terça-feira, 4 de maio de 2010

Caminhos do futuro

Caminhos do futuro

Por Emiliano José

Quase desnecessário dizer que Eric Hobsbawm tem se afirmado como um dos maiores intelectuais do nosso tempo. Por isso, compensa discutir, reverberar a conferência, ou parte dela, publicada pela Carta Maior, no dia 13 de outubro. A fala dele foi feita no primeiro dia do World Political Forum, em Bosco Marengo, na Alexandria. O tema era mais do que próprio para a contemporaneidade: qual futuro depois do comunismo? É, indagação, como deve ser. Peço licença aos leitores para falar um pouco extensivamente dessa fala.

Logo de cara, uma tese forte: todos os países do Leste, e os do Oeste também, devem sair da ortodoxia do crescimento econômico a todo custo e dar mais atenção à equidade social. Os países ex-soviéticos, na visão dele, ainda não superaram as dificuldades da transição para o novo sistema. Diria, de outra maneira, que eles mergulharam desordenadamente na política neoliberal.

O século breve, como ele denomina o século XX, teria sido marcado por um conflito religioso entre ideologias laicas. Só um intelectual do porte de Hobsbawm poderia dizer isso, sem medo. Foi dominado pela contraposição de dois modelos econômicos - o "socialismo", e as aspas são dele, identificado com economias de planejamento central tipo soviético, e o "capitalismo", também devidamente aspeado, que englobava todo o resto.

Essa contraposição nunca foi realista. Todas as economias modernas devem combinar público e privado de vários modos e em vários graus, e de fato fazem isso. Corajosa constatação de Hobsbawm, outra vez. Faz tremer os que copiam fórmulas, à direita e à esquerda. O exclusivismo de um ou de outro faliu. As economias do modelo soviético lá pelos anos 80. As do fundamentalismo de mercado anglo-americano, agora, no setembro passado.

O fim do "socialismo" foi catastrófico. As repercussões seguem até hoje, ao menos nos países da ex-URSS. A China, e lá vem ele com sua ousadia e firmeza intelectual, preferiu outro caminho capitalista, diferente do neoliberalismo, optando pelo modelo mais, como ele diria, "dirigista" das economias "tigres". Abriu caminho, assim para seu gigantesco salto econômico para frente, com muito pouca preocupação e consideração pelas implicações sociais e humanas, e eu completaria, ecológicas. A crise do capitalismo, essa que estamos ainda vivendo, terá conseqüências que ainda não dominamos.

Mesmo que não se saiba, ainda, quais as mudanças que a crise econômica em curso pode provocar, parece não haver dúvida, na visão de Hobsbawm, de que está em curso uma alternância de enormes proporções das velhas economias do Atlântico Norte ao Sul do planeta e principalmente à Ásia Oriental.

No desenvolvimento da conferência, ele chega a uma primeira e fundamental conclusão: não é mais possível acreditar em uma única forma global de capitalismo ou de pós-capitalismo. Delinear a economia do amanhã, no entanto, é, na visão dele, a parte menos relevante a nos preocupar em relação ao futuro. "A diferença crucial entre os sistemas econômicos não reside na sua estrutura, mas sim nas suas prioridades sociais e morais, e estas deveriam portanto ser o argumento principal do nosso debate".

Parece surpreendente, e não parece muito marxista, não? Não parece para os que cultuam dogmas. Ele explica isso ilustrando com dois aspectos que considera importantes. O primeiro é que o fim do socialismo - ele fala em fim do comunismo - implicou o desaparecimento repentino de valores, hábitos e práticas sociais que haviam marcado a vida de gerações inteiras. Foi um inesperado e brusco terremoto social.

Corretamente, ele afirma que serão necessárias diversas décadas antes que as sociedades pós-comunistas encontrem alguma estabilidade no seu modo de viver. E que algumas das conseqüências dessa desagregação social poderão exigir ainda um tempo maior para serem combatidas.

O segundo aspecto, na visão dele, de muita importância, é que tanto a política ocidental do neoliberalismo quanto as políticas pós-comunistas que ela inspirou, subordinaram propositalmente o bem-estar e a justiça social à tirania do PIB. Sempre o maior crescimento econômico possível, deliberadamente inigualitário. Com isso, minaram - e nos ex-países socialistas até destruíram - os sistemas de assistência social, do bem-estar, dos valores e das finalidades públicos.

O objetivo de uma economia não é o ganho. É o bem-estar de toda a população. O crescimento econômico não é um fim. É um meio para dar vida a sociedades boas, humanas e justas. Um pensamento que lembra muito Celso Furtado. "Não importa como chamamos os regimes que buscam essa finalidade. Importa unicamente como e com quais prioridades saberemos combinar as potencialidades do setor público e do setor privado nas nossas economias mistas. Essa é a prioridade política mais importante do século XXI."

