (Bukharin formula e Stalin organiza) e destrói as oposições agrupadas em torno de Trotsk, Zinoviev e Kamenev.
Entretanto, já desde meados de 1927, acumulavam-se problemas para a NEP. Não se confirmavam as previsões estatais sobre os montantes de grãos para exportação e abastecimento das cidades. Os camponeses, descontentes por não encontrarem no mercado as manufaturas necessárias, simplesmente não escoavam sua produção.
Estocavam seus excedentes e começaram, inclusive, em certas regiões, a diminuir a área semeada. Noutras palavras, valiam-se da liberdade de comércio, inscrita na NEP. Assim, configuravam-se tensões significativas, entre Estado e camponeses.
Os problemas foram apenas aflorados no XV Congresso, já que a fração Bukharin-Stalin interessava-se mais em varrer a oposição do mapa do que em discutir a tempestade iminente.
Mas eram contradições demasiadas para ficar embaixo do tapete. Assim, em janeiro de 1928, o Bureau Político do PCUS, a mais alta instância dirigente do país, adota "medidas extraordinárias" para obrigar os camponeses a entregar os grãos de que o Estado necessitava. Voltava, portanto, a política das requisições forçadas, odiada pelos camponeses e formalmente rejeitada pela NEP.
Em fins de 1929, encerrando uma política de vaivém, de zigue-zagues estonteantes, que refletiam as hesitações do partido e, principalmente, a resistência de Bukharin e seus aliados (A. Rykov, chefe do Governo, e M. Tomski, presidente dos sindicatos russos), o Estado soviético e os comunistas caminharam para a decisão da coletivização à força, para a expropriação dos camponeses privados, ou seja, para a destruição da aliança operário-camponesa e para o abandono da NEP.
Doravante, o embate seria polarizado por Bukharin, de um lado, e por Stalin, de outro. As concepções e propostas de Preobrajenski, acerca da acumulação socialista primitiva, seriam retomadas por Stalin em escala alucinante - "caricatural", como diria Trotsk. Por ironia sinistra, o arquiinimigo de Trotski se tornava adepto da perspectiva da industrialização, para cuja implementação contaria com inúmeros ex-aliados do seu inimigo. Alguns, como o próprio Preobrajenski, seriam trazidos do exílio interno, em que se encontravam, para ajudar na execução dos famosos Planos Qüinqüenais.
Mesmo em desgraça, Bukharin ainda travará batalhas de retaguarda até ser expulso do PCUS, preso, condenado e assassinado (1937-1938). A rigor, lutará até o fim, transformando seu julgamento num derradeiro libelo contra o sistema triunfante e legando, com sua mulher antes de morrer, uma carta que, mais tarde, será divulgada.
A recuperação da trajetória de Bukharin, realizada brilhantemente por Cohen, até 1927, deixa em parte a desejar, quando o autor trata da luta entre Stalin e Bukharin, de 1927 a 1929, e, sobretudo, do período subseqüente até a morte do dirigente comunista.
A meu ver, não se esclareceram as razões políticas do triunfo de Stalin, nem, muito menos, os fundamentos históricos e sociais da derrota da linha de Bukharin. Em certos momentos, o autor é seduzido pela idéia, tão própria à historiografia trotskista, de que Stalin venceu porque soube dominar a máquina partidária. Nesta linha de argumentos, a estrutura orgânica se ergue como um espectro com vida própria, insolitamente despolitizado e que tritura as oposições de modo inapelável. Stalin é satanizado e, como um monstro de astúcia e frieza, de sabedoria incontestável, desembaraça-se de inimigos e ex-aliados. Um autêntico gênio do mal.
Porém, felizmente, o próprio autor reconhece que não "se pode exagerar o poder organizativo de Stalin em 19288" (p. 368). De outro lado, também reconhece que "era claramente perceptível que os grupos de opinião mais fortes do partido se mostravam cada vez menos pacientes em relação às prédicas cautelosas (de Bukharin) e cada vez mais receptivos ao culto (... ) à tradição heróica do bolchevismo" (p. 371).
Aqui o autor apenas aflora um fator crucial da derrota de Bukharin. Trata-se do universo ideológico dos bolcheviques, aliás, tributário em grande medida das tradições social-democratas anteriores à Grande Guerra.
Bukharin, apesar de suas propostas inovadoras, pertence a este universo. Dele fazem parte idéias messiânicas sobre a revolução, a classe operária e o partido de vanguarda (necessariamente único), desvalorização histórica e estrutural do papel dos camponeses na revolução, a concepção cientificista-produtivista da história e do desenvolvimento social. Com tal universo Bukharin não rompeu e nem teve, jamais, este propósito.
Quando Bukharin, entre 1927 e 1929, tenta se insurgir contra Stalin, encontra-se preso nas teias destas concepções e valores políticos. Na verdade, também ele havia cultivado atitudes e políticas autoritárias (ps. 230, 270 e 299). Também ele havia sido impiedoso com seus adversários políticos de fora e de dentro do Partido Comunista. Não realizam uma reflexão autocrítica efetiva, acerca das suas concepções, no período do Comunismo de Guerra, marcadamente catastróficas, obreiristas, autoritárias e messiânicas. E havia consentido recuos em 1925-1926 que iriam fortalecer os partidárias dos planos centralizados e superindustrializantes. Daí sua impressionante timidez em recorrer ao conjunto do partido e à sociedade, se deixando encurralar no interior do Bureau Político. Daí suas humilhantes e sucessivas retratações (ps. 378, 394 e 399) que enfraqueceram, Progressivamente, suas chances de apresentar uma alternativa ampla ao stalinismo.