A alguns a tese de Hobsbawm, aos marxistas ortodoxos, aos que vivem com os olhos no passado, parecerá idealista. Ela, no entanto, corresponde a uma análise muito densa da situação mundial, e consegue postular uma sociedade de bem-estar a partir das potencialidades do setor público e privado, não se rendendo às teses neoliberais, próprias do fundamentalismo de mercado, e nem ao estatismo completo, que levou ao desastre final dos anos 80.

Se olharmos para o Brasil, se olharmos para o projeto que o governo Lula vem desenvolvendo, para o contraponto que se fez ao neoliberalismo do tucanato sem, no entanto, descartar o dinamismo do setor privado, encontraremos muita coisa do que Hobsbawm está defendendo.

Lula tem dito que não quer o crescimento econômico por si só. Quer que ele garanta melhores condições de vida ao nosso povo. Para que consiga tirar as pessoas da miséria absoluta, como já conseguiu com mais de 20 milhões de pessoas.

E este é um governo que tem tentado, das mais variadas formas, constituir novos valores. Sejam os referentes aos negros. Sejam aqueles ligados às mulheres. Aos jovens. Aos homossexuais. O respeito aos movimentos sociais. A difusão de uma idéia de solidariedade social. É só olhar para o Bolsa-Família. Tudo isso representa uma visão política e moral, e aqui no sentido amplo da palavra. Creio que não é por acaso que o mundo tem voltado os olhos para o Brasil. É porque por aqui está se desenhando, ainda em fase inicial, um novo caminho, o da revolução democrática.

A caminhada em direção a uma sociedade cada vez mais justa, cada vez mais igualitária, não é simples. E nem é uma caminhada que se baseie em modelos acabados. Se há a idéia, e há, de uma sociedade socialista, não se pode mais imaginá-la nos termos daquilo que foi construído no século XX.

Há de ser uma proposta, que se vai construindo passo a passo, realizando transformações na vida das pessoas, e que necessariamente comporta a presença de setores não-estatais e privados, tudo subordinado ao interesse público, e onde o Estado continuará a ocupar por muito, muito tempo um papel essencial. E com a democracia sendo o leito fundamental por onde passam essas transformações.

Emiliano José é deputado federal(PT/BA), doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor aposentado da Faculdade de Comunicação,jornalista de carreira e escritor com oito livros publicados.

Publicado no site da Carta Capital (21/10/2009) 

‘Economia: três usos do dinheiro’

‘Economia: três usos do dinheiro’

Leonardo Boff *

A Campanha da Fraternidade deste ano, agora ecumênica, vai propor que as milhares de comunidades cristãs, paroquiais e de base discutam o tema: Economia e Vida, tema central devido à crise econômica mundial que deixou mais de 60 milhões de desempregados.

Trata-se de resgatar o sentido originário da economia como a atividade destinada a garantir a base material da vida pessoal, social e espiritual. Ela não pode ocupar todos os espaços, como ocorreu nos últimos decênios. A sociedade mundial virou uma sociedade de mercado e todas as coisas, do sexo à SS. Trindade, viraram mercadorias com as quais se pode ganhar dinheiro. A economia é parte de um todo maior.

Para facilitar a compreensão, distingo três espaços da atividade humana, um dos quais ocupado pela economia. Em primeiro lugar somos seres de necessidade: precisamos comer, beber, ter saúde, morar e outros serviços. Nisso, todos dependemos uns dos outros para atender a esta infra-estrutura. É o campo da economia. Em segundo lugar somos seres de relação: colaboramos com os outros, instauramos direitos e deveres, observamos leis e juntos construímos o bem comum. É o lugar da política. Por fim, somos seres de criação: cada pessoa possui habilidades, não só reproduz o que está ai, mas, cria, exerce sua liberdade e faz a sociedade avançar. É o âmbito da cultura. Todas se entrelaçam, mesmo com conflitos que não invalidam esta estrutura básica.

Vamos nos concentrar num capítulo fundamental da economia que é o uso do dinheiro. No começo não havia dinheiro, mas a troca: eu lhe dou um kg de arroz e você me dá três garrafas de leite. Reinava a relação direta e a confiança de que as trocas eram justas. Mas ao sofisticar-se a sociedade, entrou o dinheiro como meio de troca. E aí surgiu um risco, pois dinheiro significa poder que obedece a esta lógica: "quem não tem quer ter; quem tem diz: quero ter mais; e quem tem mais diz: nunca é suficiente". Ai surge a especulação que é ganhar sem trabalhar, dinheiro fazendo dinheiro. Mas o dinheiro tem três usos legítimos: para comprar, para economizar e para doar.