Este retrospecto não tenciona desmerecer ou minimizar o papel de Bukharin, mas compreender algumas razões da sua derrota para Stalin. Este soube, de fato, encamar como ninguém a consciência média bolchevique, os valores hegemônicos no interior do partido, os frutos de um tempo duro de terríveis enfrentamentos. Por mais astuto e endemoninhado que fosse, com rabo, chifres e pés invertidos, Stalin não venceria esta formidável batalha política, se não contasse com maioria ampla do partido a seu favor.
O socialismo em um só país (defendido inclusive por Bukharin que, por sinal, foi o primeiro a falar nisto, como informa o próprio Cohen), a mitologia do partido único, o messianismo obreirista e a correspondente subestimação das outras classes, principalmente o campesinato, São valores fundamentais entre outros já referidos, enraizados na tradição bolchevique.
Bukharin formulou políticas e concepções que, uma vez aprofundadas, provavelmente, poriam em xeque tais valores. Mas não foi capaz, ou não teve ocasião histórica, de empreender tamanha tarefa. E se o fizesse é praticamente certo que seria derrotado de maneira ainda mais inapelável.
Entretanto, teve o mérito de representar uma alternativa ao modelo stalinista. E Stephen Cohen teve o grande mérito de ser um dos historiadores que resgatou do esquecimento esta história. Contribuiu, deste modo, para esclarecer as divergências reais da polêmica que sacudiu a URSS nos anos 20, como para desvendar os mitos que reservam um lugar central à polêmica entre Stalin e Trotski, obscurecendo o parentesco fundamental entre stalinismo e trotskismo.
* Daniel Aarão Reis é historiador
Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991
O socialismo não pode ser estabelecido por decreto, e os bolcheviques pareciam ter se dado conta disso ao aplicar a Nova Política Economica, sugerida por Lenin em março de 1921.
"Estamos tão arruinados, tão abalados pelo fardo da guerra, que não podemos dar ao camponês os produtos industriais em troca do trigo de que temos necessidade. [...]
A miséria e a ruína são tais que não podemos restabelecer a grande produção socialista, as grandes fábricas do Estado. [...] Por conseguinte, é necessário restabelecer a pequena indústria.
[...] Que resulta daí? Seguindo uma certa liberdade de comércio, renascem a pequena burguesia e o capitalismo. [...] O capitalismo privado pode ajudar ao desenvolvimento do socialismo. [...] Nada há de perigoso nisto enquanto o proletariado detiver firmemente o poder, enquanto detiver firmemente entre as suas mãos os transportes e a indústria pesada." (Vladimir Lenin)
A Nova Politica Economica foi considerada um recuo estratégico ao capitalismo, com objetivo de restabelecer a aliança operário-camponesa, que havia sido rompida durante a desastrosa política do "comunismo de guerra", e promover a recuperação da economia, arrasada não somente pela guerra civil, mas também pela desastrosa política que os bolcheviques haviam estabelecido em 1918, o chamado "comunismo de guerra". Desnacionalizaram-se as empresas com menos de 20 operários, suprimiu-se o trabalho obrigatório para estimular a produtividade, possibilitou aos camponeses a venda dos seus excedentes, permitiu a liberdade do comércio interno, e também permitiu o investimento estrangeiro para a reconstrução do país.
Os resultados práticos não demoraram a surtir efeito. Lentamente a produção agrícola foi sendo restabelecida; o sistema viário voltou a funcionar com maior regularidade e as pequena indústrias começaram a lançar seus produtos no mercado.
O sucesso dessa política levou o revolucionário Nikolai Bukharin defender que esse era o caminho para a construção do socialismo, posição também defendida pelo revolucionário italiano Antonio Gramsci.
A Nova Política Economica demonstra que o socialismo precisa ser construido processualmente, a "passos de tartaruga", como disse o revolucionário Nikolai Bukharin. Ao invés da coerção, a busca do consenso.
Infelizmente essa política não foi para frente, em virtude da cultura autoritária do bolchevismo. Mas na atualidade, o governo cubano percebeu que essa experiência é o caminho para um socialismo sem burocracia, e começa a demonstrar que vai trilhar por esse caminho. A esquerda precisa apoiar as reformas que o governo Raúl Castro já promoveu e as que pretende promover a partir do 9º Congresso do Partido Comunista. E mais, precisa pressionar no sentido de que reformas sejam realizadas também na política, como o fim do regime de partido único, a promoção da liberdade sindical, da liberdade de imprensa, e a realização de eleições democráticas. Cuba precisa se tornar uma democracia socialista, e não o último bastião do "socialismo real".
O resgate de uma história
Pacto ou autoritarismo.
A visão de Bukharin
Daniel Aarão Reis *
Quase vinte anos depois de sua publicação, é oferecida aos leitores brasileiros a biografia política de Nikolai Ivanovitch Bukharin, por Stephen Cohen. Sobre esse revolucionário já havia sido traduzida, há dez anos, a pungente obra do historiador russo Roy Medvedev ( Os últimos anos de Bukharin)... Tratando-se da compreensão da trajetória do teórico que era, segundo Lenin, o "preferido do partido", já contamos, felizmente, em 1990, com a obra de Cohen e com a excelente antologia Bukharin, organizada por Jacob Gorender.
Stephen Cohen permaneceu à margem dos modismos e das correntes hegemônicas da historiografia sobre a Revolução Russa. Não se deixando aprisionar pelas luzes que focalizaram, durante décadas, os atores que estavam no centro da ribalta – Trotski e Stalin –, defende, convincentemente em paciente e minuciosa investigação, o papel decisivo assumido por Nikolai Bukharin, nas lutas políticas, que se travaram ao longo dos anos 20 na União Soviética, fundamentais para o processo de construção do socialismo e para o desfecho que hoje conhecemos como "socialismo realmente existente".
O interesse pela trajetória e propostas de Bukharin já se afirmara nos anos 50 e 60, sobretudo no decorrer do período de reformas, dirigido por Nikita Kruchev. Mas receberia formidável impulso, a partir de 1985, quando, no âmbito da perestroika, a referência à Nova Política Econômica (NEP), associada intimamente a Bukharin, passou a ser obrigatória nos discursos de Mikhail Gorbatchev, que nela se inspirou para seu ambicioso projeto reformista.