Dinheiro para comprar é necessário para o consumo daquilo que precisamos. Mesmo assim devemos sempre colocar a pergunta: compro por que preciso ou por que sigo a propaganda ou a moda? Quem fabrica, explora os funcionários? Ao produzir, respeita os direitos humanos e a natureza ou polui e usa demasiados pesticidas? Esse dinheiro é para o hoje.

O segundo uso do dinheiro é aquele para economizar. É coisa para o amanhã. Não sabemos as voltas que a vida dá: doença, desemprego, aposentaria insuficiente. Muitos nem conseguem economizar, pois, consomem tudo na sobrevivência. Mas se sobrar, onde colocar este dinheiro? Deixá-lo no colchão é dinheiro morto que nada produz. Aqui surgem os bancos que guardam o dinheiro. Fazem-no render, ao emprestá-lo a quem quer produzir e que não dispõe de capital próprio. Este recebe o dinheiro como empréstimo, mas, faz rendê-lo na produção, paga algum juro ao banco que repassa uma parte ao dono do dinheiro. Uma pessoa consciente quer saber para quem o dinheiro é emprestado: para construir armas, para apoiar empresas que devastam a natureza? Extraordinária é a decisão em Bangladesh e no Brasil de criar o microcrédito para apoiar pobres que querem produzir.

O terceiro uso do dinheiro é para doar. O dinheiro não é para a acumulação, mas para a circulação. Se atendo com suficiência e decência minhas necessidades, se tenho economias que me dão certa tranquilidade para o futuro, se tenho garantido o bem-estar e certo futuro à família, a doação é um ato de grande desprendimento. Expressa a gratidão pelo dom da vida, da saúde, do amor recebidos dos outros. É altamente ético doar para os flagelados do Haiti, para apoiar projetos de combate à prostituição infantil ou creches para populações da periferia. E aí sentimos que ao dar, recebemos a alegria impagável de ter feito o bem e de ter amado o outro.

* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor.

O Socialismo e a Ecologia

O Socialismo e a Ecologia
Roberto Malvezzi, Gogó *

A questão ecológica trouxe novos desafios aos que têm convicções socialistas. Significa que o instrumental analítico histórico dos socialistas não é mais suficiente, embora continue essencial, para compreender a realidade.

O capitalismo não tem solução para a questão ecológica. O capitalismo verde é um jogo de aparências, de marketing, não uma solução para problemas reais. Basta ver que o "mercado de carbono", assim como os "selos verdes", servem para alimentar a propaganda de certas empresas, mas não para resolver o problema fundamental do planeta. Portanto, não está em discussão nesse texto o capitalismo esverdeado, mas as insuficiências dos instrumentais analíticos do socialismo para compreender a nova realidade em que se encontra a humanidade e o planeta no qual habitamos. Hoje precisamos incorporar em nossas análises os instrumentos analíticos que nos oferecem as ciências da Terra, particularmente a climatologia. Esse instrumental analítico ainda está para ser organicamente construído.

A dificuldade da esquerda, em geral, é que não consegue compreender e respeitar a "alteridade da Terra". É difícil para quem pensa deter a chave de interpretação da história, admitir que a Terra é autônoma em relação ao ser humano, que tem suas próprias leis, enfim, que ela não depende do ser humano, mas o ser humano depende dela. É a quarta humilhação humana. As três primeiras nos foram ensinada por Lúcio Flório, um teólogo argentino.

A primeira humilhação é que nos julgávamos o centro do universo e descobrimos que a Terra é um planeta que gira me torno do sol, uma estrela de quinta categoria numa franja de uma galáxia. A segunda humilhação nos foi imposta por Darwin. O ser humano, biologicamente, não é mais que um descente dos macacos. A terceira humilhação nos foi imposta por Freud. Cada pessoa é um poço de desejos e interesses instintivos e inconfessos. A quarta humilhação humana eu acrescento por conta própria e nos foi imposta por Lovelock: a Terra é um ser vivo autônomo que não depende do ser humano, ao contrário, o ser humano depende dela para existir.

A esquerda está aberta para compreender e respeitar as leis da Terra? Ou vai continuar dependendo dos paradigmas produtivistas dos capitalistas?

Enfim, hoje não há como falar do socialismo do século XXI sem considerar teórica e praticamente a queda do muro de Berlim e os desafios que a crise ecológica nos coloca. Do contrário vamos continuar interpretando a realidade, propondo soluções estruturais, com as calças curtas de nossa infância.


* Roberto Malvezzi, Gogó é Agente Pastoral da Comissão Pastoral da Terra