O que foi exatamente a NEP? Qual seu significado histórico? Em que sentido pode servir de referência para as reflexões atuais sobre o socialismo?
A NEP começou a ser formulada e implementada em 1920-1921, ao se consolidar, de fato, o governo revolucionário bolchevique. A Rússia de então estava literalmente arrasada pela Primeira Grande Guerra (1914-1918) e pela Guerra Civil (1918-1921). Havia fome e epidemias por toda a parte, a indústria e os transportes estavam profundamente debilitados (alguns setores apresentavam índices equivalentes aos de fins do século XVIII), a agricultura paralisada, à espera de definições políticas, o descontentamento agitava a população urbana e provocava revoltas no campo. A expressão mais clara desta efervescência foi a insurreição dos marinheiros de Kronstadt contra os bolcheviques, aniquilada pelo exército vermelho em março de 1921.
A política dos bolcheviques durante a Guerra Civil, o chamado Comunismo de Guerra, revelara-se voluntarista, irrealista e desastroso. Semeara muitas ilusões sem abrir perspectivas. Impunha-se uma reviravolta. Por outro lado, a revolução internacional não acontecera e parecia muito claro que não adiantava sonhar com ela, pelo menos a curto prazo. A maioria, principalmente após a revolta de Kronstadt, compreendia a necessidade de mudanças. Elas tomariam a forma de uma Nova Política Econômica.
Segundo Cohen, ela começou "sub-repticiamente" e não como "plano predeterminado" (ps. 128 e 153). A principal novidade: garantia de liberdade de produção e de comércio para cerca de 25 milhões de pequenos camponeses, recém-convertidos em proprietários na revolução agrária. A intervenção do Estado se restringia à cobrança do imposto. Mais tarde, através de sucessivos decretos, as liberdades comerciais seriam ampliadas e consolidadas com a permissão de arrendar terras e tocar pequenas indústrias, mantendo assalariados etc. O Estado controlava os setores estratégicos: grandes empresas, indústria pesada, transportes, sistema bancário, comércio externo. Em fins de 1923, como observa Cohen, "estabelecera-se na Rússia Soviética um dos primeiros sistemas mistos da economia moderna" (p. 149).
A NEP era, sem dúvida, uma nova política, muito mais do que apenas "econômica". Mediante o afrouxamento dos controles econômicos, sobretudo no campo, dava uma trégua aos camponeses, desesperados e revoltados com as requisições forçadas e com as políticas coletivizantes do Comunismo de Guerra. Neste sentido, foi uma política de apaziguamento com o campesinato. Com a sua franqueza habitual, Lenin a apresentou como um "recuo" (p. 157). Assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político.
A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.
O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial (p. 188).
A pequena economia privada prosperava. Praticamente toda a produção agrícola estava sob controle camponês; 28% dos manufaturados e de 50% a 75% dos bens de consumo básico, eram produzidos por milhões de artesãos. O comércio estava, essencialmente, em mãos dos pequenos negociantes. Apesar das empresas estatais controlarem os centros dinâmicos da economia, mais de 80% da população "vivia e trabalhava sem estar sujeita ao controle do Partido Comunista ou do Estado" (ps. 301-302).
Os revolucionários reagiam ambiguamente à situação: satisfeitos com os resultados imediatos e com o afastamento dos perigos da fome e da revolta social, mas intranqüilos com a força ascendente da pequena economia privada. Afinal, a NEP era um triunfo dos bolcheviques ou dos "pequenos burgueses" em ascensão? Um triunfo da revolução ou da contra-revolução? Quem avançava, quem recuava? Mas, afinal, para que se fizera a revolução? Para isso tanto sacrifício? E o socialismo? E o comunismo? Como emancipar de fato a União Soviética do mercado internacional capitalista? Como fazer da URSS uma sociedade próspera e poderosa? Não se necessitava uma indústria pesada? Não era esta uma condição indispensável para um desenvolvimento econômico-social auto-sustentado? E também para garantir a soberania da "fortaleza do socialismo mundiall"? Os bolcheviques analisavam a conjuntura internacional, previam e temiam novas guerras imperialistas e não ignoravam que setores ponderáveis no mundo capitalista defendiam "cruzadas anticomunistas" radicais.
Os bolcheviques se dividiam nestas questões. Enquanto as luzes da ribalta clareavam os rostos crispados de Trotski, Stalin, Zinoviev, Kamenev, em luta pelo comando da sociedade, a polêmica central sobre os rumos do desenvolvimento social se polarizava em torno de Nicolai Bukharin e Eugeni Preobrajenski.
Os dois tinham sido partidários do Comunismo de Guerra e eram estreitamente ligados, já tendo inclusive elaborado em conjunto um manual de marxismo de grande sucesso na época: ABC do Comunismo. Mas viriam se tornar expoentes de propostas diversas.
Preobrajenski encarnaria a preocupação pelo desenvolvimento máximo das forças produtivas, pela construção prioritária de uma indústria de base. Para tal objetivo, fazia-se necessária uma "punção" no campesinato. Assim como o capitalismo passara por uma fase de "acumulação primitiva", o socialismo teria que obter os recursos para decolar. A Rússia revolucionária não podia contar com capitais internacionais. Restava-lhe como reserva, grande e inexplorada, o universo camponês. As teses de Preobrajenski eram relativamente cautelosas na previsão dos ritmos e da intensidade da intervenção sobre os camponeses, mas, certamente, tal política corresponderia ao abandono da NEP.
Bukharin trabalhou em sentido oposto. Defendia que a NEP deveria ser aprofundada e consolidada. Assim, deixaria de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes.
Tratava-se de mexer significativamente no núcleo do universo ideológico bolchevique. A viga-mestra do pensamento de Bukharin é a concepção da smychka, "colaboração na sociedade" (p. 230), ou, em outras palavras, aliança entre operários e camponeses. Esta aliança deveria ser mantida a qualquer preço: o poder revolucionário é proletário, dizia Bukharin, mas quem o sustenta são os mujiques.
Para garantir a industrialização, o financiamento viria dos lucros da indústria estatal, convidada a aumentar sua produtividade; do imposto de renda, que recairia prioritariamente sobre os camponeses mais abastados e os negociantes privados, da poupança voluntária, estimulada pela implementação de vários mecanismos.
Bukharin denunciava energicamente o emprego da violência nos métodos de coletivização no campo. Os camponeses deveriam ser persuadidos ao processo coletivo de produção por um longo e paciente trabalho de esclarecimento (p. 107). A forma intermediária definida entre a propriedade individual e a coletiva era a cooperativa, da qual, lenta e livremente, os camponeses iriam "ascender" para as formas coletivas de organização do trabalho.
Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias (p. 165). Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética: "Nossa economia existe para o consumidor, não o consumidor para a economia. O que faz a Nova Economia diferir da antiga é o fato de tomar como padrão as necessidades das massas" (P. 200).
A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas (p. 186), preservando interesses dos diversos setores sociais (p. 267), a paz civil, a legalidade, a moderação nos ritmos, a tolerância e a persuasão (p. 235).
A smychka tinha igualmente uma dimensão internacional. De fato, com o "adiamento" da revolução no Ocidente capitalista, os bolcheviques, desde o início dos anos 20, passaram a pensar na possibilidade de uma aliança da Revolução Russa com os povos coloniais. Lenin e o indiano Roy protagonizaram o primeiro grande debate sobre questão no 2º Congresso da Internacional Comunista.
Bukharin, desdobrando a reflexão, passará a falar do "campesinato mundial". A relação entre camponeses e operários, existente na URSS, refletia um fenômeno mundial, e era preciso fazer do poder soviético um defensor dos povos oprimidos e colonizados, da classe camponesa, da pequeno-burguesia (p. 174-175). Da mesma forma, as nações não russas deveriam receber toda consideração já que representavam, entre outras razões uma "ponte com os povos do Oriente" (p. 181).
Bukharin tinha críticas contundentes à alternativa defendida por Preobrajenski. Ela causaria um estatismo repressivo generalizado e sufocante. A supercentralização e a superburocratização desembocariam na "má administração organizada" (p. 36 1). Na melhor das hipóteses, propiciaria um ritmo máximo de crescimento em determinados setores, mas à custa de demandas da sociedade, da aliança operário-camponesa e da estabilidade do poder soviético. E desembocaria certamente no Estado-Leviatã, voraz e liberticida.
As novas concepções de Bukharin - sobre a aliança operário-camponesa como perspectiva estratégica e não como um expediente tático ou recuo - a idéia "evolucionária" de construção do socialismo -, o projeto de atingir o socialismo mediante o mercado controlado assim como suas propostas concretas sobre o desdobramento da NEP, conheceriam momentos de glória entre 1925 e 1927, sendo consagrados no XV Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em dezembro de 1927.
Neste período Bukharin é reconhecido como o teórico e principal formulador da NEP. Articula-se num tandem imbatível com Stalin (Bukharin formula e Stalin organiza) e destrói as oposições agrupadas em torno de Trotsk, Zinoviev e Kamenev.
Entretanto, já desde meados de 1927, acumulavam-se problemas para a NEP. Não se confirmavam as previsões estatais sobre os montantes de grãos para exportação e abastecimento das cidades. Os camponeses, descontentes por não encontrarem no mercado as manufaturas necessárias, simplesmente não escoavam sua produção.
Estocavam seus excedentes e começaram, inclusive, em certas regiões, a diminuir a área semeada. Noutras palavras, valiam-se da liberdade de comércio, inscrita na NEP. Assim, configuravam-se tensões significativas, entre Estado e camponeses.
Os problemas foram apenas aflorados no XV Congresso, já que a fração Bukharin-Stalin interessava-se mais em varrer a oposição do mapa do que em discutir a tempestade iminente.
Mas eram contradições demasiadas para ficar embaixo do tapete. Assim, em janeiro de 1928, o Bureau Político do PCUS, a mais alta instância dirigente do país, adota "medidas extraordinárias" para obrigar os camponeses a entregar os grãos de que o Estado necessitava. Voltava, portanto, a política das requisições forçadas, odiada pelos camponeses e formalmente rejeitada pela NEP.
Em fins de 1929, encerrando uma política de vaivém, de zigue-zagues estonteantes, que refletiam as hesitações do partido e, principalmente, a resistência de Bukharin e seus aliados (A. Rykov, chefe do Governo, e M. Tomski, presidente dos sindicatos russos), o Estado soviético e os comunistas caminharam para a decisão da coletivização à força, para a expropriação dos camponeses privados, ou seja, para a destruição da aliança operário-camponesa e para o abandono da NEP.
Doravante, o embate seria polarizado por Bukharin, de um lado, e por Stalin, de outro. As concepções e propostas de Preobrajenski, acerca da acumulação socialista primitiva, seriam retomadas por Stalin em escala alucinante - "caricatural", como diria Trotsk. Por ironia sinistra, o arquiinimigo de Trotski se tornava adepto da perspectiva da industrialização, para cuja implementação contaria com inúmeros ex-aliados do seu inimigo. Alguns, como o próprio Preobrajenski, seriam trazidos do exílio interno, em que se encontravam, para ajudar na execução dos famosos Planos Qüinqüenais.
Mesmo em desgraça, Bukharin ainda travará batalhas de retaguarda até ser expulso do PCUS, preso, condenado e assassinado (1937-1938). A rigor, lutará até o fim, transformando seu julgamento num derradeiro libelo contra o sistema triunfante e legando, com sua mulher antes de morrer, uma carta que, mais tarde, será divulgada.
A recuperação da trajetória de Bukharin, realizada brilhantemente por Cohen, até 1927, deixa em parte a desejar, quando o autor trata da luta entre Stalin e Bukharin, de 1927 a 1929, e, sobretudo, do período subseqüente até a morte do dirigente comunista.
A meu ver, não se esclareceram as razões políticas do triunfo de Stalin, nem, muito menos, os fundamentos históricos e sociais da derrota da linha de Bukharin. Em certos momentos, o autor é seduzido pela idéia, tão própria à historiografia trotskista, de que Stalin venceu porque soube dominar a máquina partidária. Nesta linha de argumentos, a estrutura orgânica se ergue como um espectro com vida própria, insolitamente despolitizado e que tritura as oposições de modo inapelável. Stalin é satanizado e, como um monstro de astúcia e frieza, de sabedoria incontestável, desembaraça-se de inimigos e ex-aliados. Um autêntico gênio do mal.
Porém, felizmente, o próprio autor reconhece que não "se pode exagerar o poder organizativo de Stalin em 19288" (p. 368). De outro lado, também reconhece que "era claramente perceptível que os grupos de opinião mais fortes do partido se mostravam cada vez menos pacientes em relação às prédicas cautelosas (de Bukharin) e cada vez mais receptivos ao culto (... ) à tradição heróica do bolchevismo" (p. 371).
Aqui o autor apenas aflora um fator crucial da derrota de Bukharin. Trata-se do universo ideológico dos bolcheviques, aliás, tributário em grande medida das tradições social-democratas anteriores à Grande Guerra.
Bukharin, apesar de suas propostas inovadoras, pertence a este universo. Dele fazem parte idéias messiânicas sobre a revolução, a classe operária e o partido de vanguarda (necessariamente único), desvalorização histórica e estrutural do papel dos camponeses na revolução, a concepção cientificista-produtivista da história e do desenvolvimento social. Com tal universo Bukharin não rompeu e nem teve, jamais, este propósito.
Quando Bukharin, entre 1927 e 1929, tenta se insurgir contra Stalin, encontra-se preso nas teias destas concepções e valores políticos. Na verdade, também ele havia cultivado atitudes e políticas autoritárias (ps. 230, 270 e 299). Também ele havia sido impiedoso com seus adversários políticos de fora e de dentro do Partido Comunista. Não realizam uma reflexão autocrítica efetiva, acerca das suas concepções, no período do Comunismo de Guerra, marcadamente catastróficas, obreiristas, autoritárias e messiânicas. E havia consentido recuos em 1925-1926 que iriam fortalecer os partidárias dos planos centralizados e superindustrializantes. Daí sua impressionante timidez em recorrer ao conjunto do partido e à sociedade, se deixando encurralar no interior do Bureau Político. Daí suas humilhantes e sucessivas retratações (ps. 378, 394 e 399) que enfraqueceram, Progressivamente, suas chances de apresentar uma alternativa ampla ao stalinismo.
Este retrospecto não tenciona desmerecer ou minimizar o papel de Bukharin, mas compreender algumas razões da sua derrota para Stalin. Este soube, de fato, encamar como ninguém a consciência média bolchevique, os valores hegemônicos no interior do partido, os frutos de um tempo duro de terríveis enfrentamentos. Por mais astuto e endemoninhado que fosse, com rabo, chifres e pés invertidos, Stalin não venceria esta formidável batalha política, se não contasse com maioria ampla do partido a seu favor.
O socialismo em um só país (defendido inclusive por Bukharin que, por sinal, foi o primeiro a falar nisto, como informa o próprio Cohen), a mitologia do partido único, o messianismo obreirista e a correspondente subestimação das outras classes, principalmente o campesinato, São valores fundamentais entre outros já referidos, enraizados na tradição bolchevique.
Bukharin formulou políticas e concepções que, uma vez aprofundadas, provavelmente, poriam em xeque tais valores. Mas não foi capaz, ou não teve ocasião histórica, de empreender tamanha tarefa. E se o fizesse é praticamente certo que seria derrotado de maneira ainda mais inapelável.
Entretanto, teve o mérito de representar uma alternativa ao modelo stalinista. E Stephen Cohen teve o grande mérito de ser um dos historiadores que resgatou do esquecimento esta história. Contribuiu, deste modo, para esclarecer as divergências reais da polêmica que sacudiu a URSS nos anos 20, como para desvendar os mitos que reservam um lugar central à polêmica entre Stalin e Trotski, obscurecendo o parentesco fundamental entre stalinismo e trotskismo.
* Daniel Aarão Reis é historiador
Fonte: Revista Teoria e Debate / nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991
Abaixo o bolchevismo!!! Viva a luta pelo socialismo democrático!!!
A URSS e seus satélites eram Estados operários degenerados, onde a a burocracia, na condição de “camada social privilegiada e dominante”, conseguiu expropriar politicamente o proletariado. É errado afirmar que o chamado "socialismo real" se tratava de uma forma de capitalismo de Estado, pois não havia propriedade privada dos meios de produção, distribuição e troca, muito menos mercado. Como disse Trotsky, a burocracia, ao contrário da burguesia, não podia dispor dos meios de produção enquanto propriedade privada. Portanto é burrice falar em capitalismo de Estado em relação ao "socialismo real". O filósofo István Mészáros afirma que eram “sociedades pós-revolucionárias”, possuindo traços anticapitalistas, inicialmente voltadas ao socialismo, mas com regressões e acomodações ao sistema produtor de mercadorias em escala internacional.
Mészáros diferencia capital de capitalismo e defende que o sistema soviético não poderia ser caracterizado enquanto “capitalismo de Estado”, mas como uma sociedade dominada pelo capital: permanece intactas a divisão do trabalho e a estrutura de comando do capital.
Pois bem, como se deu a burocratização que degenerou o socialismo, possibilitando a essas sociedades superarem o capitalismo, mas não a lógica do capital? Em primeiro lugar, foi a ausência de democracia política, pois Lenin ao reinterpretar a ditadura do proletariado como ditadura do partido comunista, estabeleceu um regime onde os trabalhadores não possuiam direito algum, a não ser o de obedecer o partido como se fosse rebanho. Em "A Revolução Russa", a revolucionária marxista Rosa Luxemburgo constatou esse fato:
"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês".
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Rosa Luxemburgo também deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos que seja obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.
"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe".
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Segundo o cientista social Michael Löwy, um dos mais importantes teóricos do marxismo na atualidade: "Constatando a impossibilidade, nas circunstâncias dramáticas da guerra civil e da intervenção estrangeira, de criar "como que por magia, a mais bela das democracias", Rosa não deixa de chamar a atenção para o perigo de um certo deslizamento autoritário e reafirma alguns princípios fundamentais da democracia revolucionária. É difícil não reconhecer o alcance profético desta advertência. Alguns anos mais tarde a burocracia apropriou-se da totalidade do poder, excluiu progressivamente os revolucionários de Outubro de 1917 - antes de, no correr dos anos 30, eliminá-los sem piedade." ( Michael Löwy; em "Rosa Luxemburgo: um comunismo para o século XXI")
Rosa deixa claro que o socialismo não pode ser estabelecido por decreto, não pode ser uma receita pronta que o partido comunista tira do bolso e a aplica com energia.
“A teoria da ditadura, segundo Lenin-Trotsky, admite tacitamente que a transformação socialista é uma coisa para o qual o partido da revolução tem no bolso uma receita inteiramente pronta e que se trata senão de aplicá-la com energia. Infelizmente – ou felizmente, se quiserem – não é assim. Bem longe de ser uma soma de prescrições feitas, que não teriam mais do que ser aplicadas, a realização prática do socialismo como sistema econômico, jurídico e social é algo que fica completamente envolvido nas brumas do futuro. O que temos agora em nosso programa não são mais do que alguns marcos orientadores que indicam a direção geral a seguir – indicações aliás, de um caráter sobretudo negativo. Sabemos mais ou menos o que preliminarmente devemos suprimir no sentido de deixar o caminho livre para a economia socialista. Ao contrário, nenhum programa de partido, nenhum manual de socialismo pode indicar de que espécie são as milhares de grandes e pequenas medidas concretas que têm em vista introduzir os princípios socialistas na economia, no direito, em todas as relações sociais.”
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Os bolcheviques formaram um governo exclusivo, onde havia apenas uma pequena parcela de socialistas revolucionários de esquerda, que mesmo assim romperam com o governo em virtude do Tratado de Brest-Litovsk, que tirou a Rússia da Primeira Guerra Mundial. E diga-se de passagem, Lenin e os bolcheviques haviam prometido uma paz sem anexações, mas não foi o que fizeram, portanto os socialistas revolucionários de esquerda não estavam tão errados ao critica-los. E mais, como excluir os mencheviques, em especial sua ala internacionalista?? Martov havia se oposto a Primeira Guerra Mundial, havia lutado para que os mencheviques rompessem com o governo provisório, conquistou a maioria durante a Revolução de Outubro, mas foi tratado como se fosse "lixo da história". É isso a ditadura do proletariado??? Os bolcheviques eram donos da verdade????
Em junho de 1918, os socialistas revolucionários de esquerda promoveram uma rebelião, que não era contra o poder soviético e sim contra a manutenção da paz em relação a Alemanha. Essa rebelião fracassou, felizmente, pois era loucura querer retomar a guerra contra os alemães, mas isso era motivo para os bolcheviques os perseguirem como se fossem contra-revolucionários? E pior, era motivo para proibir todos os partidos, com excessão do deles??? Os sovietes e os sindicatos já vinham se tornando correias de transmissão do Partido Bolchevique, isso consolidou esse processo. E mais, não vamos nos esquecer do golpe contra a Assembléia Constituinte, em janeiro de 1918, que havia sido eleita democraticamente e nada tinha de burguesa, até porque os socialistas revolucionários haviam conquistado 41% dos votos, e os bolcheviques conquistaram 25% dos votos. Somente nisso já era uma maioria de 66% para a esquerda socialista, se somar os votos de mencheviques, anarquistas e outros grupos de esquerda, se percebe que os liberais tiveram menos de 5% dos votos. Portanto essa assembléia, que não era burguesa, pois era fruto de uma reinvindição antiga dos trabalhadores russos(inclusive dos bolcheviques), ainda tinha a seu favor o fatop de ser majoritariamente dominada pelos socialistas. Entretanto, como os bolcheviques não tinham essa maioria, foi natural que Lenin e os bolcheviques a dissolvessem. Eles não estabeleceram a ditadura do proletariado, até porque Lenin não acreditava na capacidade do proletariado exercer o poder após a revolução. Eles estabeleceram a ditadura do partido comunista, o partido é que devia possuir o poder. Por isso após dissolver a Assembléia Constituinte, não propuseram nenhuma alternativa democrática a ela, mas apenas os sovietes, que estavam sendo transformados em correias de transmissão do Partido Bolchevique, processo que se consolidou com a proibição dos outros partidos, incluindo aqueles que eram socialistas.
"Os sovietes funcionaram com alguma liberdade só até junho de 1918. Os jornais socialistas de oposição não duram muito mais do que isso. Os campos de trabalho forçado existem desde 1918-1919. Em 1918, e depois em 1920-1921, há greves importantes, reprimidas violentamente pelo regime."
(Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)
O historiador marxista Jacob Gorender, fundador do PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, preso e torturado durante a ditadura militar, figura destacada da esquerda petista, autor de "O Escravismo Colonial", não pode em hipótese alguma ser considerado um reformista, revisionista, centrista pequeno-burguês ou idiotices afins que os adeptos do bolchevismo usam para desqualificar quem não segue a cartilha dogmatica deles. Em "Marxismo Sem Utopia", Jacob Gorender afirma tudo o que escrevi:
"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.
O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado." (Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43)
A burocracia nasceu com a própria Revolução de Outubro, com o próprio modelo de socialismo estabelecido por Lenin e seus "camaradas" bolcheviques. Era já nasceu condenada a se degenerar, pois deturpando o marxismo, fizeram tudo aquilo que uma ditadura burguesa também iria fazer. Os bolcheviques chegaram ao extremo do absurdo ao promover o "terror vermelho", e não adianta vir com a babaquice que se tratava da violência revolucionária contra o opressor capitalista, pois é mentira. Era terrorismo puro e simples, como alias nos diz o filósofo marxista Pietro Ingrao, figura histórica do comunismo italiano e hoje filiado a Refundação Comunista.
"Já Lenin afirmava a construção violenta do Estado e do poder político, e não se tratava só de uma resposta revolucionária ao sangue do capitalismo. Era uma idéia errada, erradíssima, de abuso e de esmagamento, que também atingiria, cedo ou tarde, uma parte do movimento operário. Tal como ocorreu, precisamente, em Budapeste, em 1956. E não só. Os massacres estavam fadados a se voltarem contra os próprios militantes, os próprios filhos. Os tanques na Hungria nos abriam os olhos para uma violência que devíamos recusar, e no entanto foi apregoada e inscrita nas nossas bandeiras. (...)
Antes nos iludíamos dizendo que havia uma diferença substancial entre os dois personagens centrais da história do comunismo e considerávamos Stalin o traidor dos ideais de Lenin. Não era verdade. Hoje, por sabermos a verdade, podemos captar melhor as diferenças entre Lenin e Stalin, a partir daquela que considero a mais significativa. Lenin, com sua revolução, teve em mente o poder dos sovietes e do partido, conquistado e defendido com a violência. Em vez disso, Stalin, com métodos ainda mais ferozes em relação a Lenin, tem em mente só o poder pessoal e do seu clã."
(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])
O caráter anti-democrático do bolchevismo pode ser constatado nas palavras de Leon Trotsky, um dos principais revolucionários bolcheviques.
“A verdade é que, em regime socialista, não haverá aparelho de coerção, não haverá Estado. O Estado se dissolverá na comuna de produção e de consumo. Entretanto, o caminho do socialismo passa pela tensão mais alta da estatização. E é exatamente este período que atravessamos. Assim como um lampião, antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, a forma mais impiedosa de governo que existe, um governo que envolve, de maneira autoritária, a vida de todos os cidadãos. É essa bagatela, esse pequeno grau na história que [...] o menchevismo não viu, e foi isto o que lhe fez tropeçar”
(Leon Trotsky; "Terrorismo e Comunismo")
Ao afirmar que a ditadura do proletariado é a forma mais impiedosa de governo que existe, Trotsky está legitimando os crimes hediondos do "terror vermelho" e pior, dando sinal verde para o terror ainda mais criminoso, hediondo e desumano da era stalinista, até porque para voltar à imagem, e se o lampião em vez de se apagar não só continuasse aceso mas pusesse fogo no mundo? Foi o que aconteceu com o stalinismo.
Os anarquistas não eram contra-revolucionários, muito pelo contrário, os guerrilheiros anarquistas do Exército Negro, liderado por Nestor Makhno, foram fundamentais para a derrota dos contra-revolucionários brancos comandados pelo general Denikin e pelo Barão Wangrel, no sul da Ucrânia. E mesmo assim foram massacrados pelo Exército Vermelho. Em março de 1921, os marinheiros do soviete de Kronstadt(revolucionários de primeira hora, que lutaram como vermelhos durante a guerra civil), se rebelaram contra a ditadura bolchevique. Mas ao contrário do que a propaganda comunista afirma, os revoltosos eram revolucionários que exigiam o estabelecimento de uma democracia socialista, com a legalização de todos os partidos socialistas, eleições livres, liberdade de imprensa, sindicatos independentes e com o poder sendo exercido pelos sovietes e não por nenhum partido. O Exército Vermelho reprimiu brutalmente essa rebelião.
"Muitos dizem que o episódio de Kronstadt tinha de ser reprimido, visto que a Rússia estava cercada. Mas o fato é que Kronstadt era a vanguarda da revolução e fornecia a guarda pessoal para o palácio de Lênin, depois de 1917. Kronstadt desejava o quê? Desejava sovietes independentes do partido e do Estado, no sentido original da idéia de soviet: uma autoridade suprema que não se subordina a ninguém. A repressão aos radicais de esquerda na Revolução Russa está ligada a outro processo, que é o surgimento de uma política sem ética, a institucionalização da calúnia como arma política. Na época, Makhno fora acusado de anti-semita, perseguidor de judeus; os marinheiros de Kronstadt, de agentes do capitalismo ocidental. Mentira. Basta conhecer os Izvestia de Kronstadt, jornais publicados no Ocidente, para constatar que as reivindicações eram pró-socialismo – com liberdade política – e contra a ditadura do partido único e seu fetichismo."
(MAURÍCIO TRAGTENBERG; em "Rosa Luxemburgo e a Crítica aos Fenomênos Burocráticos")
Em 1920-21, a "Oposição Operária" denunciou a burocratização no partido e no Estado soviético, mas foram calados por Lenin, Trotsky e cia, quando no X Congresso do partido, foram proibidas as frações sobre o risco de expulsão. A proibição de frações e a repressão à rebelião de Kronstadt são exemplos de opções políticas que fortaleceram a centralização e a burocracia.
Portanto é hipocrisia os trotskistas ficarem afirmando que a URSS e demais Estados socialistas eram Estados operários degenerados, como se não defendessem justamente aquilo que promoveu essa degeneração. E pior, Trotsky não somente defendeu as deturpações que Lenin promoveu, mas defendeu muitas das políticas degeneradas que Stalin realizou, como a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos.
"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos, a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP, propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo, recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado, subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."
(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a Revolução")
Entre 1920 e 1921, Trotsky assume uma posição "ultra-bolchevique", defendendo a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos. O projeto de militarização do trabalho, Trotsky começou a pôr em prática no setor dos transportes, de que se tornara o responsável. Quanto a discussão sobre os sindicatos. Trotsky queria integrar os sindicatos ao Estado e fazer com que eles realizem aquilo que era a "sua verdadeira vocação" no interior do "Estado operário", isto é, pôr-se a serviço da produção. Por isso mesmo, ele é favorável às nomeações, em lugar de eleições, para o postos sindicais. "No Estado operário – afirma Trotsky – (...) a existência paralela de organismos econômicos e de grupos sindicais não pode ser tolerada senão a título transitório (...) É preciso que os pensamentos e as energias do partido communista, dos sindicatos e dos organismos governamentais tendam a amalgamar os organismos econômicos e os sindicatos num futuro mais ou menos imediato" (Leonard Shapiro; in "Les Origines de l'Absolutisme Communiste, les bolcheviks et l'opposition, 1917-1922", p. 231).
Lenin se opõe a Trotsky tanto a propósito de um ponto como do outro, embora, no primeiro caso, não imediatamente. A propósito da pretensa função essencialmente "produtiva" dos sindicatos no interior do "Estado operário", Lenin objeta com bastante lucidez : "(...) Um Estado operário é uma abstração. Na realidade, temos um Estado operário, primeiro com a particularidade de que é a população camponesa e não operária que predomina no país e, segundo, que é um Estado operário com uma deformação burocrática" (Pierre Broué; in "Trotsky, democracy and totalitarianism", p. 286). Mas não nos iludamos com o democratismo de Lenin. Se ele se opôs ao "ultra-bolchevismo" de Trotsky, a diferença entre os dois não era tão grande. Se o que afirma Leonard Shapiro é verdade (e não há razão para duvidar disso) nem Lenin e nem mesmo a chamada "Oposição Operária" propunham "dar aos operários o direito de eleger livremente os seus representantes e, em consequência, escolhê-los entre os partidos que desejassem" ( Leonard Shapiro; in "Les Origines de l'Absolutisme Communiste, les bolcheviks et l'opposition, 1917-1922", p. 237 - 238). A disputa não era entre sindicatos livremente eleitos e o Partido, mas entre a direção do partido e a sua fração sindical. Por isso, a vitória da posição de Lenin não significou muito. De resto, como já afirmei, no final do X congresso do Partido, que se reune no momento da revolta de Kronstadt, Lenin apresenta duas moções, que foram aprovadas, uma condenando um "desvio sindicalista e anarquista" (referência à "Oposição Operária") e outra proibindo as frações e plataformas particulares no interior do partido, sob pena de exclusão.
O regime bolchevique já era burocratico, e com essa cultura autoritária e estatista, era natural que essa burocratização assumisse as proporções que assumiu com o stalinismo. Superaram o capitalismo, mas não a lógica do capital, e nem poderiam faze-lo diante de todos esses fatos. O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois preparou o terreno para o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)
Portanto não basta ser anti-stalinista, é preciso ser anti-bolchevique. A esquerda precisa reconhecer os seus erros, condenar os seus crimes, é rompendo com o dogmatismo, refundar o socialismo, resgatando o melhor do pensamento marxista e da tradição do movimento operário. Fazer autocritica, corrigir os erros, romper com o dogmatismo, refundando o socialismo segundo a realidade do século XXI, é um dever de todo marxista.
"Os gulags não foram uma fábula, mas não vejo por que hoje deveria assumi-los no meu patrimônio, no meu sentimento de comunista, agora que não tenho nem mesmo o álibi de ‘não saber’. Ao lado desta derivação, o movimento comunista no século XX arrastou classes sociais inteiras para a luta política e social, e grande parte do crescimento da democracia, pelo menos na Europa, está ligada a esta participação, a esta batalha. Por que não deveria revisitar e reexaminar nossa história, ver as luzes e as sombras? Enfraqueço-me? Penso exatamente o contrário: a autocrítica me reforça. O arrependimento é uma palavra que não pertence à minha linguagem, tem um sabor de sacristia. Mas, se arrepender-se significa reconhecer os erros, então não tenho medo desta palavra. Tentar compreender onde erramos me ajuda a viver, a me sentir mais forte, a olhar para a frente. A reconstruir o passado para dar uma indicação sobre o futuro: pode-se aprender com os erros. E no horizonte futuro resta a necessidade de uma resposta às exigências, decisivas, de sentido da vida, de horizonte, num mundo vergado como então, como em todo o século XX, pela maldição de uma guerra. Passei uma vida batendo-me por coisas essenciais: o direito de se alimentar, crescer, se instruir, se cuidar, ser criativo no próprio trabalho. O movimento operário, no curso de um século, cresceu no contexto da reivindicação de necessidades fundamentais, a começar pelo grande tema do resgate do trabalho, e da exigência destas coisas nasceu a ideologia comunista, com seus erros, suas culpas, seus delitos. A violência armada, infelizmente, teve um lugar na história e na ideologia do movimento comunista. Em nome desta violência, o homem foi posto sob cadeias, quando nós o queríamos livre. Nossa derrota nasceu também daqui. Mas aquelas exigências permanecem presentes, continuam a ser atuais, e alguém terá de responder a elas..."
(Pietro Ingrao; Em depoimento dado a Antonio Galdo, intitulado "Il compagno disarmato" [Milão, 2004])
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